O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o pedido de recusa apresentado por Ricardo Salgado contra a juíza do Tribunal da Concorrência Mariana Machado, avisando que este incidente não pode ser usado de “ânimo leve” nem “visando outros fins”.
Na decisão, a que a agência Lusa teve acesso, o juiz desembargador Carlos Melo Marinho considerou “desajustada” a nulidade requerida quanto à apensação do processo Eurofin ao do BESA e “peregrina” a tese de que “um juiz não pode ter como familiar uma personalidade pública”, em resposta à invocação de falta de imparcialidade de Mariana Machado por ser sobrinha da antiga diplomata Ana Gomes, tendo em conta várias declarações desta sobre o BES e Ricardo Salgado.
A Relação condenou mesmo Salgado ao pagamento de 16 Unidades de Conta (1.632 euros), tendo em consideração “a gravidade das suas invocações manifestamente desprovidas de sentido e razoabilidade” e o ter tido “como efeito, em processo marcado por grande urgência, evitar o início da audiência de julgamento no momento devido”.
Sobre o argumento de “decisões contraditórias” na apensação do processo Eurofin ao processo BESA, concretizada não por decisão de Mariana Machado mas da titular do Juízo 3 do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), a Relação adverte que “decisões judiciais impugnam-se através de recursos” ou “arguições de nulidade”.
“Não é admissível o uso do incidente de recusa para gerar um pseudo-recurso abrangente, difuso, lateralizado e tardio, visando, de forma fluida, não frontal e desprovida do imprescindível esteio técnico e ritual, decisões que não se impugnou, propondo-se que uma tese vencida e não brandida em todas as instâncias permitidas obtenha vencimento à custa da colocação em causa do fator 'sagrado' para o sistema que é a imparcialidade de um juiz, algo que não se pode questionar de ânimo leve e com finalidades distintas das legais”, afirma.
Quanto à tentativa de ligação de Mariana Machado a declarações prestadas por Ana Gomes, Melo Marinho sublinha que ao Tribunal está “totalmente vedada” a “análise crítica de qualquer afirmação, iniciativa ou ação” da ex-eurodeputada, apenas podendo analisar da imparcialidade de uma titular de órgão de soberania, sendo que “não são as declarações da tia atribuíveis à sobrinha”.
“Ninguém pode ser punido pelo que diz ou faz um seu familiar”, afirma, frisando que num país democrático está constitucionalmente garantido que “nem esse familiar seja punido pelas suas opiniões formuladas num contexto de legalidade”.
Melo Marinho salienta o facto de a defesa de Ricardo Salgado reconhecer que as declarações de Ana Gomes, de que juntou vários artigos, entrevistas e ‘posts’, não são atribuíveis a Mariana Machado, tendo procurado colmatar o “desaparecimento do ‘solo’ argumentativo” com a alegada “ressonância mediática” gerada por essas declarações e com “ser pública a relação familiar entre ambas, o que faria o ‘cidadão médio’ desconfiar da isenção e imparcialidade” da juíza.
“Olvidou, nesta operação substitutiva, que produziu profunda incoerência no seu discurso ao lançar a tese peregrina de que um juiz não pode ter como familiar uma personalidade pública que expresse as suas opiniões”, afirma.
Para o juiz desembargador, a ser aceite o “binómio: ‘ou o familiar se cala ou o juiz não trabalha’, o resultado seria sempre favorável: ou se silenciava um crítico ou se ganhava precioso tempo e ascendente com o afastamento do juiz de um processo incómodo”, reduzindo o sistema de Justiça “a uma caricatura de si próprio”.
A decisão da Relação sublinha ainda que, não fosse a apresentação do pedido de recusa e a sua divulgação na Comunicação Social, o cidadão comum desconheceria o laço de parentesco entre Mariana Machado e Ana Gomes, frisando que “ao dito cidadão” o que interessará é que “se faça Justiça e que os Tribunais punam os culpados e absolvam os inocentes e os processos não terminem com prescrições”.
Quanto às declarações feitas por Mariana Machado sobre as condições em que funciona o TCRS, em Santarém, e os riscos de prescrição dos processos aí julgados, que Salgado invocou como suscitando “risco de suspeita”, para a Relação, este argumento só teria sentido “se o arguido porfiasse por prescrições e pelo mau funcionamento do sistema em termos que conduzissem à sua inoperabilidade”.
Lembrando que Mariana Machado deu entrevistas sobre as condições em que funciona o TCRS, tal como as outras duas juízas titulares deste tribunal, a Relação frisa que nunca Ricardo Salgado foi nomeado e questiona como pode considerar-se “atingido (a menos que representasse a causa da prescrição e da entropia judicial)?”.
Melo Marinho conclui que, se “alguma aparência” se pode retirar do pedido de recusa apresentado por Salgado, será, “não a de risco de parcialidade do Tribunal, mas de luta pertinaz do arguido pela bondade das prescrições ao indignar-se veementemente contra quem a tal figura se oponha”.
Essa “paixão”, sublinha, não é suscetível de “colher o apoio do tal ‘homem médio’” que a defesa de Salgado “tentou mostrar conhecer e cuja sintonia com a sua visão parece estar a sobrevalorizar”.
“O arguido não sentirá, certamente, a aversão a quem não queira a prescrição dos processos judiciais que parece resultar do requerimento inicial deste incidente”, acrescenta.
A decisão destaca a afirmação de Mariana Machado, na pronúncia feita ao pedido de recusa, sobre o facto de este surgir a 72 horas do início do julgamento, agendado para o passado dia 24 de maio, quando os autos são por si tramitados há mais de um ano.
No processo BESA/Eurofin, estão em causa coimas num total de 17,3 milhões de euros aplicadas pelo Banco de Portugal (BdP).
No primeiro caso, incluem-se infrações como a não implementação de procedimentos que reforçassem ou garantissem o acompanhamento das operações realizadas com o BES Angola, não implementação de processos de análise ao risco de crédito relativamente ao crédito contratado com aquela instituição e “incumprimento dos deveres de comunicação obrigatória” ao Banco de Portugal (BdP) dos problemas associados às carteiras de crédito e de imobiliário do BESA.
No processo Eurofin, o BdP imputou a prática de atos dolosos de gestão ruinosa praticados em detrimento de depositantes, investidores e demais credores, desobediência ilegitima a determinações do supervisor e, entre outras infrações, a comercialização, de forma direta ou indireta, de dívida de entidades do ramo não financeiro do GES junto de clientes de retalho.