O diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária (PJ), Carlos Farinha, considera que, "com tantos avisos, é pouco aceitável falar-se em negligência nos incêndios".
Em entrevista à Renascença, Carlos Farinha revela que este ano já foram detidas cerca de 140 pessoas suspeitas de terem provocado incêndios.
Há casos em que "a negligência é juridicamente pouco aceitável" e devemos falar em "dolo eventual", com um moldura penal mais pesada, defende.
Num ano marcado por um aumento dos fogos, o diretor nacional adjunto da Judiciária admite que "a intervenção preventiva continua ainda a não ser suficiente, apesar de ser maior".
Estamos a entrar no último mês da fase mais crítica dos incêndios. Que balanço é possível fazer, nomeadamente sobre a origem dos incêndios? Há mais com origem dolosa ou mais provocados pela negligência?
Não é o melhor momento para fazer balanços, porque a época está em curso e porque a dimensão destas coisas se altera de forma muito dinâmica e muito inconstante. Mas julgo que podemos falar num maior número de ocorrências que, sendo negligentes, se aproximam do dolo. Casos em que a negligência é juridicamente pouco aceitável.
Com tantos avisos, com a severidade meteorológica que vivemos, com tantos incêndios, é quase impossível aceitar que se fale em negligência. Temos que olhar para estas situações como dolo eventual.
É difícil explicar negligências em situação de alerta ou de contingência.
Sim, são ocorrências muito próximas do dolo eventual.
No capítulo da negligência, é no “mundo agrícola” que se regista o maior número de ocorrências?
O fogo faz parte da agricultura, e ainda que não seja muito agradável dizê-lo nesta altura, o fogo faz parte da nossa natureza, faz parte da renovação da própria natureza. Mas é preciso lembrar que o país sofre de uma desertificação com décadas, que a maior parte da população vive no litoral, e que se assiste a uma certa interrupção da economia circular que a floresta proporcionava. Portanto, todos estes fatores estruturais têm feito com que o fogo passe a assumir uma dimensão mais destrutiva.
Acontece muito no mundo rural. Mas não pensemos que os fogos resultam exclusivamente das pessoas que vivem no mundo rural, porque corríamos o risco de o diabolizar, e não é esse o nosso objetivo.
Mas o país esteve muitas semanas em situação de alerta, esteve também algumas em situação de contingência, e nesses dias foi proibido usar o fogo na floresta, e proibidas atividades e trabalhos de risco. Como é que, apesar disso, o número de ocorrências é tão elevado?
O que se passa é que, possivelmente, a intervenção preventiva continua ainda a não ser suficiente, apesar de ser maior.
A possibilidade de utilização do fogo de forma controlada, ou a possibilidade de criar atividades alternativas nesta realidade florestal, ainda não foram suficientemente transmitidas à população.
Continua a haver pessoas que não acreditam nos alertas e nos avisos que recebem. E continua a haver pessoas que acham que conseguem controlar situações que depois se descontrolam. Isso continua a acontecer e, portanto, tem que se melhorar a ação preventiva, para conseguirmos baixar o número de ignições.
Sobretudo depois de 2017, houve um conjunto de esforços de maneira mais ou menos integrada, com várias entidades e várias instituições, várias reflexões, várias comissões também, que procuraram encontrar caminhos para a redução de ignições e essa redução foi-se conseguindo até 2021.
Curiosamente, este ano está-se a notar algum descontrolo e algum aumento no número de ignições, e até a ocorrência de ignições nos dias mais críticos em que elas podem ter mais consequências, como de resto aconteceu também em outubro de 2017.
"Este ano já foram detidas 140 pessoas"
E no capítulo dos incêndios dolosos, aqueles que são propositadamente ateados, como é que tem sido este ano?
O que temos neste ano é um aumento substancial de resultados. Só da parte da Polícia Judiciária, temos até o momento sete dezenas de pessoas detidas por incêndio doloso. Penso que o número de pessoas detidas em flagrante delito pela Guarda Nacional Republicana é muito similar e, portanto, estamos a falar de cerca de 140 pessoas que este ano foram detidas. É o total de pessoas detidas pelas diferentes formas de uso criminoso do fogo, seja na forma dolosa, seja na forma negligente.
Mas que situações têm sido mais frequentes? O padrão dos últimos anos aponta para quadros de alcoolismo, problemas de saúde mental e vinganças. Como é que está a ser este ano?
Também é ainda cedo para fazer uma avaliação relativamente a essa vertente, de todo o modo, continuamos a ter situações similares, ainda que com algum reforço, por exemplo, na futilidade das motivações ou na quase ausência de motivações.
Ou seja, de facto, o alcoolismo continua a ter um peso muito grande, mas também encontramos imensas pessoas que não conseguem sequer explicar porque é que fizeram aquele ato. Por que é que fizeram? Porque sim. Fizeram-no num contexto de enorme futilidade de motivações, às vezes também associado a problemas de saúde mental.
E, mesmo não tendo dados científicos que o provem, admito, pelo menos em tese, que os efeitos do pós-pandemia também se verifiquem num certo desregramento de comportamentos e condutas.
O que se nota, repito, é um comportamento ou um conjunto de comportamentos em contradição com aquilo que tem sido a mensagem de responsabilização e a tentativa preventiva de que esses comportamentos não ocorram.
Mas os autarcas, as populações, e às vezes até os próprios bombeiros, falam muitas vezes em fogo posto, em mão criminosa para servir interesses económicos. Isso não acontece?
Relativamente às denúncias de fogo posto, algumas delas correspondem à realidade, e a prova é que há muitas pessoas detidas por esse crime. Mas não é assim em todos os casos.
Um grande fogo, em regra, tem uma realidade muito complexa no seu desenvolvimento, e isso nem sempre é percebido e por vezes, de forma mais simplista, é atribuído a alguém que anda na frente de fogo a fazer novos focos de incêndio. Quanto a isso não estamos muito de acordo, mas não deixamos de estar atentos a duas questões:
Primeiro, ao estudo exaustivo do histórico e da informação disponível. Hoje, felizmente, temos muito mais informação do que tínhamos há alguns anos. Temos plataformas de fácil acesso, temos fitas de tempo, as localizações com as coordenadas rigorosas dos pontos de início e fim dos incêndios.
Por outro lado, relativamente à questão dos interesses económicos, é algo que não pomos completamente de lado, não necessariamente para encontrar interesses económicos como causa de incêndios – porque achamos que não estamos perante crime organizado – mas para podermos encontrar aproveitamentos económicos em consequência dos incêndios, que também tenham que ser regulados.
“Não acreditamos que o agravamento de penas reduza as condutas criminosas”
Uma das formas tidas como eficazes para prevenir os comportamentos pirómanos são as prisões domiciliárias intermitentes, para não deixar sair de casa no verão, pessoas que manifestamente têm um problema com o fogo. Pelos dados do Ministério Público, há 12 pessoas nessas condições. Não são poucas face à dimensão do problema?
Parece-me que temos que ver a questão de duas perspetivas. Uma é o cumprimento de pena, outra são as medidas aplicadas antes do julgamento ou de qualquer condenação.
No que diz respeito à aplicação de penas, já existem mecanismos jurídicos que permitem o cumprimento da pena de forma que ela seja mais eficaz na proteção da sociedade, ou seja, de forma que esse cumprimento possa ser alternado no tempo.
Isso já está a ser feito. Provavelmente pode e deve recorrer-se mais a esse mecanismo, mas como sabe o sistema judicial tem a sua própria morosidade de integração das novas formas de punir. Mas penso que a tendência é para que aumentem o número de situações em que a punição possa ser mais adequada à proteção da sociedade.
Por outro lado, também é importante olharmos para o que tem acontecido no período pré-julgamento ou pré-condenação. E aí o que temos verificado é uma taxa relativamente alta de aplicação de medidas privativas de liberdade, seja pela aplicação da medida de coação de prisão preventiva, seja pela aplicação da obrigação de permanência na residência, seja até, nalguns casos, pela obrigação de internamento.
Por exemplo, entre as 70 pessoas que já detivemos este ano, a percentagem de medidas privativas de liberdade anda na ordem dos 60%, e essa é uma percentagem alta se compararmos com a aplicação de medidas privativas de liberdade no plano das medidas de coação noutro tipo de crimes.
E que opinião tem a Judiciária sobre as molduras penais para este tipo de crimes? Há quem defenda um agravamento das penas.
Desde logo, o que pensamos é que a definição das penas cabe ao legislador, que é quem tem legitimidade para as definir. No entanto, a prática diz-nos que o aumento das penas não leva a uma diminuição das condutas.
Repare. O limite máximo de penas para estes crimes são os dez anos, quando estamos perante situações de dolo. Se for negligência com dolo eventual o limite máximo é oito anos, e quando estamos perante uma situação puramente de negligência, quer na origem da ignição quer no desenvolvimento do incêndio a pena vai até aos cinco anos. Portanto, são penas que têm algum peso no contexto geral de outros valores jurídicos.
Por exemplo, a criminalidade sexual também tem penas que andam por volta dos dez anos.
Depois ainda há situações que agravam as penas, se do incêndio resultaram mortes.
Estamos a ter esta conversa a sensivelmente um mês de se completarem cinco anos da reforma lançada na sequência do ano trágico de 2017. O que é que mudou no trabalho da Judiciária?
O fenómeno dos incêndios apresenta sempre uma forma complexa e sem rótulo. Isto é, nós quando estamos perante um incêndio, raramente sabemos como é que ele foi originado e, portanto, tanto pode ter origem negligente, dolosa ou natural.
Por isso é preciso ter condições para fazer essa triagem, e esse processo é hoje mais bem feito do que era antes de 2017. De forma inequívoca.
Porquê? Porque se criaram algumas estruturas de partilha efetiva, grupos de trabalho de redução de Ignições, que integram a Guarda Nacional Republicana, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, e a Polícia Judiciária em pequenas equipas móveis que se deslocam quer na zona Centro, quer na zona Norte e que fazem a triagem das situações para depois serem encaminhadas para a entidade adequada.
Por outro lado, houve a introdução da chamada tecnologia de vigilância, e a possibilidade dessa tecnologia ser usada como elemento probatório.
Era algo que já vínhamos reivindicando, e que ajuda a perceber quem é que pode ter acedido a determinado local onde ocorreu uma ignição.
E ainda um aspeto que nos parece particularmente importante, que é o aumento substancial das plataformas de informação partilhadas pelas várias entidades.
É claro que há sempre margem de otimização e de melhoria. Este ano, com um aumento tão grande de ignições, vai-nos obrigar a todos a perceber o que é que ainda não foi feito, a perceber o que é que podíamos ter feito melhor.
Mas não tenho dúvidas que, face a 2017, há hoje em dia um melhor espírito de trabalho em rede, que gera valor acrescentado a todas as entidades. Parece-me uma cultura crescentemente adquirida.