De onde vem esta ideia do fim da Europa? Os intelectuais vêm discutindo isto há muito tempo.
A Europa acabou várias vezes no século XX e o debate clássico sobre o fim da Europa é a seguir à Grande Guerra de 1914-18. Oswald Spengler escreveu um livro célebre sobre a decadência do Ocidente no último ano de guerra, ao qual o grande historiador inglês Arnold Toynbee vai responder com um estudo sobre as civilizações que têm uma conclusão menos pessimista do que a de Spengler, que considerava inevitável o fim da civilização ocidental. O Toynbee entende que as civilizações também acabam, mas acreditava que havia uma possibilidade de a civilização europeia ocidental escapar a esse destino.
O cardeal Ratzinger, numa conferência muito importante no tempo do Papa João Paulo II voltou ao debate entre Spengler e Toynbee, para dizer sobretudo que a história ainda não tinha decidido qual dos dois tinha razão e que, nesse sentido, o destino da Europa estava em aberto.
A Europa terminou efetivamente na Grande Guerra. Voltou a terminar na Segunda Guerra Mundial e voltou a terminar novamente no fim da Guerra Fria. E de cada vez conseguiu reinventar-se contra todas as expectativas.
Houve uma reinvenção falhada entre 1918 e 1939, desde logo pela própria forma como termina a Primeira Guerra Mundial com a revolução bolchevique, a separação trágica entre a Rússia e a Europa. A primeira revolução totalitária antecipa a segunda revolução totalitária alemã e o desastre da Segunda Guerra Mundial.
Em 1945 e, mais uma vez, contra as probabilidades, a Europa que estava dividida pela primeira vez na sua história por potências externas (Estados Unidos e União Soviética) consegue reconstituir-se e encontrar uma fórmula inovadora para o seu modelo de ordenamento. E no fim da Guerra Fria, mais uma vez a Europa consegue restaurar a sua unidade, ultrapassar a sua divisão e recomeçar, de certa maneira, o seu caminho.
Até porque se repete esse ciclo de crises.
Repete-se neste contexto específico do século XX, o século das guerras totais e das revoluções totalitárias. É um século trágico para a história da Europa. E é isso, provavelmente, que nos leva a olhar duas vezes antes de chegar a uma conclusão definitiva sobre o destino da Europa. Porque mesmo a sua sobrevivência e a sua reunificação em 1991 fazem-se a benefício de inventários futuros, como mostra agora a guerra da Ucrânia.
A última frase do seu livro diz-nos que o ciclo de crises que está a pôr à prova a Europa vai continuar. E que a história europeia ainda não chegou ao fim.
Todos ficaram surpreendidos com a força da resposta europeia à invasão da Ucrânia pela Rússia. E é, de facto, uma viragem impressionante e uma viragem, de certa maneira tão impressionante como a revolução de 1989, em que subitamente o espírito da liberdade toma conta de uma viragem histórica.
Essa resposta foi uma surpresa também para si?
Surpreenderam-me duas coisas. Primeiro, o erro de Putin invadir a Ucrânia e depois a força da resposta. Na altura, escrevi que a invasão russa da Ucrânia tinha sido uma espécie de 11 de Setembro europeu e que, de facto, fez com que a opinião pública europeia, antes das elites, despertasse e tomasse posição ao lado da Ucrânia. E fez com que também os ucranianos despertassem e se unissem contra a invasão. Nada disso estava escrito. E a força da resposta é um sinal importante que permite dizer que a aventura europeia ainda não acabou.
Pelo mesmo princípio, a guerra na Ucrânia não será o fim da história da relação entre a Rússia e a Europa. E, portanto, ela irá continuar, certamente.
Claro que não. Mas é um sinal terrível, porque a separação entre a Rússia e a Europa, com a revolução comunista em 1917, faz um corte dramático na história da Europa, confirmado com a consolidação da União Soviética e a vitória soviética contra a Alemanha nazi em 1945 que aprofunda essa ruptura e divide a Europa durante um longo período entre 1945 e 1991. Depois de 1991, há uma oportunidade para a Rússia reintegrar o todo europeu. E essa questão está na balança, pelo menos entre 1991 e 2011, quando o presidente Putin faz a sua própria opção por uma viragem oriental.
O século começou com muitos apertos de mão entre a Rússia e Europa. O presidente Putin esteve aqui em Mafra no início deste século.
Com certeza que sim. E a oportunidade era real, com Gorbachev, com Ieltsin e com o "primeiro" Putin. Era uma questão crucial para o futuro e para a segurança da Europa. Mas as elites russas descobriram outra vez a rutura com a Europa e escolheram uma aliança com a China numa linha revisionista que se começou a manifestar desde 2008, com a guerra de Georgia e depois com a primeira invasão da Ucrânia, que leva sucessivamente a anexação da Crimeia em 2014 ao início da guerra híbrida do Donbass e depois, finalmente, com a segunda invasão da Ucrânia. Para quem tivesse dúvidas sobre a ruptura, ela fica aí consumada. Com certeza que haverá no futuro relações entre a Europa e a Rússia.
A Europa precisa de uma relação com a Rússia. Neste momento está tudo extremado. Mas é preciso lançar uma mão à Rússia pós conflito, mesmo que a Rússia não saia propriamente bem deste conflito?
Não é evidente que a Rússia mude de posição. A escolha de uma aliança com a China é uma escolha de Putin, tal como a escolha da aliança com a Rússia é uma escolha de Xi Jinping. Elas têm uma marca forte dos dois presidentes e vão durar depois do fim da guerra da Ucrânia. É uma questão que está em aberto.
Não sabemos se a guerra da Ucrânia será ou não o princípio de uma série de conflitos que a Rússia e a China vão travar lado a lado. E, nesse sentido, podemos estar a olhar para uma situação que vai durar décadas. A consolidação da aliança entre a Rússia e a China, de certa maneira, transforma uma política internacional que deixa de ser uma luta pelo poder entre as grandes potências e passa a ser um novo conflito sistémico, onde está em causa a ordem internacional.
A aliança entre Moscovo e Pequim é um movimento tático ou uma visão estratégica ?
Há com certeza uma visão estratégica do lado da China e também da Rússia. Perante a ascensão da China, os Estados Unidos decidiram lentamente - tarde, como sempre fazem as democracias - conter o crescimento da China. A Rússia, perante a mesma realidade, escolheu aliar-se com a China. São duas respostas simétricas e opostas.
A ascensão da China é uma realidade muito forte. Tem como objetivo não apenas ser mais forte do que os Estados Unidos, mas mudar a ordem internacional. A China tem a vontade e o poder para criar uma nova ordem internacional, alternativa à ordem das Nações Unidas, criada depois de 1945. Isso é um conflito de longa duração, que se acentuou muito fortemente com a invasão da Ucrânia.
O mundo já deixou de ser unipolar há algum tempo, mas, sobretudo, deixa de haver uma única ordem internacional, para passar a haver tendencialmente duas ordens internacionais.
Isso é o fim da ONU como a conhecemos?
As Nações Unidas sobreviveram à Guerra Fria durante a qual havia uma ordem ocidental e uma ordem soviética.
Tinham ambos assento no Conselho de Segurança.
E a China também. Só que não era a China comunista que lá estava, pelo menos até 1970. Houve duas ordens durante a Guerra Fria: uma ordem internacional entre 1990 e 2022 e, a partir de agora, uma deriva para uma competição entre duas ordens internacionais. A clivagem e rutura entre a Europa e a Rússia vai acentuar-se nessa nova configuração internacional.
Alguns analistas sugeriam que a chave para o fim deste conflito seria recuperar um entendimento dos Estados Unidos com Moscovo, traçando algo que tem a ver com a própria segurança europeia. Escreve que a invasão da Ucrânia compromete a possibilidade de um acordo separado entre Biden e Putin sobre a segurança europeia. Exclui liminarmente que isto possa vir a surgir?
Todos os presidentes dos Estados Unidos, desde o fim da Guerra Fria, tentaram normalizar as relações com a Rússia. Tentaram criar uma relação privilegiada, especial, com Moscovo. Os Estados Unidos tiveram, no fim da Guerra Fria, a ilusão de que era possível fazer com a Rússia aquilo que tinham feito com a Alemanha e com o Japão.
Em 1945, os principais aliados dos Estados Unidos durante a Guerra Fria são os adversários dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. "Mutatis mutandis", isso devia ser possível em 1991. E, de facto, há um movimento forte a favor dessa tese estratégica. Se os Estados Unidos conseguissem integrar a Rússia pós-soviética no seu modelo de ordenamento internacional, a China ficava isolada e neutralizada durante as guerras.
Isso era a repetição de Locarno, 100 anos depois. O Tratado de Locarno de 1925 foi normalização de uma potência que perdeu.
Exato, mas havia dois Locarno. Aquilo que devia ter prevalecido, além do Locarno Ocidental, era um Locarno Oriental que forçasse a República de Weimar a reconhecer as novas fronteiras da Europa de Leste. Nunca houve um Locarno Oriental.
Que é o interesse estratégico americano que dirige?
Todos os presidentes Clinton, Bush, Obama, Biden tentaram fazer uma reconciliação e uma normalização das relações com a Rússia. Falharam todos. A guerra da Ucrânia muda tudo. Não é possível ultrapassar esse obstáculo e essa nova dinâmica do sistema internacional, em que há efetivamente uma divergência entre duas coligações e modelos de ordenamento, numa luta de longo prazo.
A guerra termina sempre com um derrotado? Estamos neste caminho de derrotados e de vencedores ou vê uma solução diplomática para evitar uma solução militar para a guerra?
As guerras têm sempre uma solução militar. Quando chega a altura de fazer os acordos de paz, os diplomatas encontram sempre as melhores fórmulas para tentar ultrapassar essa separação entre vencedores e vencidos. Não foi sempre assim e por vezes o facto de ter sido assim deu mau resultado.
Em 1919, a Alemanha foi tratada como uma potência vencida. E isso fez com que na República de Weimar, todos os partidos, moderados e extremistas, fossem todos contra o Tratado de Versalhes. Eram todos partidos revisionistas. Nenhum aceitava os termos da paz de Versalhes. E, finalmente, o partido nazi destruiu o Tratado de Versailles e criou uma nova guerra mundial.
Em 1991, os Estados Unidos fizeram o contrário com a União Soviética. O presidente Bush nunca declarou a vitória dos Estados Unidos. Não é que ela não tenha acontecido. Há um documento fantástico que é o telefonema do Presidente George Bush ao Presidente Gorbatchev, no dia 25 de dezembro de 1991. Gorbachev acabava de dissolver a União Soviética. É uma conversa entre dois aliados. A pior coisa que podia ter acontecido ao presidente Bush é a queda do presidente Gorbatchev, que tinha sido um parceiro crucial para garantir o fim pacífico da Guerra Fria. Mas nem por isso, nem nessas circunstâncias excepcionais, foi possível evitar um ressentimento nas elites russas.
As elites russas não costumam falar muito bem de Gorbatchov.
Exatamente. Tratando bem ou mal uma potência vencida, em termos diplomáticos e políticos, sobretudo quando se trata de um antigo império, é difícil impedir este ressentimento das elites, que é o caminho mais curto para o regresso à guerra.
A Ucrânia conquistou a sua independência em 1992. Houve um acordo em relação à utilização da Crimeia. Os Estados Unidos colocaram uma série de condições para o reconhecimento da independência da Ucrânia que passavam pelo respeito pelos direitos humanos e das minorias. Como é que isso tudo volta atrás?
Não volta atrás. Os Estados Unidos resistiram ao reconhecimento da independência da Ucrânia, impuseram essas condições antes do referendo de dezembro de 1991. E depois disso, os Estados Unidos forçaram a Ucrânia a deixar de ser uma potência nuclear. A Ucrânia é a única potência nuclear que deixou de o ser.
Em 1991, a Ucrânia tinha mais armas nucleares do que a China, a França e a Inglaterra juntas. Foi obrigada a desarmar-se por pressão dos Estados Unidos, que queriam, por um lado, evitar um ciclo de proliferação nuclear e, por outro lado, garantir que a Rússia - a tal que ia ser aliada no pós-Guerra Fria - era o único sucessor nuclear da União Soviética. Provavelmente os Estados Unidos foram longe demais no seu zelo na procura de uma normalização e de uma parceria com a Rússia do presidente Ieltsin.
As armas nucleares eram a única coisa que garantia a integridade territorial da Ucrânia em relação à Rússia a longo prazo. Os Estados Unidos, a Rússia e a Grã-Bretanha foram todos garantes de que a Ucrânia, depois de ter desistido de ser uma potência nuclear, era protegida de qualquer perturbação, de qualquer interferência nos seus assuntos políticos internos ou de qualquer ato que pusesse em causa a sua integridade territorial. É isso que está escrito no memorando.
Com neutralidade?
O memorando de Budapeste não fala de neutralidade. Mais tarde, depois da "revolução colorida", a Ucrânia quis entrar na NATO em 2008 . A Alemanha e a França vetaram a entrada que os Estados Unidos e a Polónia apoiavam. A questão da entrada da Ucrânia na NATO ficou suspensa indefinidamente
E acha que assim deve continuar?
Não penso que possa continuar. A neutralidade da Ucrânia era uma situação de facto. Ela não vem referida no memorando de Budapeste nem em nenhum documento, mas era essa a posição tácita dos Estados Unidos e da Rússia pós-soviética. A Ucrânia deveria ser uma espécie de separador entre a Rússia e a Europa.
A guerra agora muda essa equação ?
Isso terminou, obviamente, em 2014, com a primeira invasão da Ucrânia. Mas mesmo assim, a Alemanha e a França continuaram a defender que a Ucrânia devia ser neutral, opondo-se a qualquer tipo de rearmamento da Ucrânia e à reconstituição do exército ucraniano. E os Estados Unidos, pelo presidente Obama, apoiaram a posição nesse sentido da Alemanha da chanceler Merkel, mesmo depois da anexação da Crimeia e das hostilidades iniciadas no Donbass. A invasão da Ucrânia pela Rússia, obviamente que não podia senão ter um de dois resultados: a queda da Ucrânia, ou, pelo contrário, o fim da sua neutralidade.
A invasão não atira definitivamente a Ucrânia para os braços da NATO?
A Ucrânia quer entrar na NATO. A Constituição ucraniana, depois da primeira invasão russa e da anexação da Crimeia, inclui a adesão à União Europeia e à NATO. E mesmo depois da invasão, a posição da Alemanha é: União Europeia, sim, NATO, não.
É estratégia de uma integração europeia como meio caminho que evite chegar à questão da NATO.
O que é uma inversão da política alemã. Desde a entrada da Espanha nas Comunidades Europeias que a Alemanha exigiu que só entrassem estados-membros da NATO que garantissem a sua segurança. Felipe González, com o seu primeiro governo socialista em Espanha, era completamente contra a entrada da NATO e foi obrigado a fazer um referendo, para votar a favor da NATO, de forma a poder entrar nas Comunidades Europeias em 1986. E depois do fim da Guerra Fria, todos os novos membros da NATO na Europa de Leste entraram primeiro na NATO e só depois na União Europeia, por imposição da Alemanha.
A Alemanha não queria ser a fronteira leste da NATO?
A Alemanha queria que entrassem na União Europeia apenas estados que tivessem resolvidos os problemas de segurança. E quem resolve os problemas de segurança é a NATO, não é a União Europeia.
No caso da Ucrânia, o chanceler Olaf Scholz apoia a entrada da Ucrânia na União Europeia, mas não na NATO. Essa posição torna-se mais frágil a cada dia que a guerra continua. Se amanhã, por milagre, houvesse um acordo de paz entre a Rússia e Ucrânia, a Ucrânia teria de ter garantias que podiam não implicar a entrada da Ucrânia na NATO, mas seriam garantias dadas pelos países da Aliança Atlântica, que significaria o equivalente à entrada da Ucrânia. Não seria certamente a repetição das garantias do memorando de Budapeste de 1994.
Isso afastaria ainda mais a Rússia da Europa que está na sua vizinhança.
Enquanto a Rússia tiver esta orientação estratégica, numa linha de convergência e num quadro de aliança com a China, qualquer ideia de que a Rússia vai regressar à Europa é uma ilusão. As elites russas não são a favor dessa linha estratégica. Jogaram a fundo e, de certa maneira, foram longe demais no percurso de convergência com a China para a criação de uma grande Eurásia. É um projecto estratégico alternativo ao europeu. É um projeto estratégico. Para poder sobreviver, tem que destruir a União Europeia e a unidade das democracias europeias.
A Alemanha e Rússia andaram ao longo destes anos numa relação com diferentes posicionamentos. No seu livro fala em processos de "conflito e condomínio". Foram aliados, foram adversários, pois fizeram o tratado de Rapallo em 1922 e depois pactos como o Ribbentrop-Molotov em 1939. A chave do que pode mudar em Moscovo passa inevitavelmente por uma influência decisiva alemã neste processo?
No passado, foi assim. Durante a maior parte do período entre 1918 e o fim da Guerra Fria, a Alemanha e a Rússia foram aliadas. O exército alemão não podia reconstituir-se em território alemão e, portanto, reconstituiu-se na Ucrânia, em território da União Soviética. O exército alemão estava instalado na Ucrânia a treinar, a formar se e a modernizar-se. Isso durou até 1933 e ao regime nazi. Mas depois, em 1939, o regime nazi e a União Soviética fizeram um pacto para poder começar a guerra que dura até julho de 1941, quando a Alemanha invade a União Soviética. E durante a Guerra Fria...
...a Alemanha escolheu a Europa.
Com certeza, mas a partir da Ostpolitik de Willy Brandt escolheu também a Rússia. No fundo, a teoria era a que a Alemanha, e a Europa no seu todo, devem ser equidistantes dos Estados Unidos e da União Soviética. A partir de 1973, a República Federal da Alemanha importa 30% dos seus recursos energéticos a partir da União Soviética. A União Soviética era o inimigo da Aliança Atlântica durante a Guerra Fria, mas isso não impedia a República Federal da Alemanha de ser dependente no domínio energético - que é crucial para uma potência industrial - da União Soviética. E essa dependência durou até ao dia 27 de fevereiro de 2022, quando o chanceler Scholz declarou que o NordStream 2 ia ficar fechado e que a Alemanha ia deixar de ser dependente energeticamente da Rússia pós-soviética até 2024. E conseguiu fazer as duas coisas, pondo fim à Ostpolitik e rompendo com a Rússia. A revolução do lado alemão, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, é o corte com a Rússia. Não sabemos se esse corte é duradouro ou não. Continua a haver fações internas, designadamente dentro do SPD, que defendem o regresso à situação anterior. Mas acho que não há nada mais improvável do que regressar à posição anterior.
Porque é que Merkel não o fez? Teve tanto tempo e tinha tanta influência, ou pelo menos era escutada e recebida por Putin.
A Alemanha de Merkel, como a Alemanha de Stresemann dos anos 20, defende a equidistância entre o Ocidente e a Rússia. A Alemanha é uma potência central, não é oriental nem ocidental. Faz a balança entre o Ocidente e a Rússia. Era verdade na República de Weimar e na República Federal da Alemanha, no pós-guerra Fria, com Kohl, Schroeder e, sobretudo, com Merkel, que elevou a dependência energética da Alemanha à estratosfera.
A invasão da Crimeia não foi um fator relevante para Merkel mudar essa posição?
Ao mesmo tempo, a mudança estava preparada. A rutura com a Rússia de Putin estava preparada, senão não tinha sido feita três dias depois da invasão. E foi feita numa altura em que o governo de coligação em Berlim pensava, como pensavam Scholz, Biden e outros, que a Rússia ia ganhar a guerra em três, quatro, seis semanas. Mas o cálculo que está por trás da rutura é o do que a Rússia ia ganhar a guerra. Por maioria de razão, a partir do momento em que deixou de ser evidente que a Rússia vai ganhar a guerra da Ucrânia, a rutura vai consolidar-se.
Essa decisão de Schultz não retira uma ponte de diálogo que poderia ser feito entre Berlim e Moscovo em caso de conflito?
O diálogo político é mais forte entre Paris e Moscovo do que entre Berlim e Moscovo, sobretudo a partir do fim do período de Angela Merkel. O chanceler Scholz nunca teve ele próprio um diálogo político relevante com Moscovo. É verdade que a coligação na Alemanha começou já numa contagem para a invasão da Ucrânia, mas nunca chegou a ter esse diálogo. Nunca houve um diálogo tão estruturado como aquele que existia entre Paris.
Aliás, em 2017, Putin é o primeiro chefe de Estado que Macron recebe a seguir à sua eleição em Versalhes.
Exatamente, primeiro em Versalhes e depois no castelo onde passa férias em França. E, tal como o general De Gaulle e Mitterrand, Macron tem sempre a ilusão de que é possível reconstituir uma grande aliança entre a França e a Rússia para contrabalançar a Alemanha.
A estratégia de DeGaulle era uma Europa do Atlântico aos Urais. É uma utopia ?
É uma estratégia errada, não é uma utopia. É a repetição da aliança militar em que a França, o Reino Unido e a Rússia são aliadas contra o Império alemão antes da Primeira Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial, a França regressa a essa tese estratégica, primeiro com o general De Gaulle, depois com os democratas cristãos, depois com os socialistas como Mitterrand e agora mesmo com Macron.
É sempre a ilusão de que pode haver uma aliança com a União Soviética ou com a Rússia pós-soviética para contrabalançar a Alemanha. É essa tese que move, no essencial, a política da França em relação à Rússia, sempre com os mesmos maus resultados.
O que é que os últimos 100 anos nos mostram sobre as mediações de conflitos? E quem está então em condições de o fazer?
A mediação dos conflitos armados não significa que a resolução desses conflitos não imponha sempre uma situação de força no terreno que garanta as condições, que force as partes a negociar. O problema que existe na guerra da Ucrânia é que nem a Rússia, nem a Ucrânia estão preparadas para negociar. Nem Kiev, nem Moscovo desistiram de ganhar a guerra. E nem o presidente ucraniano, nem o presidente russo estão em condições de perder a guerra. Nessas circunstâncias, não há mediação que nos valha. Estamos a falar de duas potências. A Rússia é a maior potência nuclear à face da Terra.
Quando o presidente Macron oferece a sua mediação à Rússia, imagino que os dirigentes do Kremlin considerem esse ato puramente ridículo. Que garantias é que a França, uma potência de segunda classe, pode dar à Rússia sobre a sua segurança?
Isso atira-nos para os Estados Unidos como mediador ?
Os Estados Unidos não estão preparados para ser mediador no conflito entre a Ucrânia e a Rússia.
Então, quem pode ser mediador ?
Primeiro tem de haver condições, no terreno das armas, no terreno político, bilateral para a Rússia e Ucrânia estarem preparadas para negociar. E não há nenhuma indicação de que a Rússia esteja preparada para negociar. Espinosa dizia que basta um soberano para fazer a guerra, mas são precisos dois para fazer a paz. Os próprios Estados Unidos não têm condições de poder para impor o que quer que seja nem à China, nem à Rússia.