Ganha cada vez mais força o debate sobre a forma como é aplicada a lei contra o terrorismo. Não só por ser usada em casos que parecem não caber na lei - como o ataque à Academia do Sporting, em Alcochete, ou o recente caso do jovem que planeava atacar a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa -, mas também porque são sistematicamente deixados de fora os crimes praticados pela extrema-direita, esses sim, com características previstas na lei do terrorismo.
Ainda no passado mês de fevereiro começou mais um julgamento de alegados skinheads, acusados de discriminação racial, ofensa à integridade física qualificada e tentativa de homicídio qualificado, mas sem nenhuma referência à ideologia que os motiva.
Na verdade, nos últimos 40 anos – desde que existe lei do terrorismo – apenas houve cinco condenações por esse crime em Portugal, e nenhuma diz respeito à extrema-direita.
À procura de uma explicação para o que chamam de “seletividade penal”, um inspetor coordenador da Polícia Judiciária e três investigadoras na área da segurança publicaram, recentemente, na revista britânica “Critical Studies on Terrorism”, um artigo onde concluem que em Portugal a legislação não está a ser bem aplicada.
Raquel Silva, licenciada em Psicologia, com estudos desenvolvidos na Universidade de Birmingham, e atualmente bolseira no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, é uma das coautoras do artigo.
O ponto de partida deste vosso artigo, é o facto de a extrema-direita portuguesa escapar sistematicamente à lei do terrorismo.
Sim, o nosso objetivo era perceber porque é que a violência que é ideologicamente motivada não tem sido toda criminalizada da mesma forma. E porque é que as leis do terrorismo e do contraterrorismo nunca foram aplicadas à extrema-direita. Sendo que a violência da extrema-direita é uma violência ideologicamente motivada, tal como é a da extrema-esquerda – no caso das Forças Populares 25 de Abril [FP25] que atuaram em Portugal nos anos 80 - assim como é o terrorismo inspirado pela Al-Qaeda ou pelo Estado Islâmico. Todas estas organizações, ou grupos, ou indivíduos são ideologicamente motivados.
E em Portugal há uma diferença de tratamento?
Se estamos a falar de terrorismo, é um crime de violência política. É sempre ideologicamente motivado. Se partimos de um pressuposto para um tipo de organizações, devíamos partir do mesmo pressuposto para as outras. Daí aquilo a que chamamos de seletividade penal. Ou seja, há uma seleção de casos que são automaticamente considerados terrorismo, e outros que também o poderiam ser de acordo com a lei, mas não são.
Normalmente, se uma organização é internacionalmente considerada terrorista, se está naquelas listas internacionais – como a ETA, a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico – se há casos desses em Portugal, são automaticamente considerados terroristas.
E os da extrema-direita não?
O rótulo terrorista é para o outro. É para o estrangeiro, e mesmo que não o seja, o que é percecionado como não sendo um dos nossos. Pelo aspeto da pessoa, não ser branco, ser de outra religião que não a do país em que estamos, e por isso o rótulo de terrorismo tende a ser aplicado aos outros, e não aos nossos. Isso tem sido encontrado noutros países, como o Reino Unido, a Finlândia e outros países europeus.
O que nós concluímos é que, realmente, isto tem muito a ver com o trabalho dos tribunais, mas também com o que vem antes, com os tipos de rótulos que a sociedade dá a cada um dos atores. O que nós consideramos é que pode haver esta visão túnel, ou esta ancoragem enviesada em relação a outros tipos de violência ideologicamente motivada.
É um problema da lei?
Não, aqui a questão não é a lei, é a sua aplicação. Na nossa opinião, o problema está na escolha de a aplicar ou não. Mas não é só no Ministério Público e nos tribunais que está a questão, é também o discurso da própria sociedade que tende a não considerar o nosso terrorista, o terrorista é o outro, é o muçulmano, não é um de nós.
A sugestão que nós deixamos é que os tribunais façam uma reflexão sobre estas decisões. Judiciais e não judiciais, que estão por trás destes processos e que levam a esta seletividade penal.
O vosso estudo baseou-se em dois casos concretos.
Dois casos distintos, ambos ocorridos depois da lei 52/2003 – a lei do contraterrorismo portuguesa criada depois do 11 de setembro. Um é o primeiro caso julgado com essa lei, que é o do alegado membro da ETA, o outro é o primeiro caso de violência da extrema-direita que aconteceu depois da criação dessa lei. Esta foi a lógica deste trabalho. Perceber o que é que aconteceu com dois casos ideologicamente motivados.
No caso do alegado membro da ETA, eles eram dois, embora só nos tenhamos concentrado no que foi julgado em Portugal. Eles tinham um armazém com materiais explosivos em Portugal. Eles não exerceram violência em território nacional, seria a tal preparação de um ato terrorista. Ele foi levado à justiça, e teve uma pena de 12 anos, que cumpriu aqui em Portugal.
No caso dos 36 skinheads do processo de 2007, há violência, há muita incitação à violência – sobretudo online. Na acusação que lemos eles são considerados uma organização ideologicamente motivada, com potencial claro para exercer violência, e capacidade para cometer crimes sérios contra pessoas. No entanto, não são considerados um grupo terrorista, os portugueses Hammerskins não foram considerados uma organização terrorista. Foi usado o artigo 240 do Código Penal sobre discriminação racial e incitamento à violência. A maior parte das penas foram suspensas, e a pena mais elevada foi de quatro anos e 10 meses. Tiveram acusações diferentes, e condenações diferentes.
Mas se o principal critério é a motivação ideológica, então casos como os do ataque à Academia de Alcochete ou, mais recentemente, o do jovem que planeava atacar os colegas numa Universidade de Lisboa, não deveriam ser tratados como terrorismo?
Sim, a legislação é para crimes ideologicamente motivados. Isso é claríssimo, tanto na lei do terrorismo como na do contraterrorismo.
Esses outros casos que refere estão para além do âmbito deste nosso artigo, mas, na minha opinião, são exemplos de abusos da legislação do terrorismo. É aplicar uma legislação que nos dá podres especiais a casos que não são terrorismo, mas que com esta legislação abre portas para a investigação criminal que a legislação normal não dá. Na minha opinião, isto são abusos da legislação que não deveriam acontecer.
No vosso artigo, deixam entender que não é um problema exclusivo de Portugal.
Há de facto um debate internacional muito grande, e ainda no mês passado saiu a revisão da lei do terrorismo em Inglaterra, especialmente na parte da prevenção, em que há mesmo propostas para acabar com estas legislações especiais.
Porquê? Porque, por serem especiais, e por conferirem estes poderes especiais, levam exatamente a este tipo de abusos. Existem, estão ali, e podemos tentar adaptar esta coisa que não é bem isto, mas que por agora nos serve. E conseguimos parar aquele jovem que estava a preparar algo, mas que não era ideologicamente motivado. Um caso em que nunca deveria ter sido aplicada esta peça de legislação.
É por isso que nesta altura há uma proposta a nível internacional para simplesmente acabar com estas legislações especiais, e trabalharmos com o eu temos, que são os códigos penais de cada país, e apenas usarmos a via normal de criminalizar quem comete um crime.