O bispo de Setúbal, D. José Ornelas, diz que "não gostaria de ver o Estado destinatário de tudo isso”, referindo-se às verbas do Programa de Recuperação e Resiliência (PPR) normalmente designadas por "bazuca europeia".
"Se o Estado vier a ser o destinatário de todo o dinheiro, isso será, claramente, um bom caminho para a corrupção e para os compadrios."
"Há muito dinheiro e muita cobiça à volta dele”, diz D. José Ornelas, alertando "para que não se repitam práticas e modelos do passado”.
"A preocupação de todo o bom cidadão” é a de que “o dinheiro [do PRR] chegue realmente ao seu destino e não fique pelo caminho nas mãos e nos bolsos de alguém”.
O bispo gostaria de ver “o Estado a usar bem" o dinheiro e considera que a sociedade tem de estar muito atenta e “ser capaz de controlar” os apoios às instituições e empresas “que são capazes de criar desenvolvimento, criar emprego e criatividade".
“Não gostaria de ver que tudo isto fosse simplesmente uma forma de desenvolver megaprojetos, mas gostaria que chegasse realmente para o desenvolvimento e diversificação da atividade económica”, acrescenta o bispo lembrando que o PRR prevê, precisamente “o apoio a projetos que apostem numa revolução do ponto de vista ecológico, tecnológico, mas também que seja fator de equilíbrio do ponto de vista social, para que os nosso jovens não tenham de ir a correr para fora para ter uma vida digna, e para acudir às pessoas com maiores dificuldades”.
D. José Ornelas afirma que só dessa forma é que a "bazuca" será capaz de “ajudar a desenvolver e a e a colocar no caminho do sucesso, o futuro deste país”.
Lição n.º 1 - “Querer estatizar tudo é mau”
O bispo de Setúbal alerta para ao risco de haver demasiado Estado na sociedade, afirmando que “querer estatizar tudo é mau”.
"Sem Estado não teríamos superado esta crise, mas só com o Estado também não se teria superado e tampouco é essa a sociedade que queremos, reforça”.
“Penso que o importante é que nós tenhamos uma forma de viver e de organizar o país pondo ao serviço da população, do nosso desenvolvimento e do nosso futuro todas as instituições que fazem parte do deste país e não é só o Estado”, acrescenta D. José Ornelas, considerando que “o Estado é importante para criar as plataformas e criar enquadramentos legais e de desenvolvimento onde todos possam colaborar”.
O bispo dá o exemplo do que está a acontecer ao nível do sistema de saúde e de apoio aos mais carenciados, em que “não é o Estado sozinho” que atua porque “não chega lá, não chega a todas as situações, nem nunca vai chegar”.
O bispo que é também presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) refere que o que “interessa é que o Estado possa fazer uso de toda a criatividade que o país tem para se desenvolver” e que diga presente “quando outros avaliam e detetam situações de carência e dificuldade”.
“O que me interessa mais é que o Estado possa entrar no modo de viver e agir, que crie formas de dignificação das pessoas carenciadas, para que sejam autónomas, para que não continuem dependentes”, pois “o Estado não pode fazer tudo, não pode ser assistencialista, mas tem de aproveitar a criatividade do país, a criatividade das instituições para criar novas condições para todos".
Lição n.º 2 - Se as IPSS chegam onde o Estado não consegue, “devem ter os meios necessários”
Ao Estado exige-se também uma maior atenção para com as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) que viram “as suas receitas diminuir drasticamente, algumas a cem por cento” com a pandemia.
D. José Ornelas recorda que as instituições de apoio a jovens e crianças tiveram de fechar portas nos períodos de confinamento, tendo significado “queda abrupta de receita e, nalguns casos, aumento significativo de despesa na aquisição de equipamentos de segurança”, como aconteceu sobretudo nos lares de idosos.
O bispo afirma mesmo que “algumas instituições não fecharam porque não tinham dinheiro para fechar; porque para fechar uma instituição ou entra em falência e vai tudo ao desbarato, ou, então, é preciso indemnizar pessoas e algumas instituições estavam em situação tão dramática que não lhes permitia a solução aparentemente mais fácil”.
“O Governo criou algumas melhorias e algumas linhas de atenção para estas instituições, mas são claramente insuficientes e a retoma vai ser muito difícil”, alerta.
D. José Ornelas chama ainda a atenção para o facto de estas instituições trabalharem sobretudo com “os mais pobres, com pessoas com baixos rendimentos e, por conseguinte, que contribuem com pouco”. Por isso, "também aqui, o Estado tem de colorar a mão na consciência”, até porque “a maior parte dos lares não é do Estado, é das instituições e o Estado poupa muito dinheiro com elas”.
“Eu não digo que devem acabar, pelo contrário. Agora, também temos de ter uma forma de funcionar que seja diferente para que isto seja possível continuar. Não é para darem lucro, porque o lucro que queremos é que as pessoas sejam tratadas o melhor possível. Mas para que isso aconteça, as instituições devem ter os meios necessários e o Estado, se não está lá, tem de apoiar melhor”, afirma.
Lição n.º 3 - Fim das moratórias pode “criar outra calamidade social”
Preocupação de “todos os dias” na Diocese de Setúbal “é a assistência na alimentação” que, nas palavras de D. José Ornelas, “pode ser um bom barómetro para se aferir o nível da crise”.
O bispo, quando questionado sobre se lhe continuam a chegar relatos de fome, responde: "Isso é todos os dias."
"Os pedidos de ajuda aumentaram imensamente”, diz D. José Ornelas, adiantando que o levantamento está a ser feito e, assim, não pode dizer “valores precisos”.
“No ano passado, de abril a junho, o número de pedidos de ajuda tinha subido 30 e tal por cento e dai para cá não pararam de crescer e as verbas que estão a ser postas à disposição destas pessoas têm crescido muito significativamente”.
Ao aumento do número de pessoas que se têm aproximado pedindo ajuda juntam-se o de "pessoas que até tinham uma vida arrumada e relativamente bem programada, mas que, mercê de ficarem desempregadas, não podem pagar as coisas fundamentais, como água, luz etc".
Neste contexto, o bispo de Setúbal reitera a sua preocupação com o fim das moratórias, defendendo que “alguma coisa tem de ser feita porque não interessa a ninguém criar uma outra calamidade social que venha deitar por terra todos os esforços que têm sido feitos a nível do país para superar a crise”.
D. José Ornelas admite que estamos perante “uma equação difícil”, mas alerta para que algo se faça de forma a que “não se deixe ninguém para trás, porque se a gente deixar muita gente para trás, essa gente vai pesar constantemente no tecido social, e isso não pode ser porque deita abaixo todo o caminho que temos feito”.
Lição n.º 4 - Igrejas sempre abertas para “nunca deixarmos de estar presentes”
No plano pastoral, o bispo de Setúbal, ao olhar para o passado recente, diz que ainda sente o impacto daquilo que foi “ver tudo praticamente encerrado, sobretudo para nós que trabalhamos com comunidades, com grupos, com pessoas já fragilizadas”.
"Sentimos particularmente a incidência desta crise, às vezes de forma dramática, como nos lares, no encerramento de atividades com as crianças, com os jovens com os idosos” e, sobretudo, “sentimos um impacto muito grande com a impossibilidade de chegar perto e, aí, está aquela que foi mais visível: a interrupção das celebrações no pico das crises”, recorda.
"Como consequência de tudo isto, fez-se notar uma falta de conexão direta com as pessoas, que é o nosso carisma, particularmente com as pessoas mais fragilizadas”, aponta.
D. José lembra "em particular os lares, os hospitais onde tínhamos a nossa presença pastoral, as cadeias e outras instituições deste género que tiveram de ser radicalmente redimensionadas para atender ao valor fundamental que era o de preservar a vida e não ter contágios para ninguém”.
O bispo destaca também o facto de terem surgido, como consequência indireta, “pessoas a carecer de maior atenção, particularmente no que diz respeito às consequências económicas e também de tipo psicológico”.
"Não tem sido fácil gerir todas estas consequências que não terminaram, bem pelo contrário: em alguns aspetos acentuaram-se”, sublinha D. José Ornelas, destacando como sinal desta preocupação evidente o facto de a Diocese ter iniciado “uma linha para ouvir as pessoas que quisessem entrar em contacto”.
“Foi uma coisa agora já mais recente, precisamente na sequência de tudo isto, que se está a lançar apesar de algumas dificuldades técnicas”, adianta.
Ainda assim, o bispo reforça que “nunca deixamos de estar presentes” e que do ponto de vista da ação pastoral, e também das celebrações, "sempre fomos dizendo que as transmissões digitais de celebrações não são para substituir [as clássicas], mas é para tornar possível uma ligação que não é conveniente nem é apropriada nas formas como que o fazemos habitualmente”.
D. José entende que “a Igreja, nesse sentido, deu um exemplo", ao esforçar-se por dizer que "pode fazer bem as coisas, pode fazer as celebrações reduzindo o número de pessoas, multiplicando as ocasiões, mas, ao mesmo tempo, guardando patamares e estilos de estar juntos que, sem porem em perigo as pessoas, possam transmitir-lhes a força e a energia e a esperança que é isso que as nossas celebrações precisem”.
O bispo sublinha que “não é a mesma coisa que estar juntos” e que, por isso, “desde o primeiro confinamento que não fechamos Igrejas”.
“As igrejas deviam estar abertas para quem quisesse rezar, para quem quisesse aproximar-se do sacerdote e para partilhar com as pessoas que precisavam”, refere D. José Ornelas, recordando, por outro lado, que “de facto, as Igrejas foram um ponto de recolha de bens, sobretudo de bens alimentares que depois eram distribuídos pelas pessoas que precisavam”.
Lição n.º 5 - Mau exemplo com emigrantes prova que “não pode ficar ninguém para trás”
“Se alguma coisa aprendemos com esta pandemia, é que não pode ficar ninguém para trás”, diz D. José Ornelas, que lança um olhar critico para a forma como acolhemos as populações emigrantes.
O bispo diz que “ficou bem claro só pela presença ou ausência dos emigrantes que trabalhavam na agricultura, por causa de ficarem confinados, os agricultores queixaram-se de perder milhares e milhares de euros cada dia”. Ora, adianta o prelado, “isto significa que os emigrantes são absolutamente necessários ao nosso desenvolvimento e não podem ser simplesmente espremidos e explorados ao máximo”.
"As pessoas que chegam devem ser bem acolhidas e há experiências muito positivas nesse sentido de boa integração."
“É impensável que um Estado dê direito de residência e não pense que esta pessoa tem de aprender a falar português. Não pode ser”, refere D. José Ornelas para apontar no sentido do desenvolvimento de “uma política positiva de integração de pessoas; integração do ponto de vista de vista da habitação, integração no mercado de trabalho com dignidade para que não sejam exploradas e não caiam nas mãos das máfias que controlam tudo isto”.
O bispo defende a aposta em legislação que fiscalize a forma como é tratada a mão de obra perante os episódios em que “pelo meio das empresas e dos trabalhadores surgem aqueles que sugam e exploram todo o sistema”.
D. José Ornelas afirma que "isto não acontece só em Portugal, é pela Europa inteira e quer-se um sistema de justiça que realmente não deixe pessoas à margem da estrada”, porque “se nós continuarmos assim, o que estamos a fazer é uma bomba-relógio para o futuro e isso não pode ser”.
Lição n.º 6 - Pandemia ensinou-nos a “viver de modo mais simples e mais solidário”
O bispo de Setúbal e presidente da CEP acredita que a pandemia vai também ter um efeito terapêutico na sociedade e D. José Ornelas espera que “isto nos tenha ensinado também a viver de um modo mais simples e mais solidário, de dar importância às coisas que realmente são mais importantes”, até porque “percebemos a falta dos afetos, a falta que faz a família, a falta que fazem os amigos”.
O prelado adianta que “este é um ensinamento para todos” e que a Igreja tem neste plano "um papel muito importante porque precisamente cuida e isto faz parte do seu ADN”.
"Temos de olhar à nossa volta, olhar uns para os outros e uns pelos outros, pois sabemos que uma infeção na África tarde ou cedo vai chegar aqui."
Por último, o bispo admite que, para além das lições, a pandemia também nos envolve em novos desafios porque “existem perigos que é necessário combater”. D. José Ornelas afirma que na Igreja "há o perigo da desagregação provocado pelos longos períodos de confinamento”.
O bispo lembra que se, por um lado, “houve de facto muita gente que continuou o seu trabalho nas paróquias, nas comunidades, com os jovens, com os grupos, no auxilio a quem precisava”, por outro, “houve gente que ficou confinada em casa, ou por medo ou por comunidade, ou porque se habituou que de facto as nossas celebrações são mais cómodas vistas do sofá ou enquanto se faz outra coisa em casa”.
“Espero que este confinamento que nos impediu de nos encontrarmos não crie raízes”, remata.