O novo Passe Ferroviário Nacional, que entra em vigor em agosto, abrange pouco mais de 7% dos passageiros transportados pela CP. David Vale, especialista em mobilidade, diz que, apesar da iniciativa ser “um bom primeiro passo”, é “muito insuficiente”.
O Passe Ferroviário Nacional está à venda desde o dia 1 de julho, custa 49 euros por mês e pode ser adquirido nas bilheteiras da CP. No entanto, é válido apenas para os comboios regionais – o que resulta do próprio Orçamento do Estado para 2023, no qual o Livre conseguiu que a sua proposta fosse incluída.
Em 2019, a CP transportou 11,2 milhões de passageiros no serviço regional, o que equivale a 7,8% dos mais de 144,8 milhões de passageiros transportados naquele ano pela empresa – um rácio que desce para 7,1% quando são tidos em conta os números de passageiros de 2021.
Em 2022 – ano cujo relatório de contas ainda não foi publicado pela CP -, o número total de passageiros atingiu os 148 milhões, de acordo com o jornal Público.
Para David Vale, coordenador do Núcleo de Urbanismo do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD) da Universidade de Lisboa, o novo título de transporte para os comboios da CP é “um bom primeiro passo” e “faz todo o sentido” promover “a utilização dos comboios”.
Contudo, o facto de o Passe Ferroviário Nacional abranger apenas os comboios regionais torna-o “mais interessante para o operador do que propriamente para o passageiro”, considera o professor universitário, já que são “comboios mais lentos e que normalmente têm menos procura”.
Ir à praia na Figueira da Foz? Não se partir de Coimbra
O mero facto de o serviço Interregional não estar contemplado pelo Passe Ferroviário Nacional cria situações estranhas na utilização dos comboios da CP.
Na Linha do Douro, no sentido Porto – Pocinho, o serviço regional apenas se estende até Pinhão, mas não é possível ir da estação de São Bento até Pinhão exclusivamente num comboio regional, de acordo com a tabela de horários disponível no site da CP - o único serviço regional que chega ao Pinhão começa apenas em Marco de Canaveses, o que obriga os passageiros a utilizar o serviço urbano no troço São Bento - Marco de Canaveses.
Ainda no mesmo sentido, apenas um comboio regional parte de Porto São Bento - às 22h20 – e segue até à Régua, onde chega às 0h27. Para chegar ao Pocinho, é preciso utilizar um comboio Interregional.
No sentido inverso – de Pocinho para o Porto -, nenhum dos dois serviços integralmente regionais percorrem toda a Linha do Douro: um comboio parte às 5h30 da Régua para o Porto; o outro parte às 19h26 do Pocinho, chegando às 20h50 à Régua - onde é preciso fazer transbordo para outro comboio regional, que pára em Marco de Canaveses, onde é necessário novo transbordo, agora para um comboio urbano.
O Passe Ferroviário Nacional permite ir à Figueira da Foz. A viagem, porém, fica bastante complicada caso a estação de partida seja em Coimbra, porque o serviço regional apenas chega à estação de Alfarelos, no concelho de Soure – a partir daí, para chegar à Figueira da Foz, apenas existe o serviço urbano, suplementado por um comboio interregional já depois das 22 horas.
Para chegar à estação da Figueira da Foz num comboio regional, é preciso partir de uma estação na Linha do Oeste, que passa por Leiria, Marinha Grande e Caldas da Rainha, e chega a Lisboa por Sintra.
Desta forma, abrangendo apenas os comboios regionais, o Passe Ferroviário Nacional obriga a percursos pouco óbvios, assim como a viajar durante mais tempo e em horas nem sempre amigáveis. E deixa de fora cidades como Braga, Guimarães e Évora.
Serviço regional é pouco competitivo face ao autocarro
David Vale aponta que, ao optar por um autocarro, “há muito mais oferta” do que no serviço regional da CP, e “até por preços mais competitivos relativamente ao comboio” em percursos de longo curso.
O docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa sublinha que a “grande vantagem” dos comboios regionais – a cobertura da rede ferroviária - enfrenta a “grande desvantagem” que é a lentidão dos mesmos, o que torna o serviço regional “pouco competitivo relativamente ao autocarro”.
A essa vertente junta-se ainda uma rede ferroviária “muito negligenciada” e “muito envelhecida”, assim como material circulante “um bocadinho envelhecido”, criando um cenário de baixa oferta, com baixa frequência de serviços.
O investigador declara-se “muito expectante” para perceber a adesão dos passageiros ao novo passe, mas ressalva que, neste formato, apesar do preço “competitivo”, o Passe Ferroviário Nacional tem uma lógica mais próxima da “utilização turística”, por parte de passageiros “sem pressa” para chegar a algum lado.
A Renascença questionou a CP acerca da adesão esperada pela empresa pública ao novo título de transporte, assim como sobre quaisquer obstáculos técnicos à inclusão dos comboios do serviço Interregional no Passe Ferroviário Nacional, mas não obteve resposta até à publicação desta notícia.
Em declarações à Renascença, Rui Tavares, deputado único e autor da proposta do Livre, afirmou que a inclusão apenas dos comboios regionais se deve ao processo de “negociação orçamental”, e anunciou que o partido vai propor o alargamento do Passe Ferroviário Nacional a outros serviços no Orçamento de Estado de 2024.