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Nas vésperas de terminar o seu mandato como secretário-geral da UGT, Carlos Silva garante, em entrevista à Renascença, que deixa a situação financeira da central resolvida. A dívida de 1,8 milhões de euros não está paga, mas foi negociada com a Caixa Geral de Depósitos (CGD) para liquidar em 20 anos.
Já limpou a secretária e o gabinete e passou os dossiers a Mário Mourão, também ele socialista e bancário, que lhe sucede no cargo, a partir do congresso deste fim de semana, que tem lugar em Santarém.
Carlos Silva diz que o mal-estar com António Costa, que poderá ter prejudicado a UGT, “já passou”, mas insiste que o primeiro-ministro é “obstinado”.
Aos 60 anos deixa a UGT, reforma-se da profissão de bancário, regressa à calma de Figueiró dos Vinhos e à família. Para já. Porque admite que não vai desistir da intervenção político-sindical. Carlos Silva continuará a representar a central no Conselho Económico e Social Europeu até 2025 e é presidente da Assembleia Municipal no seu concelho. Quanto aos diversos convites que tem recebido, há tempo para pensar.
Há nove anos herdou uma UGT com dívidas e alguns problemas internos. Até se chegou a queixar de falta de comunicação, do então líder da central, João Proença, lhe ter passado toda a informação. Neste momento a situação financeira da UGT já está resolvida?
Está estabilizada. Deu muito trabalho. Sou uma pessoa que, nas minhas reuniões, nunca deixo de dizer o que tenho a dizer. Fui sempre transparente com os meus pares e os sindicatos da UGT – que são quem tem obrigação de alimentar a central sindical com as suas quotizações - não falharam nestes últimos anos. Também dramatizei um pouco o meu discurso.
Temos uma sede que nos orgulha, que nos dignifica e está a ser paga, todos os meses, com o esforço dos sindicatos. Resolvemos a questão dos fundos estruturais e a dívida que existia ao Fundo Social Europeu. Saio de cabeça erguida do ponto de vista da estabilidade financeira. Não é uma casa rica, nunca foi e não tem que dar lucro, mas neste momento está sustentável, está estável. Não há alçapões para o próximo secretário-geral.
Portanto, desse ponto de vista, Mário Mourão não terá qualquer tipo de queixa para lhe apresentar daqui a uns tempos.
Nem daqui a uns tempos nem mais tarde.
A dívida está toda paga ou está negociada?
Está negociada e estamos a pagar todos os meses à CGD.
Quanto é que ainda deve?
Até 2042 ainda faltam 1,8 milhões de euros. A 10 mil euros/mês, é só fazer as contas. Com juros incluídos, é muito dinheiro. Estamos em 2022, começámos a pagar em novembro de 2014, faltam 20 anos. E a sede começámos a pagar em 2016, faltam 14 anos.
Já está a passar os dossiers a Mário Mourão?
Já passei tudo o que tinha a passar. Sou previdente e gosto de passar tudo a tempo e horas. Já limpei a secretária e o gabinete.
Quais foram os dossiers mais complexos que teve de lhe passar?
Não tenho dossiers complexos na UGT. A parte mais elaborada, de um bancário para passar a outro bancário, são as questões que têm a ver com essas negociações. Quer com o Millenium BCP , com a CGD, as nossas contas, essa é a parte mais complicada, já os tem.
Do ponto de vista político, naturalmente, tive que o pôr ao corrente dos acordos que podemos fazer, os contributos que a UGT deu para a Concertação Social, para a Agenda do Trabalho Digno e tenho-lhe transmitido quais têm sido as posições que tenho assumido em nome da central, na CPCS [Comissão Permanente da Concertação Social] e com vários atores económicos e políticos, incluindo o primeiro-ministro, que recebeu os parceiros sociais uns dias depois de 30 de janeiro.
Além disso, mantenho-me disponível, depois de 24 de abril, para todas as informações que forem necessárias. Mas tenho a convicção que alguns dos atuais dirigentes se manterão na equipa do Mário Mourão.
Em termos de sindicalização, como é que a UGT evoluiu ao longo destes anos?
A sindicalização tem altos e baixos. Durante o tempo da austeridade, tivemos uma taxa de desemprego que atingiu os 17,5%. E houve reestruturações nas empresas que implicaram a perda de milhares de postos de trabalho. O setor mais afetado de todos, foi o financeiro. O setor bancário perdeu 15 mil trabalhadores desde que sou secretário-geral.
Neste momento, creio que a situação está estabilizada. Ao contrário, houve outros setores e com sindicatos nossos, que se tornaram muito mais poderosos. Da Administração Pública, da Justiça, da indústria, no setor privado.
Mas, com todo o respeito, isso não se deve só aos sindicatos, mas também à própria UGT. Eu disponibilizei-me ao longo destes anos para ir aos locais de trabalho, para fazer reuniões, plenários e dar a cara pelas decisões da central. Não podemos ser uma organização de gabinete. Há uns anos os trabalhadores vinham bater à porta dos sindicatos: isso acabou.
Sente que os sindicatos estão a perder força?
Não, sinto é que ao longo dos anos, por implementação de medidas ao nível global, houve uma tentativa de desacreditação dos sindicatos.
Mas não conseguem recuperar?
Têm recuperado alguma coisa, não conseguem recuperar tudo. Por exemplo, no setor da educação, durante seis anos não conseguimos dar nada aos trabalhadores, a não ser uma mão cheia de nada. Porque é que hão de sentir que têm de ser sindicalizados? Disse isso ao primeiro-ministro, quando nos recebeu numa reunião. Disse-lhe: “se continuarmos a ter do governo uma mão cheia de nada, pelo menos mantenham as reuniões com as organizações, num diálogo constante”. Mesmo que não tenham carácter financeiro, há sempre matérias em que é possível ganhar alguma coisa numa negociação.
Mas isso resulta de alguma incapacidade negocial dos sindicatos ou há aqui também, digamos, alguma prepotência do Governo?
Tem havido prepotência e muita arrogância do Governo.
E não há ineficácia dos sindicatos? Adaptaram-se às novas exigências dos novos trabalhadores?
Adaptaram-se, sim. Temos o setor financeiro, que é paradigmático do nosso caso. É um setor onde toda a gente é qualificada, ninguém entra na banca sem uma licenciatura ou algum grau mais avançado. Muitos emigram, já não estão para aturar isto e vão para países onde os salários são mais altos.
Esta falta de mão-de-obra qualificada tem muito a ver com a forma como o nosso país e as nossas empresas se posicionam. É fundamental que os patrões percebam que na negociação coletiva e no diálogo social, com sindicalização - tal como o Norte da Europa há muitos anos provou - que se conseguem resolver problemas dos trabalhadores e do país.
Temos muitos patrões e poucos gestores, alguns que não estão à altura das suas responsabilidades. Estão sempre à procura de alguém que venha por baixo salário e aceite tudo. Hoje os mais jovens não aceitam tudo. E muitos desses, como não acreditam nesta questão sindical pensam: “tenho que procurar por mim, o coletivo aqui não me resolve o problema, não me sindicalizo”. E essa tem sido uma das razões da quebra do número de sindicalizados, sobretudo no Sul da Europa.
Ao contrário, no Norte da Europa, a taxa de sindicalização continua a oscilar entre os 40% e os 60%, na Suécia. O que me parece bastante significativo da intervenção do movimento sindical. Nos países em que a crise foi maior, naturalmente que os sindicatos acompanharam a crise.
Mário Mourão, tal como Carlos Silva, vem da banca. Por um lado, quebra-se uma regra (não escrita, é verdade) de alternância entre um secretário-geral que vem do setor bancário e outro que vem da administração pública. Ainda por cima, como disse, houve perda de sindicalizados na banca. No entanto, o novo líder é deste setor. Pelo contrário, com os sindicatos da Administração Pública a subir o número de sindicalizados. Porque é que aconteceu?
Com todo o respeito, não há tradição escrita sobre isso. Só houve três secretários-gerais até hoje: o Torres Couto, o João Proença eu e, agora, o Mário. Nós também temos que garantir que a UGT, para além de uma posição político-sindical forte no país, tem uma retaguarda que a proteja do ponto de vista financeiro.
Portanto, foi a questão financeira e por serem os sindicatos bancários que financiam o funcionamento da UGT.
Influenciou. Nunca foi mentira. Todos financiam, mas há uns que financiam mais que outros. Têm poder financeiro. Se o problema fosse exclusivamente financeiro, certamente, o Mais Sindicato até asseguraria a liderança da central. É o maior sindicato do país, é poderoso, tem um orçamento conhecido do país porque é publicado, com mais de 130 milhões de euros. É maior que o de muitas empresas.
Foi um fator que alavancou muito a candidatura do Mário. Do ponto de vista político-sindical é um homem muito equilibrado, era discreto até ao momento, tem uma carreira política e sindical, é presidente do Sindicato dos Bancários do Norte, já foi deputado, já foi presidente da Federação do PS do Porto. É evidente que o outro candidato que se apresentou, se fosse eleito…
O José Abraão…
Também era um excelente secretário-geral. Essa questão nem se coloca. Do ponto de vista da mediatização, do trazer a mensagem da UGT para o exterior não tenho dúvidas que quer um quer outro são dois excelentes quadros sindicais. Há uma coisa em que não se quebra a tradição: o secretário-geral da UGT continua a ser socialista, é sempre socialista. Há fatores que têm que se pesar, mas foi decidido num Congresso, não foi por indicação do Carlos Silva.
De qualquer forma, havia um apoio expresso.
O maior sindicato português e da UGT apoiou a candidatura do José Abraão e, mesmo assim, não venceu. Não significa que haja derrotas para um lado e vitórias para o outro. Foi uma decisão ponderada dentro da central sindical.
Eu acho que a sustentabilidade financeira da central é indiscutivelmente, neste momento, mais garantida porque vai ter à frente alguém que tem por trás a liderança de um dos maiores sindicatos portugueses e, naturalmente, com uma sustentabilidade financeira invejável, assim como qualquer sindicato bancário.
Mas se o José Abraão fosse eleito secretário-geral teria de ter a solidariedade de todos os outros, isso nem sequer se põe em causa porque, se ele fosse eleito, naturalmente teria o meu apoio e o de toda a gente.
Quando chegou, há nove anos, disse que ia fazer apenas um mandato. Depois acabou por fazer o segundo, que até foi maior por causa da pandemia que ditou dois adiamentos do congresso. E havia quem quisesse que avançasse para o terceiro. Desta vez, decidiu que não. Isso também tem a ver com algum mal-estar que se foi agudizando com o primeiro-ministro?
Já passou.
Mas chegou a admitir que esse mal-estar pode ter prejudicado a UGT.
Pode ter prejudicado a UGT porque a UGT não está ao serviço de um partido político, muito menos do Partido Socialista, que é o meu. É verdade que nunca senti pressões do António Costa nem do António José Seguro em relação à minha liderança. Mas em determinados momentos, se a relação fosse mais assertiva, mais próxima, porventura, teria sido até mais fácil alcançar algumas das reivindicações da UGT. Também é verdade que nunca me foi fechada a porta com os membros do Governo.
Ou seja, conseguia falar com os ministros, mas não com o primeiro-ministro.
Foi sempre muito complicado. Mas nunca fechou a porta nem nunca deu ordens aos membros dos seus governos para vedarem a porta ao diálogo com a UGT. Tive sempre uma excelente relação com o Vieira da Silva, com a Ana Mendes Godinho, que fez um excelente trabalho, num período muito difícil.
Os apoios que recebi dentro dos governos do PS foram sempre muito importantes do ponto de vista das várias tutelas. Inclusivamente, Pedro Siza Vieira e outros, que nunca fecharam a porta à UGT.
Agora, é verdade que eu disse que queria sair no fim do primeiro mandato. Não saí porque sentia um grande apoio à minha volta, como senti agora.
Também não tinha um sucessor…
E agora teve que ser empurrado… com gentileza. É verdade que o José Abraão apareceu primeiro, mais tarde é que apareceu o Mário Mourão, mas todos eles queriam que eu continuasse como secretário-geral. Eu é que entendi que era tempo de sair. Fiz 60 anos, estou há nove anos na UGT, independentemente do que aconteceu com o primeiro-ministro, não tenho inimizade com ele, é uma questão de feitios.
É porque são os dois muito frontais?
Eu sou muito frontal e o António Costa também é. Já nos conhecemos há muitos anos.
Portanto, chocam.
É como os casais. Às vezes, quando têm o mesmo feitio, aquilo não joga certo. E nós somos frontais. Eu já lhe disse várias vezes que ele é um homem obstinado, eu porventura também sou. E entendo que a melhor maneira de defender a UGT foi sempre não demonstrar à opinião pública que estava dependente de alguma ligação mais simpática ou menos simpática com o Governo do Partido Socialista. Fiz sempre questão de demonstrar isso. A UGT tem feito o seu caminho, de liberdade e pluralismo.
Claro que o Mário Mourão não tem estes anticorpos, é uma pessoa diferente. Julgo que até tem uma relação muito razoável com o António Costa.
Eu vivo em Figueiró dos Vinhos, é longe daqui, no Pinhal Interior Norte. E durante nove anos não acompanhei o curso do meu filho, estive ao longe, a minha mulher ficou sozinha lá em cima.
Portanto, agora vai voltar para Figueiró dos Vinhos?
Vou voltar.
Volta ao seu posto de trabalho como bancário ou, entretanto, vai reformar-se?
Entretanto, vou reformar-me (a partir de 1 de maio).
E abdica totalmente de algum tipo de intervenção político-sindical?
Não, sou presidente da Assembleia Municipal, tenho muitos convites, muitas palmadas nas costas para outros desafios. Mas para já, ainda é cedo para aceitar o que quer que seja. Vou ponderar o que fazer. Com 60 anos, a única coisa que mudou foi a cor do bigode. Quando fui eleito, em 2013, tinha o bigode escuro; já tenho o bigode branco e muitos cabelos brancos. É tempo de acalmar um pouco.
A liderança de um parceiro social – não é só a UGT, com os outros acontece o mesmo – é muito exigente. Muito mediatismo, muitas decisões. E o secretário-geral é o rosto da central, é o cargo mais exigente. Mas para já, não estou preocupado. O importante é passar a pasta de forma tranquila no próximo fim de semana.