O padre Gideon Obasogie lembra-se bem como era o Natal quando era um jovem rapaz, a crescer numa localidade predominantemente muçulmana, onde a sua mãe era professora na escola pública local.
“Costumávamos celebrar o Natal como uma grande família. A minha mãe tinha muitos amigos e colegas muçulmanos. Lembro-me que quando eram as festas deles nós não cozinhávamos, porque sabíamos que eles nos davam comida e íamos visitá-los e festejar com eles. No Natal muitos muçulmanos faziam o mesmo connosco. Não havia divisões, nem suspeição. Vivíamos como uma grande família e o Natal era uma festa maravilhosa”, recorda.
Tudo mudou quando o Boko Haram, então um grupo obscuro que se tinha formado no mato, começou a lançar ataques. Os terroristas, que defendem a imposição da lei islâmica a toda a sociedade, atacam de forma indiscriminada, mas com particular enfoque nos cristãos, que nesta parte do país são minoritários.
Desde raptos em massa de raparigas a atentados, a vida dos cristãos tornou-se um inferno, particularmente nas grandes festas, altura em que os jihadistas gostavam de atacar as igrejas repletas de fiéis.
“O começo das atividades do Boko Haram trouxe mudanças sérias. Em primeiro lugar, por causa do medo dos atentados o Governo passou a impor recolher obrigatório no dia de Natal. Nos anos de 2014 e 2015, no auge dos problemas, o recolher começava às 18h de dia 24 e continuava até ao fim do dia de Natal. Relaxavam-no de manhã, entre as 7h e as 12h, por isso quem vivia perto da igreja podia ir à missa, mas não se podia andar de carro ou de moto, por isso quem vivia longe tinha de ficar em casa”, explica o padre Gideon.
Os padres ainda conseguiam obter autorização e escolta para visitar algumas missões fora da cidade, mas o clima geral era de suspeição. “Nas grandes festas, se os militares não estiverem atentos, começamos a ouvir falar de bombas aqui e ali, nesta ou naquela igreja, ou neste ou naquele lugar de festa. Por isso tentavam reduzir as aglomerações, tal como estão a fazer agora com a Covid, na Europa. Se em casa costumava ter 10 pessoas, pediam que fossem só cinco. Se a Igreja levava 200, reduzia-se para 100.”
Nos últimos anos o exército conseguiu empurrar os terroristas de volta para o mato, a cerca de 100 quilómetros de Maiduguri, e por isso as restrições são menores. Mas o medo não desapareceu. “Ainda a semana passada ouvimos uma explosão. Não foi uma bomba, mas sim um míssil disparado pelo Boko Haram para dentro da cidade. Algumas pessoas morreram e um bebé ficou ferido”, diz o sacerdote, para ilustrar o perigo omnipresente.
Por isso as igrejas continuam a ser guardadas por militares e por jovens cristãos formados para identificar pessoas suspeitas que possam tentar entrar com cinturões explosivos, e a cautela tornou-se um ingrediente de todas as ceias de Natal.
“Eu prefiro falar em cautela do que em medo. Não é bem medo. As pessoas sabem que têm de ter cuidado quando vão à igreja, dizem aos filhos para virem imediatamente para casa depois da missa, estão sempre atentos aos sinais de perigo. Tornou-se uma forma de sobrevivência.”
O desafio da reconciliação
A contraofensiva do Governo melhorou a situação de segurança na cidade de Maiduguri, mas o sucesso não se deveu só a estratégia militar. O Governo está a tentar seduzir os terroristas a deporem as armas e a entregar-se, com a promessa de formação e integração. A aposta parece estar a resultar, mas traz consigo novos desafios para as vítimas dos incontáveis crimes.
“As pessoas estão magoadas. Muitas vítimas do Boko Haram ainda estão em campos, alguns a sofrer, sem poder voltar às suas terras, a suar para ganhar o pão de cada dia, para tentar alimentar, vestir e educar os seus filhos ou obter cuidados médicos, e depois vêem o Governo federal a construir um grande edifício para os terroristas arrependidos, e a dar-lhes uma vida confortável”, avisa o padre Gideon.
“Não estou a dizer que a ideia é má, mas não nos devemos antecipar. Se damos toda a atenção aos terroristas arrependidos, temo que as vítimas se possam radicalizar ainda mais que os terroristas. Porque estão traumatizados pelas suas experiências e agora têm de viver lado a lado com pessoas que mataram os seus familiares e expulsaram-nos das suas casas. E às vezes as vítimas reconhecem as pessoas que as magoaram. Não é fácil. Ainda por cima, em muitos dos casos há dúvidas sobre se há mesmo arrependimento, ou apenas uma estratégia para conseguirem voltar à vida civil”, diz.
Apesar das preocupações, a Igreja mantém sempre a narrativa da reconciliação e do perdão. “A Igreja apela sempre ao perdão, porque não podemos dizer ao nosso povo para pegar em armas e vingar-se. Fazemos o que podemos para os ajudar ao nível psicológico, a aceitarem a realidade em que se encontram, perdoar e avançar com a vida”, explica o sacerdote.
Ao mesmo tempo a Igreja tenta incutir esperança nos corações dos fiéis. “Dizemos-lhes que Cristo nasceu para trazer luz para a escuridão do mundo. Por isso esta ameaça do Boko Haram, e todas as ansiedades, dão um contexto muito adequado. Apesar de tudo isso, Cristo nasce. Apesar da escuridão em que nos encontramos, o menino Jesus nasce.”
Ligações cortadas
De todas os crimes que o Boko Haram cometeu desde que começou a sua atividade, talvez o que deixará mais marcas para o futuro seja a forma como veio prejudicar as relações, outrora saudáveis, entre cristãos e muçulmanos.
O padre Gideon tem visto o deteriorar destas relações e mostra-se preocupado.
“Desenvoli um projeto em Maiduguri em que fui a todas as escolas católicas e conversei com crianças entre os quatro e os oito anos, para saber como vêem os muçulmanos. Mais de 80% deles identificam o Islão com o terrorismo. Um menino de quatro dizia-me que a mãe lhe tinha dito para não ter amigos muçulmanos, por causa do Boko Haram, por exemplo”, explica o padre.
“Quando eles vêm bombardear uma igreja, gritam ‘Allahu Akhbar’, não gritam ‘em nome de Jesus’ ou ‘em nome de Buda’. Dizem que somos islamofóbicos, mas temos razões para isso. Claro que sabemos que há muçulmanos razoáveis que se dissociam do Boko Haram e não o apoiam, mas infelizmente não é comum eles erguerem a voz e são poucos os líderes islâmicos que condenam publicamente o Boko Haram”
“Eles têm de contrariar a narrativa, de forma consistente. Não é falar agora, e depois só daqui a mais uns anos. Temos de os ouvir dizer que ‘os membros do Boko Haram, que atuam em nome do Islão, e dizem que são muçulmanos, não nos pertencem, são um conjunto de infiéis que tentou aproveitar-se do Islão, mas não representam o Islão’”, diz o padre Gideon, que lamenta que os principais líderes islâmicos da Nigéria ainda não tomaram essa atitude.