Podia antecipar-se um défice histórico. Primeiro, a meta do défice desceu dos 1,1% do PIB que constam no Orçamento do Estado (OE) passado para os 0,7% que constam no Programa de Estabilidade 2018-2022 que o Governo enviou para Bruxelas, em abril. Depois, a Direção-Geral do Orçamento anunciou que um segundo semestre “normal” poderia levar ao fecho de 2018 com um défice bem próximo de 0% do PIB.
As receitas crescem 5,3%, ligeiramente acima dos 5,2% implícitos no OE de 2018. Por sua vez, as despesas crescem 2,5%, bem abaixo dos 6,3% aprovados naquele documento. Assim sendo, se a receita continuasse a crescer – o aumento de impostos indiretos pesou no crescimento –, se a despesa se mantivesse controlada – com o investimento público congelado, manter-se-ia –, então a normalidade do segundo semestre era uma certeza.
Fosse o défice 0% do PIB ou fosse próximo de 0% do PIB, desse por onde desse, este défice seria o mais baixo em democracia.
E havia ainda, claro, a vantagem de ter “almofadas” (mesmo que estas venham a desaparecer num futuro próximo) como o bom desempenho da economia, a descida dos juros ou o aumento dos dividendos do Banco de Portugal.
A dúvida do défice adensava-se. E na última quinta-feira mais se adensaria.
Então, o ministro das Finanças reuniu-se no Parlamento, no âmbito da preparação da proposta de OE 2019, com os diversos partidos. O deputado André Silva, do Pessoas-Animais-Natureza (PAN), foi o primeiro a entrar para a audição onde seriam igualmente apresentadas as previsões económicas para o próximo ano. E à saída, André Silva garantia aos jornalistas que Centeno lhe dissera que o défice era zero. Nem 0,7%, nem 0,2%. Zero. Não tardaria a ser notícia. Não tardaria a surgir o desmentido das Finanças à notícia.
Agora, sem dúvida mais para adensar, só certeza: o défice ficou-se mesmo em 0,2% do PIB.
O que constitui um feito imenso para o “Ronaldo” do Eurogrupo, como Wolfgang Schäuble apelidou Centeno. Afinal, Portugal nunca foi propriamente de contas certas. Desde o início do século XIX, o país viveu sete crises económicas graves e cinco casos de bancarrota total. Mais recentemente, o FMI foi chamado a intervir nas décadas de 1970 e 1980. Isto sem esquecer, claro, a intervenção da troika em 2011.
Centeno consegue o melhor défice em mais de quatro décadas que Portugal vive em democracia. A última vez que Portugal alcançou tal resultado (com défices próximos de zero, zero propriamente dito, ou até excedente orçamental) foi ainda durante o Estado Novo.
Entre 1928 e 1940, António de Oliveira Salazar esteve à frente das Finanças. Seguiram-se João Lumbrales, Artur Oliveira, António Pinto Barbosa, Ulisses Cortês, João Dias Rosas e Manuel Costa Dias. Desde 1933 e até à queda do regime, registaram-se vários anos com défice zero ou excedente. Considerando para o cálculo a despesa pública total, incluindo, portanto, encargos com a dívida (juros e amortizações), não se registou défice nos anos de 1935, 1937, 1942 e 1952. No entanto, se considerarmos a dívida pública efetiva -- sem amortizações da dívida nem juros –, há 11 anos a registar: entre 1934 e 1937, 1942, entre 1951 e 1953, entre 1957 e 1958, e 1970.
Como é que Salazar o fez? Desde logo, com recurso a um brutal aumento de impostos. Logo que chega ao Terreiro do Paço, não tardaria a criar, em 1928, a taxa de salvação nacional – que mais não era do que um imposto sobre o consumo de produtos como o açúcar ou gasolina. Outro dos impostos (que não é autoria sua, mas herdou de Artur Ivens Ferraz) a que Salazar recorreu para organizar as contas foi o imposto de salvação pública. No fundo, este consistia num corte, entre 2% e 6%, dos vencimentos dos funcionários públicos.
Enquanto foi ministro das Finanças, Salazar viu a receita fiscal aumentar 19%.
Mas recuemos mais. Desde o início da segunda metade do século XIX, primeiro durante a Monarquia Constitucional, depois, a partir de 1910, na Primeira República, seguindo a Ditadura Militar e o Estado Novo, Portugal registou em 31 ocasiões défice zero ou mesmo excedente.
É certo que durante a Primeira República, muito em face dos condicionalismos resultantes da Primeira Guerra Mundial e da crise do pós-guerra, não se registou tanta ausência de défice quanto na Monarquia Constitucional (apesar da bancarrota de 1892, houve, antes e depois, sete anos com défice zero) ou durante o próprio Estado Novo. No entanto, as reformas promovidas então por Vitorino Guimarães (assumiu em quatro momentos diferentes, entre 1915 e 1925, as Finanças) foram de sobremaneira importantes, quer para Sinel de Cordes e Ivens Ferraz, já após do Golpe de 28 de Maio, quer, e sobretudo, para o próprio Salazar.
Voltando a Centeno. Poderá dizer (e diz) a oposição que podia ter ido mais além. Que podia o défice ser zero já em 2019 se Portugal seguisse, qual “bom aluno”, o ajustamento estrutural exigido pelas regras europeias. Mas o que é que o défice mais baixo alguma vez alcançado em democracia, seja ele 0% ou 0,2% do PIB, tem de bom?
Em traços simples: o défice mede quanto é que o Estado gasta a mais do que a receita que cobra. Mas não podemos atentar ao défice somente como um “saldo”. Não é.
Sempre que um Estado gasta mais do que o que cobra, precisa de emitir dívida pública. E emitir dívida implica pagá-la. E implica pagar juros. Portugal vai chegar ao final de 2019 com uma dívida de 121,2% do PIB – o que faz do Estado português o terceiro mais endividado da zona euro, só à frente da Grécia e da Itália. O próprio António Costa, em entrevista à TVI no início de outubro, lembrava que um défice como o que agora o Governo alcança é fundamental para que a dívida pública diminua.