O problema de uma blitzkrieg – um guerra relâmpago – é quando não resulta. Se funciona, o invasor enfrenta pouca resistência e as defesas do adversário, apanhadas de surpresa, desmoronam-se rapidamente. Mas quando esse tipo de estratégia não surte efeito, as intenções do invasor ficam à mostra de todos; negá-las é apenas reforçar o bluff.
No xadrez, dá-se um fenómeno análogo. Há jogadas um tanto mais arriscadas para abrir um jogo, mas que prometem um retorno rápido. O agora famoso Gambito da Rainha (devido à série da Netflix), por exemplo, consiste em sacrificar o peão que protege a Dama para ganhar, logo no início da partida, o domínio do centro do tabuleiro. O problema é quando o adversário não cai na ratoeira. Ou consegue escapulir-se dela.
A 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin abriu a invasão da Ucrânia com a jogada mais arriscada da sua carreira política. Porventura, sem se aperceber. Do outro lado do tabuleiro, tinha um novato do xadrez político; até 2019, Zelenskiy, tinha experiência apenas como comediante e ator. Três anos antes, a Rússia conquistara a Crimeia sem grande resistência por parte das forças militares ucranianas; por via da propaganda, conseguira também fomentar movimentos separatistas nas regiões de Lugansk e Donetsk.
Putin esperava, por isso, que a conquista e anexação da Ucrânia não demorasse mais de dois dias; acreditava que iria ser acolhido como reunificador da “grande pátria” russófila. Ninguém imaginava que os ucranianos oferecessem tanta luta – nem os Estados Unidos da América, que nos primeiros dias do conflito ainda se ofereceram para tirar Zelenskiy de Kiev. “Preciso de munições, não de boleia”, disse então o presidente ucraniano.
Cem dias depois do início da guerra, contudo, as peças – com muitos avanços e recuos - ainda estão em movimento. Segundo os Serviços Secretos Ucranianos, o conflito pode durar, pelo menos, até ao final do ano; representantes da NATO colocam o prazo no plural: anos.
A Rússia já dominou grande parte do tabuleiro, mas a Ucrânia – em parte, impulsionada pelas sanções internacionais e pelo o apoio militar dos EUA e da União Europeia, e também graças à desorganização das forças militares russas – recuperou terreno. Tanto que a possibilidade de ganhar o conflito é já falada abertamente. Mas Zelenskiy é prudente.
O presidente ucraniano já disse ser “óbvio para todos no mundo que a Rússia sofreu uma derrota estratégica”. Porém, afirmou que a fase mais complexa e “sangrenta” da guerra pode ainda estar prestes a começar. Incapaz de dominar todo o território ucraniano, Putin parece ter deixado de jogar para o xeque-mate, mas antes para prolongar o conflito – e assim não pôr em causa a sua liderança. Ao centésimo dia de guerra, perdeu o domínio da partida que pensava ganhar à primeira jogada.
O “garfo” das negociações
O Gambito de Putin, a aposta numa blitzkrieg, quase funcionou. Após a invasão, em poucos dias, as forças militares russas, que durante meses se haviam arregimentado nas zonas fronteiriças entre a Rússia e Ucrânia, chegaram muito perto de Kiev. Alegadamente, houve várias tentativas de assassinar o presidente ucraniano – em teoria, o xeque-mate mais rápido possível. (Na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha conquistou a Bélgica, Holanda e parte significativa de França em cerca de seis semanas.)
A capital ucraniana e muitas localidades vizinhas foram bombardeadas. O maior avião do mundo, o Antonov An-225 Mriya, estacionado do aeroporto de Gostomel foi destruído. A energia da central nuclear de Chernobyl foi cortada. A maternidade de Mariupol foi atacada. Um aeródromo perto da fronteira com a Polónia foi destruído.
Ao aplicar a chamada técnica do “garfo” – usar uma peça para atacar duas ou mais peças do adversário ao mesmo tempo - o Presidente russo deu provas de ser um jogador experiente. Tentou encurralar Zelenskiy em Kiev, enquanto fomentava encontros para negociações de paz entre representantes dos dois governos.
A Rússia esteve na mó de cima. Moscovo chegou a desenhar um “plano em 15 pontos para a paz”, uma forma de rendição condicionada. Para isso acontecer a Ucrânia tinha “apenas” de declarar a sua neutralidade, desistir de uma futura adesão à NATO e recusar bases militares de países da Aliança Atlântica. Se estas condições fossem atendidas, Putin aceitaria um encontro tête-à-tête com Zelenskiy.
Publicamente, o líder ucraniano ainda chegou a abrir mão da adesão à NATO, dado que a Aliança “não estava pronta para aceitar a Ucrânia”. Mas foi a única cedência. Afinal, o que que os representantes russos diziam à mesa de negociações não correspondia ao que as operações militares estavam a levar a cabo, ou aos ataques recorrentes aos corredores humanitários que prometiam abrir. Os russos – como o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov à cabeça – estavam a fazer bluff.
A 18 março, num evento em que se comemorava o oitavo aniversário da anexação da Crimeia, Putin discursou num comício num estado de futebol lotado, em Moscovo, e disse que o conflito na Ucrânia era uma luta contra o “genocídio” da comunidade russófila das regiões do Donetsk e de Lugansk. "Sabemos o que precisamos fazer, como fazê-lo e a que custo. E cumpriremos por completo todos os nossos planos", prometeu.
A disposição das peças no tabuleiro, contudo, já não estava a favor de Putin; as tropas russas estavam a encontrar mais resistência do que o esperado, viam-se obrigadas a recuar no terreno, abandonar as localidades nos arredores de Kiev.
Ao 40.º dia de conflito, em Bucha, foram descobertos centenas de civis mortos e valas comuns – atos que ainda estão a ser investigados e constituem potenciais crimes de guerra. As negociações de paz terminaram.
Em defesa de Zelenskiy
Face às atrocidades ocorridas na Ucrânia, mas sem quererem entrar diretamente na guerra, os EUA e muitos dos países da União Europeia deram, desde o início do conflito, apoio – financeiro e de equipamento militar – a Zelenskiy. Colocaram-se bem perto dos ouvidos do presidente ucraniano e começaram a sussurrar-lhe informações, potenciais jogadas. O confronto desigual à partida tornou-se assim algo mais equilibrado.
Fora do tabuleiro, Putin (e a Rússia) viu-se asfixiado por sanções – que atingiram desde as próprias filhas aos oligarcas associados com o regime. Karl Nehammer, o chanceler austríaco, foi a Moscovo para confrontar diretamente o Presidente tusso. A conversa foi "muito direta, aberta e dura".
No entretanto, Zelenskiy deixou de ser obrigado a jogar à defesa. Por momentos, acalentou a ideia de se criar uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia. Parafraseando o famoso “I have a dream” (“Eu tenho um sonho”) de Martin Luther King, Zelenskiy disse , perante o Congresso dos EUA: “Eu tenho uma necessidade, a necessidade de proteger o nosso céu. Preciso da vossa decisão, da vossa ajuda.” Nem a UE nem o EUA fizeram a vontade ao presidente ucraniano. Mas a dinâmica do tabuleiro na Ucrânia era-lhe já favorável.
Kiev conseguiu afundar o cruzador de mísseis Moskva, o principal navio de guerra da frota russa no Mar Negro. As tropas russas – desorganizadas, mal equipadas - viram-se obrigadas a recuar e reagruparem-se nas zonas de fronteira; a região do Donbass passou a ser a nova prioridade, começou o cerco de Mariupol.
De visita à Ucrânia, Úrsula Von der Leyen reagiu ao massacre de Bucha, quando visitou a localidade, dizendo: “Vimos aqui a humanidade a ser despedaçada e o lado mais bárbaro do exército de Putin.” (Dias depois, o Presidente russo condecorou os soldados suspeitos por ter levado a cabo aqueles assassinatos.) Num lapso quasi-freudiano Joe Biden disse também: “Por amor de Deus, este homem [Putin] não pode continuar no poder!”
O futuro de Putin na liderança da Rússia passou a estar ligado ao desenlace da partida de xadrez que começou. Nem as ameaças veladas que fez de usar armamento nuclear deram resultado.A guerra ganha pela Ucrânia?
Ao 75.º dia de guerra, o Presidente russo começou a gerir expectativas, redefiniu objetivos. Isso ficou patente no discurso de 9 de maio. As palavras de Putin, na data em que se comemoravam os 77 anos da capitulação nazi, prometiam sinalizar como e em que medida se ia passar o contra-ataque russo na Ucrânia. Fonte do Ministério da Defesa russo disse à agência “Reuters” que vinha aí um “aviso apocalíptico”.
Perante milhares de militares, todavia, Putin foi mais contido do que se antecipara. Em vez de atirar à Ucrânia, atirou à NATO. Insistindo na tese da desnazificação do país vizinho, disse aos presentes que estava a fazer “de tudo para que a guerra não volte”. De Kiev, Zelenskiy ripostou: “Muito em breve vai haver dois Dias da Vitória na Ucrânia." E assegurou que não iria dar "nem um pedaço de terra" à Rússia.
Tudo indica que, ter começado um conflito para afastar a Ucrânia da NATO – uma das teses defendidas - trouxe consequências inesperadas para Putin. Primeiro, unificou a Aliança Atlântica. Segundo, fê-la expandir. Tanto a Finlândia como a Suécia, países nórdicos cujas populações não eram favoráveis à NATO até à invasão da Ucrânia, em poucas semanas, mudaram de opinião. Ambos já formalizaram pedidos de adesão.
No terreno, as forças russas – que já perderam quase 30.000 soldados - deixaram de tentar tomar a capital da Ucrânia. Passaram antes a sedimentar o controlo nas regiões fronteiriças do leste; em alguns casos, aplicando a estratégia de “terra queimada”, à semelhança do que ocorreu na Geórgia em 2008: se não podem conquistar, destroem, reduzem a cinzas. Putin viu-se ainda obrigado a alargar a idade do recrutamento militar para até aos 65 anos, de forma a alistar mais soldados para combater.
Enquanto isso, a Ucrânia começou com mão dura o julgamento dos militares russos detidos. Vadim Shishimarin, com 21 anos, foi condenado a prisão perpétua pela morte de um homem de 62 anos na cidade de Sumy, nos arredores de Kiev, durante os primeiros dias da ocupação russa. O tom do conflito mudou.
A 25 de maio, Zelenskiy afirmou que o fim da guerra depende da "vontade de diferentes partes: da vontade de um Ocidente unido em termos de armamento e solidez financeira da Ucrânia”, mas também da vontade da Rússia. "Em qualquer caso, haverá um processo de paz e haverá uma mesa de negociações, e haverá definitivamente paz", disse, deixando uma farpa diretamente para Putin: a “questão é com quem”, com que Presidente russo, irão ser as “negociações”.
Esta sexta-feira, 3 de junho, as peças no tabuleiro continuam em movimento, a partida prossegue. E pode não ter fim à vista. No xadrez, o empate é uma possibilidade. Acontece que para Putin esse resultado – conquistar apenas regiões de Lugansk e Donetsk – será algo muito próximo de uma derrota. O mesmo para o presidente ucraniano – caso não consiga garantir a soberania em todo o território nacional.