Na véspera de presidir à Consagração de Portugal e Espanha ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria, o cardeal António Marto fala à Renascença sobre a importância deste momento de oração, e das iniciativas anunciadas pelo Papa para esta semana.
O bispo de Leiria-Fátima acredita que as medidas que o Estado tem tomado para enfrentar a pandemia do novo coronavírus têm sido as corretas, e devem ser acatadas pelos portugueses.
A viver, também ele, em isolamento social, diz que lhe faz falta o contacto com as pessoas, mas acha que este tem sido um tempo de grande “criatividade” do ponto de vista espiritual e de comunicação na Igreja. D. António elogia ainda a forma como as paróquias, dioceses e movimentos têm aproveitado a internet e os novos meios ao dispôr para estarem mais próximo das pessoas, transmitindo missas e outras celebrações.
Estamos em Estado de Emergência. Como é que avalia as decisões que têm sido tomadas pelas autoridades e a reação e colaboração dos portugueses?
Creio que as autoridades tomaram esta crise muito a sério, apesar de algumas hesitações no início, mas têm-se mostrado à altura do momento, merecem todo o apoio, porque têm a responsabilidade de tomar medidas duras que não agradam a todos, mas que são para o bem comum, merecem por isso o nosso reconhecimento. Têm tomado medidas oportunas e no momento oportuno, como a do Estado de Emergência.
Da parte dos portugueses também me parece que tem havido um acolhimento muito responsável da parte da população em geral, com muita colaboração, salvo algumas exceções que têm sido dadas a conhecer. Mas, este é o momento de chamar todos à responsabilidade, de cada um por todos e de todos por cada um, de levarmos a sério as medidas das autoridades que nos são recomendadas e impostas, e aceitá-las como um ato de responsabilidade e solidariedade.
A Igreja antecipou-se às restrições, optando pela suspensão das missas e celebrações. Foi uma decisão difícil? Era inevitável?
Foi uma decisão difícil e, diríamos mais, dolorosa. Penso que é a primeira vez que acontece isto na história da Igreja, mas era inevitável.
Não se trata propriamente da suspensão das missas, mas da suspensão da celebração comunitária das missas, para se evitar a aglomeração das pessoas, que favoreceria o contágio. A Igreja tomou a decisão no momento oportuno, com a consciência da responsabilidade que lhe cabia, sendo um sinal para toda a sociedade.
A decisão terá contribuído para haver maior consciência sobre a gravidade da situação?
Eu penso que sim, porque, queira-se ou não, toda a gente – católicos ou não católicos, crentes ou não crentes – olha para a Igreja e compreende o significado daquilo que ela faz, ou daquilo que ela omite. Por conseguinte, foi um sinal evangelizador, até, da própria Igreja, porque o Evangelho não se reduz à celebração, à dimensão do culto ou da oração, é também o trabalho e o empenhamento pelo bem da saúde, da vida, das pessoas e da sociedade.
De resto, as autoridades já elogiaram esta atitude da Igreja Católica...
Sim, já reconheceram. Enfim, há algumas franjas que não aceitaram bem…
Houve dentro da Igreja quem criticasse a decisão, aconteceu até na sua diocese de Leiria-Fátima. Como é que responde a essas críticas?
A gente compreende que sintam este aspeto doloroso – como eu, como bispo, e os padres o sentem. Mas temos de compreender que Jesus, que curou os doentes e confiou esta missão à Igreja, foi em ordem a curar e não a contagiar, ou contribuir para o contágio da doença e para a morte das pessoas. Por isso, esta medida deve ser considerada como um ato de amor e de respeito, um testemunho do Evangelho da vida. Porque falamos muito da proteção e defesa da vida, mas isso tem de ser em todos os aspectos, ao longo das várias etapas da vida, das várias situações, e esta é uma delas. É o exercício da caridade, do respeito pelos outros e pela vida dos outros.
No caso do Santuário de Fátima também era inevitável impôr restrições?
Sim. Era inevitável, porque se o Santuário permanecesse aberto e em atividade continuaria a ser um grande centro de aglomeração de pessoas, e seria um dos lugares de contágio do vírus, por isso era inevitável tomar esta opção.
Quando é que as restrições poderão ser levantadas? Essa avaliação vai ter de se ir fazendo?
Depende do evoluir da situação e das indicações da Direção-geral de Saúde, que vamos acompanhando. Mas, pelo menos até à Páscoa seguramente mantêm-se, até porque já recebemos de Roma as indicações para celebrar a Semana Santa sem a assembleia do povo.
A Igreja poderá vir a colaborar com o Estado a outros níveis?
Já tem colaborado. Conheço três casos, pelo menos: a arquidiocese de Braga pôs à disposição um hotel no Bom Jesus, para os profissionais de saúde, a diocese de Aveiro também pôs à disposição uma ala do seminário, e aqui na diocese de Leiria também disponibilizámos uma casa de retiros, em resposta ao que nos foi solicitado, sobretudo pelos profissionais de saúde, pelos agentes sanitários.
Como é que tem vivido estes dias, em termos pessoais? Está também em isolamento?
Pois, naturalmente, tenho de dar o exemplo, não só para o meu bem pessoal, para me precaver, mas também para ser exemplo para a própria diocese.
Tenho vivido no confinamento aqui da Casa Episcopal. Tenho a sorte de ter um claustro para poder passear cá dentro, e é uma espécie de retiro, onde vou pondo em dia coisas que estavam atrasadas. Vou preparando coisas em ordem ao futuro, para a Semana Santa, por exemplo. Os contactos são feitos telefonicamente com os vários colaboradores.
Tenho também de referir este aspeto, o da oração: aqui em casa vivemos quatro pessoas, duas religiosas que tomam conta dos serviços da casa, o bispo e o vigário geral, e todos os dias rezamos o terço unidos, mais a oração de evocação da proteção de Nossa Senhora, a oração composta pelo Papa, outra criada pelos bispos europeus, e ultimamente ainda outra, muito bonita, composta por um padre italiano, e que evoca a proteção dos Pastorinhos.
Também tenho permanecido unido a este povo através das novas tecnologias. Celebro missa ao Domingo, aqui na capela da Casa Episcopal, e é transmitida pelo YouTube, no site diocesano.
Do que é que sente mais falta?
A coisa que sinto mais é a falta de contacto, de relação com o povo. Tinha encontros marcados com jovens, com os vários órgãos do Conselho Pastoral Diocesano, do Conselho de Coordenação Pastoral, tudo isso foi cancelado.
Por estes dias temos visto como diversas paróquias, dioceses, congregações e movimentos se têm desdobrado em iniciativas, aproveitando a internet e as redes sociais para transmitir eucaristas ou rezar o terço. Os jesuítas até criaram um serviço de assistência espiritual à distância. Como é que vê esta nova dinâmica evangelizadora? A Igreja está a reinventar-se na foma como comunica com os fiéís?
Esta é uma oportunidade, de facto, para a Igreja poder servir-se dos novos meios de comunicação, nesta ocasião concreta e depois em relação ao futuro. Em primeiro lugar estão a ser usados como meio de exprimir a proximidade espiritual da Igreja com o seu povo, para que não se sinta abandonado, e não pense que por acabarem as celebrações comunitárias acabou a oração e o culto. Não. Não dá para ser de outra maneira, mas os novos meios de comunicação tornam isto possível.
Em segundo lugar estes meios permitem realizar uma comunhão espiritual na mesma fé, no mesmo amor, na oração entre todos os fiéis. Não se trata só de algo meramente virtual, creio que o Espirito Santo passa também através destas novidades do mundo de hoje e fala aos corações, fala às consciências, fala aos pequenos e aos grandes, e proporciona-nos viver a intimidade com Deus, e viver até uma intimidade profunda, de comunhão entre todos.
Outra valência é a da Evangelização, oferecendo também meios, modos, elementos em ordem à escuta da Palavra de Deus, valorizar a Palavra de Deus como o Pão da Palavra, isso é muito importante para os católicos descobrirem também.
É uma experiência nova que deixará marcas para o futuro?
Sim, de promessa para o futuro.
Outro nível de preocupação relacionado com a pandemia é a situação económica. Já teve ecos de dificuldades nas empresas da região?
Para já só aquilo que dizem os jornais, mais nada. Mas, a meu ver isto vai ter consequências bastante graves e duradouras. Será inevitável, pois isto é a nível mundial. O próprio Papa Francisco, que se antecipa sempre aos problemas, já decidiu convocar o Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, a fim de refletir sobre as consequências económico-sociais que vão permanecer pós-pandemia, e sobre as quais é preciso refletir, e desde já até tomar medidas para evitar o desemprego, que vai atingir certamente muita gente. Também se fala em recessão económica a nível mundial.
O momento é ainda de incerteza. Nem os responsáveis políticos a nível mundial sabem o que vai acontecer. Sabe-se é que a vida não será como foi até aqui.
Vai presidir esta quarta-feira, em Fátima, a um momento nacional de oração: começará com a recitação do terço das 18h30 – que a Renascença transmite – “pelas vítimas do novo corona virus, seus familiares e trabalhadores sanitários”, a que se seguirá a Consagração ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Que importância tem este momento que agora será ibérico, depois dos bispos espanhóis terem dedicido associar-se?
A iniciativa partiu do nosso povo católico. Houve um abaixo assinado com milhares de assinaturas, que foi entregue ao presidente da Conferência Episcopal (D. Manuel Clemente). Todos os bispos foram consultados sobre a oportunidade da iniciativa, e todos concordaram com a renovação da Consagração de Portugal – e agora também de Espanha e das ilhas Canárias e Balneares – ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria.
Vai acontecer num dia liturgico muito significativo, porque é o Dia da Anunciação do Mistério da Encarnação, do Filho de Deus que se fez Homem, e assumiu os limites e as dores da nossa humanidade, sempre acompanhado pela sua Mãe, Maria, que esteve de pé junto à cruz.
O Papa convocou entretanto para dia 25, a nível ecumémico, todos os cristãos, não só católicos, para rezarem o Pai Nosso todos unidos, ao meio-dia. Isso deu ainda mais sentido à nossa iniciativa em Portugal, porque o Papa disse "à pandemia do vírus queremos responder com a universalidade da oração, da compaixão e da ternura", e isto é típico da nossa fé cristã, fazer tudo o que está ao nosso alcance, e ao memso tempo confiar na ação de Deus em nós, e através de nós. Esse é o sentido da Consagração: confiarmo-nos a nós mesmos, e confiar as nossas dores a Jesus e a Maria, nossa Mãe.
Esta oração de Consagração, de nos confiarmos e confiar Portugal e a Espanha à proteção divina de Jesus e de Maria, é feita em união com todas as dioceses, por isso convido todos os católicos a associarem-se e a participarem através dos meios de comunicação social, não como quem assiste passivamente, mas como quem participa espiritualmente, num lugar da própria casa, numa atitude de recolhimento, de oração. Faço este apelo para que todos possamos sentir a força desta oração, que nos ajuda a tomar consciência da nossa própria responsabilidade e a enfrentar as adversidades num espírito de amor solidário.
Como é que vê a outra iniciativa do Papa, que sexta-feira, dia 27, dará a benção Urbi et Orbi, e concederá a indulgência plenária. Isto é importante para os crentes se sentirem acompanhados?
O Papa quer mostrar que a Igreja não está indiferente ao drama que em alguns casos, como em Itália, se está a tornar numa tragédia, com um número impressionante de mortos, e quer pôr toda a Igreja em oração e em solidariedade. Por isso realiza esse gesto, que vale mais do que as palavras. Será um momento de oração, de escuta da Palavra, de meditação, numa praça que vai ficar vazia, mas com a qual todos são chamados a unirem-se espiritualmente. E depois haverá a benção Urbi et Orbi – que quer dizer "à cidade e ao mundo" – com o Santíssimo, que é a beção do Senhor. É um gesto muito significativo, muito eloquente e comovente.,
Estamos a caminho da Páscoa, um dos momentos mais importantes na vida dos cristãos. Quer deixar alguma mensagem aos crentes nesta Quaresma que está a ser tão diferente?
Este momento que estamos a viver, a quarentena, ajuda-nos a viver a quaresma cristã. Porque a Quaresma é feita, toda ela, como um caminho de conversão, e esta quarentena põe-nos num caminho de reeducação humana e espiritual de grande importãncia, porque nos obriga e nos interpela a repensar a nossa maneira de viver, pessoal e social, o nosso estilo de vida, os nossos hábitos. Por conseguinte é uma revisão de vida, em ordem a uma purificação, a uma renovação também do ponto de vista cristão, um momento de oração mais intensa – como nas iniciativas quer do Papa, quer da Igreja em Portugal, quer através das novas tecnologias de comunicação – em ordem a chegarmos a uma Páscoa nova, em que possamos viver o reencontro da alegria comunitária, entre todos, dos fiéis, com os pastores, onde possamos exprimir de novo os nossos afetos, dos quais tivemos de nos abster, como o gesto da paz na missa.
É preciso consciencializarmo-nos que neste momento Deus nos chama a viver a Páscoa em casa, em família, o que não quer dizer deixar de viver a Páscoa. O Espírito Santo não nos faltará para nos ajudar a viver uma Semana Santa e uma Páscoa profunda, mesmo no meio da tristeza das doenças ou dos lutos, no meio deste drama que não sabemos ainda todas as dimensões nem que duração terá. Mas, penso que será uma Páscoa autêntica, verdadeira, se for vivida neste espírito de intimidade com Deus, de comunhão entre todos dentro da própria família. Pode não haver visita pascal, como é costume no norte, mas há um crucifixo, um ramo de flores, uma oração que se pode fazer em família, com uma vela acesa, para mostrar que o Senhor ressuscitado está presente ali como Aquele que nos une e reúne a todos à volta da mesa.
Haverá de novo criatividade para encontrar alternativas?
Não esqueçamos que todo este tempo tem sido de muita critatividade do ponto de vista espiritual e de comunicação na Igreja.