O Barómetro da Corrupção da Fundação Francisco Manuel dos Santos confirma a percepção de forte corrupção na sociedade portuguesa, a par de alguma tolerância em relação às chamadas 'cunhas' ou atos ilegais que beneficiem determinada comunidade.
Em entrevista à Renascença, a investigadora Susana Coroado, uma das autoras do estudo, explica os principais objectivos do estudo e comenta alguns dos principais resultados.
Há uma forte percepção da corrupção como um problema grave no país, sendo a opinião de nove em cada 10 inquiridos. Este dado agrava a tendência que se conhecia de estudos anteriores?
É semelhante aos resultados de estudos anteriores como, por exemplo, os que todos os Eurobarómetros da Comissão Europeia têm mostrado nos últimos anos. Os resultados 'batem' sempre mais ou menos nos 90% de inquiridos portugueses que consideram que a corrupção é um problema grave no país. Quisemos tentar perceber quem são estas pessoas, porque os indivíduos não são todos iguais, e o que é que entendem por corrupção.
Usámos definições usuais de corrupção e tradicionais na literatura científica. Por exemplo, tentámos perceber se as pessoas consideram que a corrupção é uma questão de definição legal, de cumprimento ou não das regras éticas ou legais, ou, por outro lado, se entendem que a corrupção tem mais a ver com os resultados, em que uma determinada acção ou comportamento podem ser ou não consideradas corrupção, dependendo se tem efeitos positivos para para a comunidade.
Também tentámos perceber a tolerância ou a atitude que as pessoas têm para diferentes situações ou comportamentos que estão frequentemente ligados à corrupção e à criminalidade conexa, como as 'cunhas', as 'portas giratórias' ou o tráfico de influência.
Em termos globais, os inquiridos não concordam que haja corrupção quando a ação é benéfica para a população em geral. Como se explica esta conclusão?
Isso vai variando consoante o perfil demográfico e sociológico das pessoas. A corrupção mal vista pode ser aquela que só tem benefícios para quem está envolvido e, portanto, deixa todo o resto da comunidade prejudicada. Depois há outro tipo de práticas de comportamentos de corrupção em que, apesar de tudo, há uma externalidade positiva e, portanto, nesses casos as pessoas sentem que a comunidade também ganhou alguma coisa, que nem tudo foi perdido. Nesse sentido, podem ter alguma tolerância a comportamentos desse género.
Fazem uma classificação dos inquiridos por perfis como os virtuosos, os intransigentes, os falsos moralistas e os pragmáticos. A que conclusões chegaram?
Estes perfis vêm do entendimento que as pessoas têm da definição social da corrupção ou de uma dimensão mais legal, ou seja, se as pessoas consideram ou não que a corrupção tem de ser ilegal para ser de facto considerada corrupção, olhando também para os tais resultados positivos para a comunidade. É no cruzamento destas duas dimensões que encontramos quatro perfis diferentes de inquiridos.
Há os 'virtuosos', que defendem que a corrupção é sobretudo uma má conduta ética e que os resultados não justificam os meios. Existe o grupo dos 'intransigentes', que entendem que a corrupção é uma violação legal e, portanto, é sempre condenável. Existem os 'pragmáticos', que defendem que a corrupção não é só uma questão legal e que pode ser menos condenável, dependendo dos resultados. E existe o grupo dos 'falsos moralistas': por um lado, defendem que é a lei que define o que é ou não corrupção, mas quando são confrontados com uma situação mais concreta de benefício para a comunidade, tomam uma posição mais tolerante.
A maior parte dos inquiridos são 'intransigentes', que condenam sempre uma atitude que viole a lei, e 'os falsos moralistas', que condenam a corrupção com alguma tolerância se houver resultados positivos para a comunidade.
Estes últimos guardam uma margem de tolerância em relação à corrupção sempre ligada aos resultados que possa produzir em favor das pessoas?
Sim, mas depende também das práticas. Em cenários mais concretos, também vemos que práticas como abuso de informação privilegiada ou o tráfico de influência são mais condenáveis do que, por exemplo, uma 'cunha', que nem sempre tem resultados positivos para a comunidade.
As pessoas vão mudando as suas opiniões consoante os cenários e as práticas a que também têm sido socializadas ao longo da sua vida. Mas, em geral, podemos concluir que há mais tolerância quando há benefícios para a comunidade.
O estudo questiona se o poder corrompe absolutamente. O que é que podemos dizer sobre os inquiridos portugueses neste domínio?
Fizemos esta questão porque, por definição, a corrupção é um abuso de poder e um fenómeno intimamente relacionado com o poder. Só quem tem poder para tomar uma decisão é que, à partida, é um alvo interessante para ser corrompido.
Tentámos perceber qual é a imagem que os inquiridos têm da corrupção na política, perguntando em que medida é que a política é um espaço que atrai sobretudo as pessoas já um pouco mal intencionadas que querem enriquecer à custa do interesse público, ou se é um espaço de socialização e de uma corrupção sistemática que faz com que mesmo as pessoas mais honestas, que inicialmente tentam resistir à corrupção, acabam por se renderem às evidências e entrar no 'sistema'.
Observámos que os participantes concordam sobretudo que a política atrai pessoas que tentam obter benefícios particulares à custa do bem comum. Por outro lado, sobretudo quando estamos a assistir a um crescimento dos movimentos populistas e autoritários, quisemos tentar perceber se as pessoas de facto acham que a democracia é mais vulnerável do que, por exemplo, uma ditadura ou um regime de tecnocratas e de especialistas.
Nos resultados, as pessoas consideram que todos os regimes podem estar vulneráveis à corrupção e, portanto, as autocracias ou as ditaduras não estão mais protegidas em relação à corrupção do que do que as democracias.
Quando o eleitor avalia um candidato coloca a integridade em segundo lugar, apenas superado pela orientação ideológica. É uma surpresa?
Sim, mas há estudos que também indicam que as pessoas têm uma maior tolerância ou até uma melhor imagem dos políticos que estão no seu campo ideológico. Mas a integridade é uma questão importante, porque as pessoas precisam de confiar nos candidatos para lhes poderem dar os seus votos.
Outra avaliação do barómetro diz respeito às esferas sociais em que os inquiridos acham que há mais corrupção ou pelo menos uma maior incidência ou eventualmente mais risco. Há uma vantagem muito expressiva de entidades como os clubes de futebol. E por exemplo, na esfera política, os partidos e as autarquias estão bastante acima do Parlamento.
Estes resultados também estão em linha, por exemplo, com com estudos do Eurobarómetro. Na comparação entre Parlamento, Governo, partidos e autarquias, o Parlamento é de facto a instituição mais transparente e a que tem mais dados disponíveis no site sobre os processos legislativos e as comissões parlamentares. Isso faz com que as pessoas também compreendam melhor o funcionamento do Parlamento. Por outro lado, é verdade que o Parlamento não tem um poder executivo como tem o Governo ou as autarquias.
Em relação aos partidos políticos, há uma questão de falta de transparência e de responsabilização. Ou seja, as pessoas podem punir eleitoralmente o Parlamento, o Governo ou os executivos camarários e não podem punir o funcionamento interno de um partido. Há aqui uma falta de controlo e responsabilização face ao que se passa dentro dos partidos. Isso pode ajudar a aumentar esta esta imagem de maior corrupção dentro dos partidos.
No futebol, todos os escândalos e a dificuldade de compreender os os negócios do futebol podem também ajudar a compreender estas respostas.
Os governos costumam aparecer com um conjunto de pacotes de medidas legislativas contra a corrupção. O que sublinha da percepção dos cidadãos em relação ao combate à corrupção?
Saliento que mais de 50% dos inquiridos considera que o combate à corrupção em Portugal não é nada eficaz. Não é difícil compreender estas respostas, tendo em consideração que os escândalos sucedem-se, tal como acontece com as reformas e os pacotes anticorrupção, que também parecem não ter resultado.
O facto em si mesmo de haver uma sucessão de pacotes também é indicativo de que cada um destes não tem os resultados necessários e daí ser preciso andar sempre a substituí-los.
Estudos como este barómetro são importantes, não só para uma potencial medição das percepções de corrupção: sobretudo para desenhar medidas anticorrupção que de facto funcionem.
Ao perceber os comportamentos mais ou menos tolerados, mais facilmente é possível dirigir tipos diferentes de políticas de combate à corrupção, decidindo se as políticas públicas anticorrupção se devem focar mais em práticas definidas ou não pela lei, em que medida é mais difícil combater outras práticas, como as 'cunhas', porque a aceitação social é muito maior.
Permite saber se devemos pensar mais em alterar comportamentos de uma forma mais social ou, por outro lado, focar noutras questões. É sobretudo aqui que me parece importante compreender o fenómeno social, para depois saber adaptar melhor as políticas anticorrupção, em vez de constantemente fazermos reformas legais 'chapa cinco'.
E as políticas estão longe e, olhando para os resultados, estão desfasadas da realidade?
Penso que sim, até porque porque nunca se baseiam neste tipo de estudos e, portanto, não sabem bem avaliar porque é que as medidas anteriores falham ou porque é preciso concentrar em determinadas práticas.
Por fim, qual é o papel dos média nisto tudo?
Verificamos que ainda são os meios de comunicação tradicionais — sobretudo a televisão, mas também a imprensa, tanto em papel como online — que representam as principais fontes de informação dos inquiridos sobre o tema da corrupção.
Por um lado, é interessante, porque estamos sempre a olhar para as novas fontes de informação, como as redes sociais, etc., quando as mais importantes continuam a ser as tradicionais.
Por outro lado, isso dá-nos mais informações para o debate que tem havido sobre a responsabilidade dos meios de comunicação social para o bom funcionamento e para a saúde da democracia.
A maioria das pessoas está satisfeita com o tratamento mediático da corrupção, mas há cerca de 35% de inquiridos que não estão satisfeitos. E estes dizem que os meios de comunicação social estão sobretudo preocupados com as audiências e são sensacionalistas quando tratam a corrupção. Dizem que são tendenciosos e que não separam o facto da opinião, e têm realmente aqui um sentido crítico sobre a forma como a corrupção é tratada.