Um dos primeiros filmes da história do cinema chama-se “L’arroseur arrosé” e foi feito em 1895 pelos irmãos Lumière. Dura 45 segundos e, nele, um homem rega um jardim quando, de repente, deixa de sair água da mangueira. Atrás dele, um miúdo tinha pisado a mangueira, interrompendo o fluxo de água. O regador, que não viu o miúdo, fica intrigado e espreita para a ponta da mangueira para tentar perceber o que se passa. Nesse momento, o miúdo levanta o pé e a água dispara na cara do homem que regava o jardim.
“O regador regado” é a tradução literal desta primeira ficção dos inventores do cinema, mas a lição que ela encerra poderá traduzir-se melhor pela velha expressão portuguesa “virou-se o feitiço contra o feiticeiro”.
Quase 125 anos depois, a expressão aplica-se na perfeição ao deputado republicano Devin Nunes, um luso-americano da Califórnia que se tem destacado nos últimos três anos por ser um dos mais indefetíveis defensores de Donald Trump e um propagador incansável das suas teorias conspirativas.
Quando Trump foi eleito, Nunes era o líder da Comissão dos Serviços Secretos da Câmara de Representantes e, nessa qualidade, veio um dia a público alertar para uma suposta conspiração no FBI para tentar incriminar o presidente na questão da interferência da Rússia na campanha eleitoral de 2016.
Algo enigmáticas, as declarações foram feitas após ter tido, alegadamente, acesso a documentos secretos que revelariam que a investigação estava inquinada por interesses partidários e era conduzida de modo parcial pelo FBI. Tudo isso Nunes teria sabido na véspera, num encontro “secreto” que deixou meio mundo intrigado e a imprensa curiosa.
Com quem se teria encontrado Nunes? Quem lhe teria revelado tais “segredos”? Quem estaria a pôr em xeque a idoneidade do FBI? Onde teria sido o encontro enigmático? A curiosidade da imprensa durou pouco tempo. E transmutou-se rapidamente em perplexidade quando se descobriu que afinal Nunes tinha “descoberto” todos aqueles “segredos” num encontro noturno na véspera na… Casa Branca.
Nunes não estava a agir como o líder da comissão parlamentar que supervisiona os serviços secretos preocupado com eventuais irregularidades na conduta de uma agência federal. Agia como um apoiante de Trump que se fazia eco das teorias conspirativas tecidas na própria Casa Branca para descredibilizar a investigação em curso sobre a interferência russa na campanha.
Desde então, muita coisa mudou em Washington. A teoria conspirativa sobre a investigação do FBI foi desmontada, os serviços secretos provaram sem margem para dúvidas (e mostraram provas aos congressistas) que a Rússia interferiu na campanha eleitoral para favorecer Trump, o procurador especial Robert Mueller acusou e incriminou formalmente vários responsáveis russos por essa interferência, os republicanos perderam as eleições intercalares em 2018 para a Câmara dos Representantes e Devin Nunes deixou de presidir à Comissão dos Serviços Secretos.
A única coisa que não mudou foi a obsessão de Nunes em acolher e propagar teorias conspirativas. Agora na condição de líder da oposição republicana na mesma comissão, o organismo da Câmara de Representantes que conduz o processo de impeachment a Trump, Nunes exercitou com denodo tal obsessão.
Nas intervenções que fez nunca se referiu ao objeto do inquérito, que tenta apurar se Trump suspendeu a ajuda militar à Ucrânia e evitou agendar um encontro na Casa Branca com o presidente ucraniano como forma de pressão para que Zelinsky anunciasse uma investigação às atividades de Joe Biden e do seu filho Hunter na Ucrânia.
Nos “interrogatórios” que fez às testemunhas, o luso-americano alternou entre discursos propagandísticos anti-impeachment e a insistência nas teorias conspirativas. Nomeadamente naquela que Trump queria que a Ucrânia investigasse — a de que a interferência na campanha de 2016 partiu da Ucrânia e não da Rússia. Uma tese que os serviços secretos americanos refutaram há muito, concluindo que foi a própria Rússia que a pôs a correr para sacudir responsabilidades.
Enquanto alguns outros deputados republicanos foram tentando extrair das testemunhas declarações e dados relacionados com os factos em apreciação, Nunes sempre se mostrou indiferente à realidade que desfilava perante os seus olhos.
Uma após outra, na comissão de inquérito foram surgindo testemunhas que garantiam que Trump tinha chantageado a Ucrânia para obter a promessa de que Kiev investigaria os Biden. Diplomatas de carreira, militares, funcionários do Pentágono e do Departamento de Estado, embaixadores escolhidos pelo presidente, ex-assessores da Casa Branca, foram quase unânimes na denúncia do esquema montado por Trump para a troca de favores com Zelensky.
Nada que demovesse Nunes. Para ele, os depoimentos sérios e independentes são mais um capítulo da “caça às bruxas” que dura há três anos, um “circo bizarro”. E que consiste numa gigantesca conspiração dos democratas e dos seus aliados no aparelho de estado (o chamado “deep state”) empenhados em derrubar um presidente anti-establishment.
Por isso, ele assumiu-se como uma espécie de porta-voz das vítimas dessa conspiração, a começar pela sua maior vítima — Donald Trump. A sua conduta nas duas semanas do inquérito foi a antítese do que é suposto ser o papel de um deputado enquanto escrutinador do poder executivo.
Mas, ironia das ironias, nos últimos dias surgiram notícias de que Devin Nunes, o principal denunciador das conspirações, terá ele mesmo conspirado para dar credibilidade às teses da Casa Branca. O feitiço virou-se contra o feiticeiro.
Segundo a CNN e o site Daily Beast, Nunes viajou para Viena em Dezembro do ano passado, em deslocação oficial paga pelo Congresso, onde teve um encontro com o antigo procurador-geral ucraniano Viktor Shokin, de quem terá tentado obter informações comprometedoras para Joe Biden e o filho, bem como dados que corroborassem a tese de que foi a Ucrânia a interferir na campanha eleitoral americana.
Shokin foi afastado do cargo de procurador-geral em março de 2016, na sequência de pressões conjuntas da União Europeia, dos Estados Unidos e do Fundo Monetário Internacional por ser considerado complacente com a corrupção que reinava na Ucrânia. O então vice-presidente americano, Joe Biden, contribuiu para esse afastamento ao convencer o então presidente ucraniano a substituir Shokin e a combater a corrupção no país.
Trump e os seus apoiantes defendem hoje a tese de que Biden quis afastar Shokin para evitar que ele investigasse a empresa onde trabalhava o filho, Hunter Biden, uma alegação desmentida por todos os responsáveis americanos que trabalharam com a Ucrânia e pelas organizações internacionais que pressionaram para a sua saída. Shokin foi mesmo considerado responsável pela travagem de processos sobre corrupção no país.
Foi este mesmo procurador-geral que Trump elogiou no célebre telefonema com o presidente ucraniano Zelensky, a 25 de julho último, e que está na origem do processo de impeachment. O encontro de Devin Nunes com ele em Viena visaria obter informações que reforçassem a tese conspirativa de que Biden agiu em proveito próprio ao afastá-lo. E coloca Nunes como co-conspirador em todo este processo.
A fonte que denunciou o encontro de Viena nem sequer é anónima. Foi o advogado de dois colaboradores de Rudy Giuliani, o ex-mayor de Nova Iorque, hoje conselheiro pessoal de Trump, que andou no terreno a pressionar a Ucrânia em nome do presidente.
Os dois colaboradores de Giuliani estão presos desde outubro passado sob a acusação de violação da lei de financiamentos das campanhas eleitorais e poderão estar agora interessados em colaborar com a justiça. O seu advogado garantiu que eles estão disponíveis para depor perante o Congresso e ajudar a clarificar todo o processo de pressão sobre a Ucrânia.
O encontro de Viena levanta questões éticas delicadas. Adam Schiff, o democrata que preside atualmente à Comissão dos Serviços Secretos onde decorre o inquérito a Trump, e Jim Hynes, outro democrata da mesma comissão onde Nunes tem assento, disseram que se Nunes foi a Viena a expensas dos contribuintes à procura de sujidade para lançar sobre Biden isso é o mesmo de que Trump está acusado e é o que está na origem do atual inquérito — o uso indevido de dinheiros públicos para objetivos políticos pessoais.
E Adam Smith, o democrata que preside à Comissão de Ética, adiantou que o caso deverá suscitar “muito provavelmente” um inquérito desta comissão da Câmara de Representantes.
Solicitado pelos media a esclarecer a questão, Devin Nunes não o fez cabalmente até agora. Na Fox News, onde é presença habitual, ameaçou processar a CNN e o Daily Beast em vez de justificar ou desmentir o encontro de Viena. “Esteve em Viena com Shokin?”, perguntaram-lhe. “Quero responder a essas questões”, mas alegou não poder fazê-lo porque “há aqui atividade criminal”.
“Penso que compreende que não posso competir no debate público com os media porque 90% deles são totalmente corruptos”, acusou. Entre esses 90% está obviamente a CNN, a quem Nunes recusou responder. “Não falo consigo nesta vida, nem na próxima. Em qualquer momento ou sobre qualquer pergunta”, ripostou a uma pergunta de um repórter daquela cadeia televisiva.
Mas à Fox News garantiu que “toda a gente vai saber a verdade. Toda a gente vai conhecer todos os factos. Vou ganhar em tribunal”, acrescentou.
Este tem sido o padrão de comportamento de Nunes sempre que um media publica algo que o incomoda. O seu historial de processos judiciais contra a comunicação social (e não só) é vasto. Mas isso são contas de outro rosário.
Para já, o mais fervoroso adepto de Trump na comissão que conduz o inquérito ao presidente arrisca-se a passar de inquiridor a inquirido e de suposto denunciador de conspirações a conspirador. Enquanto o feitiço não se vira contra o feiticeiro, Nunes vai sendo motivo de chacota em quase todos os talk-shows humorísticos das televisões americanas. Um motivo sempre seguro para provocar sonoras gargalhadas.