Já vamos num ano de pandemia e de cultura do medo. Passado todo este tempo, uma coisa é clara: o pós-verdade é muito democrático na sua distribuição. Não é só o extremo trumpista que não respeita a ciência; o extremo dominante, o extremo hipocondríaco que se julga moralmente superior, também não respeita as evidências. Fechar as escolas é uma decisão errada e irracional; é uma cedência ao medo difuso sem base científica; é uma cedência a uma opinião pública que não lê, uma opinião viciada em imagens de tv emotivas; é um acto de desespero de uma sociedade que falhou na protecção dos mais velhos e que agora desprotege os mais novos.
Na SIC, Francisco Abecassis, pediatra intensivista, foi claro: fechar as escolas é um erro que destruirá a vida de muitas crianças, sobretudo das mais pobres. Este pediatra foi claríssimo e corajoso: “eu e muitos dos meus colegas somos contra o fecho das escolas”. Porquê? Volto à minha coluna da semana passada: as crianças não são afetadas e não há qualquer evidência que mostre que a expansão do vírus está relacionada com as escolas, sobretudo se pensarmos na pré e na primária. Recorde-se, de resto, que esta vaga começou quando as crianças estavam em casa de férias. Portanto, é absolutamente escandalosa a narrativa que se quis impor esta semana. Não, a culpa desta vaga não é das crianças, não é das escolas, encontrem por favor outro bode expiatório. Falem por exemplo da absurda incapacidade do governo para proteger os lares de idosos. Já passou quase um ano e continuamos a ter surtos nos lares. Como é que isto é possível? Não é aceitável, tal como não é aceitável a psicose colectiva que tem as prioridades trocadas. O vírus mata sobretudo pessoas acima dos 70/80 anos, mas toda a paranóia colectiva fica concentrada nas escolas, como se este fosse um vírus de incidência pediátrica. Se metade da psicose gerada pelas escolas fosse desviada para os lares, estaríamos numa situação muito mais favorável e racional desde Março.
Estamos a destruir a infância e a adolescência de uma geração. Estes miúdos vão ficar para trás na instrução escolar. Vão ficar para trás na educação moral da empatia e da cidadania. Vão desenvolver patologias psiquiátricas. Vão ficar ainda mais obesos. Qual é a comorbidade mais aproveitada pela covid-19? A obesidade, que será uma inevitabilidade numa geração tão fechada em casa.
Claro que as classes mais altas encontrarão maneiras de apoiar as suas crianças e adolescentes. Como sempre, serão as crianças mais pobres que pagarão esta fatura. Vamos perder uma geração de crianças pobres. Depois de dois anos lectivos interrompidos, nunca mais o sistema conseguirá agarrar e salvar milhares de jovens da pobreza material e cultural em que vivem. Vamos perdê-los para o desespero, para a miséria, para a delinquência, para a inércia nem-nem. As assimetrias sociais e educativas ficarão ainda mais marcadas (um mal em si mesmo) e ficarão ainda mais à mercê de aproveitamentos populistas.
E este novo #ficaremcasa não representa só a destruição do futuro de uma geração de alunos pobres; também representa a destruição dos sonhos profissionais de muitas mulheres de todas as classes, porque são elas (e não eles) que se sacrificam em casa pelos filhos. Estou à vontade nesta matéria, mas sei bem que a minha casa é uma excepção. Quando acordarmos do torpor coletivo, vamos descobrir um país ainda mais desigual entre ricos e pobres e entre homens e mulheres.