A inteligência artificial não dominará o mundo, mas pode descobrir medicamentos
08-11-2017 - 06:44
 • Elsa Araújo Rodrigues

Doenças como o cancro e o Alzheimer podem ter novos tratamentos pondo as máquinas à procura de soluções. É o trabalho de Jérôme Pesenti, presidente da BenevolentAI. Uma conversa com a Renascença na Web Summit.


Máquinas, robôs e sobretudo algoritmos que “pensam” por si próprios. É essencialmente disso que se fala quando se fala de inteligência artificial (IA), um dos temas mais debatidos na Web Summit deste ano, que começou esta segunda-feira em Lisboa. Os computadores vão mesmo “mandar” nos humanos? Não, garante Jérôme Pesenti, presidente da BenevolentAI.

Esta empresa britânica, com sede em Londres, desenvolve sistemas de inteligência artificial para ajudar os cientistas a criarem medicamentos para tratar doenças como o cancro ou o Alzheimer.

Pesenti, que esteve no desenvolvimento do popular projecto Watson da IBM, foi um dos oradores em destaque na conferência de tecnologia, onde apresentou algumas das formas como a inteligência artificial já está a mudar a forma como vivemos.

Em entrevista à Renascença, explicou porque é que um erro pensar que a IA vai passar a governar os destinos do homem. Mas, afinal, de que forma é que a IA está a mudar o mundo? Jérôme Pesenti deu cinco respostas optimistas, ou não tivesse chamado à sua empresa “benevolente” – porque acredita numa utilização positiva da inteligência artificial.

A sua empresa tem um nome curioso para uma tecnológica. Representa uma visão positiva da inteligência artificial.

A BenevolentAI [qualquer coisa como "inteligência artificial benevolente", em tradução literal] tenta usar a inteligência artificial para acelerar as descobertas científicas. Usamos a palavra benevolente porque acreditamos que facilitar e ajudar a ciência é uma coisa boa para a humanidade. E a primeira coisa na qual nos estamos a focar é em arranjar novos tratamentos para doenças, novos medicamentos, fazer testes clínicos e colocá-los no mercado.

Antes de falarmos com mais detalhe do que faz a sua empresa, terminou a sua apresentação com um pedido de esperança. Pediu: não tenham medo da IA. A inteligência artificial vai mesmo beneficiar a humanidade e ser benevolente para todos?

Como qualquer outra tecnologia disruptiva, a inteligência artificial não é em si mesma boa nem má. É uma força com a qual temos de lidar. No nosso caso, focamo-nos no lado bom da inteligência artificial e tentamos tirar o melhor partido dele.

Na apresentação, falou em cinco formas com a inteligência artificial está a mudar o mundo.

Sim. A IA vai tornar a nossa interacção com os computadores mais natural. Fomos treinados para interagir com o computador geralmente através de um teclado. Mas essa interacção pode ser feita de forma mais natural, tal como fazemos quando interagimos com outros humanos. Essa é uma das aplicações da IA, a outra tem a ver com a tomada de decisões.

Os computadores são muito bons a processar grandes volumes de informação, ao contrário dos humanos, que têm uma capacidade limitada para o fazer. Aquilo que os humanos são bons a fazer é a raciocinar e a compreender as coisas num nível mais elevado. A AI vai permitir aos humanos tomar decisões mais informadas, com base na triagem do enorme volume de informação que conseguem fazer.

E de que forma é que isso vai facilitar o processo criativo e intelectual?

Pode ajudar a ter novas ideias, mais fundamentadas, que é aquilo que a minha empresa faz. Hoje em dia, quando os investigadores têm novas ideias, elas nascem do chamado "momento eureka". As ideias surgem de forma um bocado extemporânea.

Acredito que a IA nos pode ajudar a ter ideias de forma sistemática porque pode processar a informação que está dispersa por aí e detectar eventuais padrões e ligações que não são visíveis à primeira vista. O nosso papel é propor essas ideias aos cientistas para que tenham um ponto de partida para trabalhar.

As tarefas mais criativas vão estar sempre reservadas aos humanos e os computadores vão "apenas" fazer os trabalhos menos interessantes e mais rotineiros?

Acredito que os computadores, tal como as máquinas o fizeram no passado, vão substituir o trabalho mais duro. Há 200 anos, 97% dos americanos trabalhavam nos campos. Se hoje perguntarmos às pessoas se querem ir para o campo para fazer trabalho pesado, acho que ninguém vai responder que sim. Daqui a 50 anos, as pessoas não fazer muito do trabalho que hoje fazem porque o vão considerar pouco criativo e demasiado aborrecido.

A inteligência artificial vai acabar por realizar muito do trabalho que as pessoas não querem fazer porque não é muito interessante. Os humanos vão ficar com os empregos mais criativos. A IA pode ajudar com a criatividade, mas as tarefas mais interessantes vão ser feitas por humanos.

No caso particular dos sistemas de inteligência artificial que desenvolve, a IA pode vir a criar uma droga com o poder de destruir os humanos?

Nunca vai acontecer. Até agora, as coisas funcionam como uma parceria. Não é carregar num botão e a IA cria uma droga, um medicamento e este passa a estar no mercado. A IA pode "criar" uma determinada droga, mas terá sempre de ser uma ideia subscrita, analisada e vetada por humanos. As pessoas nunca poriam algo no mercado que fosse prejudicial para os humanos. O objectivo é optimizar o sistema de criação de novos medicamentos para o melhorar, para o tornar menos prejudical.

É uma visão muito optimista da inteligência artificial e das suas implicações num campo muito sensível como a saúde.

O debate em volta da ideia de que a inteligência artificial vai dominar o mundo é um equívoco. Actualmente são os humanos que têm que dar ordens aos sistemas de IA, temos que ser nós a dizer de que forma é devem optimizar a criação de novos medicamentos e como devem funcionar. Claro que algumas vezes os sistemas de IA podem pregar-nos partidas porque não sabemos com exactidão para o que é que os estamos a programar. Mas, no caso dos medicamentos, tentamos realmente fazê-lo da forma mais benéfica possível.

Sobre que tipo de medicamentos é que os sistemas de IA da sua empresa pesquisam? Que doenças querem tratar?

O nosso foco é nas pequenas moléculas, como, por exemplo, aquelas que compõem os comprimidos que as pessoas tomam com frequência. Não estamos apenas a investigar uma molécula para uma única doença. E por isso é que recorremos à IA, estamos a tentar "apanhar a fruta nos ramos mais baixos". Isto quer dizer que estamos a identificar as lacunas mais imediatas a suprir.

Com os nossos sistemas, analisamos toda a literatura científica disponível, todos os estudos clínicos realizados até hoje e tentamos responder à pergunta: o que é que os cientistas não conseguiram ver, o que é que escapou? Será que não conseguiram ver algo importante porque está enterrado debaixo de uma pilha de informação?

Estão a passar tudo que foi feito até agora a pente fino.

Sim. Estamos a fazer uma análise algo oportunista e olhamos para muitas doenças diferentes, do Alzheimer ao cancro, passando por várias doenças raras.

No futuro, os sistemas de IA podem encontrar uma forma ou um medicamento para tratar estas doenças?

Podem ajudar, baixando o custo de todo o processo. E também podem acelerar esse mesmo processo. Não estou com isto a dizer que vão ser queimadas etapas no que diz respeito aos ensaios clínicos. Os humanos serão sempre uma parte muito importante de todo o processo de criação de novas drogas e medicamentos. Mas é claro que os sistemas de IA podem ajudar a melhorar a forma de o fazer.

Na prática, como funciona o vosso sistema de inteligência artificial?

Consegue ler e entender parte da linguagem. Ou seja: criámos um sistema que consegue ler um artigo científico e compreender sobre o que é que trata, a que doença se refere, quais os genes que aparecem referenciados. Consegue extrair esse tipo de informação.

O sistema tem a capacidade de ler tudo o que já foi publicado sobre determinada doença e entender o que lá está escrito. Num segundo momento, agora que o sistema já sabe do que trata, pode "pensar" essa informação. Por exemplo: se “ler” um artigo que diz que o gene A está relacionado como o gene B e ler noutro sítio que este gene está ligado à doença C, então, o sistema pode fazer um raciocínio mais directo de que o gene A está relacionado da forma X com a doença C.

Estabelece novas relações entre informação que já se conhecia.

Sim. O sistema pode colocar à disposição do cientista informação "nova", informação que este ainda não conhecia porque não é humanamente possível ler um volume muito elevado de artigos científicos. Mas um computador pode fazê-lo. Em resumo: o sistema lê tudo o que há para ler sobre o tema, faz inferências a partir dessa informação e depois apresenta-as ao cientista.

A equipa é composta por médicos e especialistas em “big data”.

Absolutamente. Esse é o ingrediente secreto. Temos pessoas que tratam da engenharia do sistema, do “software” e também cientistas que estão a tentar descobrir algo novo. Não estamos no negócio de venda de “software”, mas estamos efectivamente a desenvolver medicamentos e a colocá-los em ensaios clínicos.

Já desenvolveram algum medicamento que esteja em vias de ser comercializado?

Temos um medicamento num ensaio clínico de fase 2 [a etapa que avalia a eficácia terapêutica do novo medicamento e tenta determinar a dose e a resposta à molécula, realizado com um número limitado de pacientes com a doença], que acabou de começar. Estamos a pensar começar um ensaio clínico de fase 1 no princípio do próximo ano. E temos outros possíveis medicamentos na calha, mas o processo de descoberta de novas moléculas é muito longo. O processo é moroso, demora até que o medicamento final possa chegar ao mercado.