Três anos após a jubilação e quase nove anos depois de deixar a liderança do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), Cândida Almeida continua a defender os megaprocessos, mas mudou de opinião sobre a utilidade prática do segredo de justiça.
Fugas sempre existiram, mas os seus impactos são avaliados agora de forma diferente por uma das mulheres de referência do Ministério Público no pós-25 de Abril.
"O segredo de justiça tem estragado a vida a muitas pessoas. A princípio, há uns anos, defendia que o segredo de justiça existia apenas para proteger a investigação. Mas hoje dou a mão a palmatória e [o segredo de justiça] também tem de proteger as pessoas que são investigadas", afirma.
"É preciso salvaguardar as pessoas e as famílias que estão a ser investigadas”, diz Cândida Almeida no programa “Da Capa à Contracapa” da Renascença a magistrada que cessou funções no ativo como procuradora-geral adjunta no Supremo Tribunal de Justiça.
Confrontada com as críticas da ministra Francisca Van Dunem à extensão das investigações desenvolvidas “de forma quase arqueológica” que chegam muitas vezes a resultados que não são “socialmente compreensíveis”, Cândida Almeida defende que a complexidade da criminalidade económico-financeira impõe que os processos não sejam separados porque os factos “entrelaçam-se”. Investigar não é sinónimo de acusar, alerta a magistrada para quem “tanto se faz Justiça acusando como absolvendo".
Poucos peritos e de áreas erradas
Cândida Almeida reconhece que a comunicação da Justiça é essencial para melhorar a imagem do setor e pede a mobilização de magistrados com a função de explicar os processos e as decisões aos cidadãos, sem quebrar o segredo de justiça.
"Os gabinetes de imprensa não são para fazer aqueles comunicados que, com o devido respeito, qualquer pessoa faz. Eles eram exatamente para comunicar que, quando houvesse coisas importantes e fundamentais para a comunicação social e os cidadãos, explicavam sem violação de segredo de justiça", assinala a procuradora jubilada do Ministério Público, em declarações ao “Da Capa à Contracapa” da Renascença, um programa em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Em linha com a atual procuradora-geral da República, Lucília Gago, que defendeu que o combate à corrupção está “votado ao fracasso” sem meios suficientes para uma investigação eficiente, Cândida Almeida insiste na falta de peritos do Ministério Público, responsabilizando o poder político por falta de vontade de reforço dos instrumentos ao dispor os magistrados e dos órgãos de polícia criminal.
"Quando eu estava no DCIAP, tive uma vez um crime de corrupção em que precisávamos de ter um perito em urbanismo, para saber se efetivamente tinha havido favorecimento nessa questão. A entidade a quem pedimos o especialista mandou-nos uma perita em educação! A própria senhora sentiu-se mal e dizia: ‘eu não sei, não faço ideia disto, posso ver, mas não sei’. É preciso alterar a lei e é preciso que o poder político tenha vontade disso, o que realmente não tem aparecido em todos os partidos. O Ministério Público precisa de um número de peritos e de técnicos capazes de fazer essas investigações. Nem o Ministério Público nem ninguém no mundo é enciclopédico, cada um tem a sua área", afirma a antiga diretora do DCIAP.
Justiça de Totoloto
Cândida Almeida admite que a corrupção existe onde há poder, mas recusa a ideia de que Portugal é um país carregado de corrupção.
Sem querer falar dos casos João Rendeiro e Manuel Pinho, por impedimento deontológico e desconhecimento dos processos, a antiga procuradora adjunta diz que o caso do ex-ministro pode não ser um caso de corrupção. Sobre a fuga de João Rendeiro, admite que não seria evidente que um arguido que tivesse sempre cumprido obrigações pudesse fugir à justiça.
Em entrevista recente, Manuel Pinho tem falado numa "justiça de totoloto" devido ao sistema que assenta apenas em dois juízes no chamado Tribunal Central de Instrução Criminal. Cândida Almeida compreende as queixas reconhecendo que, “obviamente, com dois juízes é sempre a 50% e, portanto, pode fazer-se essa análise”. A magistrada diz ter sido sempre contra a ideia de um Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) com apenas um juiz (Carlos Alexandre) ou com dois (juntando o juiz Ivo Rosa).
“Eu propus haver um tribunal de julgamento também para estes casos difíceis, porque se o Ministério Público estiver preparado para investigação, bem como o juiz de instrução, contando com pessoas que foram voluntárias para lá e que têm uma formação específica, as coisas correm muito melhor e muito mais rapidamente “, assegura Cândida Almeida, que considera que a alteração na arquitetura do TCIC com a entrada de mais sete juízes não vai resolver o problema do sistema.
Cândida Almeida defende que os juízes devem ser avaliados pela sua qualidade e não pela quantidade de magistrados, defendendo que os magistrados do também designado “Ticão” carecem de “qualidade e tempo” para estudar os processos.
"Esses nove juízes não ficam especializados nem em exclusividade com os crimes económico-financeiros e terrorismo, ou seja, à competência do artigo 47 do código do DCIAP. São magistrados que estão cheios de trabalho com a pequena corrupção, crimes de violência doméstica, de homicídio, etc… a quem vão carregar mais estes. E não é incluindo estes dois nos outros sete, fazendo nove, que as coisas vão melhorar", remata a magistrada que liderou a investigação do Ministério Público em múltiplos casos de especial complexidade.