“Não há alternativa.” Médico do grupo das “linhas vermelhas" defende adiamento do desconfinamento
24-06-2021 - 06:30
 • Pedro Mesquita

Bernardo Gomes diz que Portugal não deve estar preso ao paradigma da imunidade de grupo e considera que a grande vantagem do isolamento da Área Metropolitana de Lisboa é o seu efeito de aviso.

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O médico de saúde pública Bernardo Gomes, que também integra o grupo das “linhas vermelhas da Covid”, diz em entrevista à Renascença que o Governo deveria adiar, em três ou quatro semanas, a última fase de desconfinamento e sugere algumas vias de recuo nas zonas do país mais afetadas pela pandemia.

No plano nacional, que medidas deveria anunciar o Governo esta quinta-feira para travar a espiral de casos Covid, e evitar a disseminação da variante Delta, que já representa 70% das novas infeções na região de Lisboa e vale do Tejo?

Creio que não há grande alternativa ao adiamento da última fase de desconfinamento.

Para quando?

Julgo que uma folga de três a quatro semanas, à imagem do Reino Unido, seria o prudente, o indicado. Depois, julgo que podíamos rever a questão do teletrabalho, deixar o teletrabalho durante mais tempo, a funcionar em moldes de obrigação e não como sugestão. Também não me parece que exista grande alternativa a cumprir a matriz de risco e, nos concelhos mais afetados, haver recuo no desconfinamento, ainda que eu admita que possa haver ajustes nomeadamente da tolerância ao ar livre e, também, na devida fiscalização nos espaços fechados.

Em sua opinião, ao ar livre deveria abdicar-se do uso de máscara?

Julgo que não é o momento indicado para o fazer porque com a variante Delta poderia confundir e ser contraproducente. Julgo que esse momento irá chegar, não vai demorar muito, mas ao que me refiro é que, em zonas que não sejam sensíveis, se poderá começar a abandonar a mensagem de que uma pessoa isolada, ou com o seu grupo habitual, deve usar máscara ao ar livre.

Mas que outros recuos deve haver, em particular nas zonas que estão agora mais afetadas pela pandemia?

Penso que a redução da lotação dos transportes públicos parece evidente. A redução da lotação em espaços fechados também me parece evidente e, ao mesmo tempo, uma campanha de sensibilização para os mais jovens, sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo. Uma campanha com uma mensagem inequívoca de que as reuniões só devem ser feitas em pequenos grupos e ao ar livre.

É completamente errado pensar que as pessoas vão ficar em casa numa altura de Verão e de calor. As pessoas vão procurar sair, vão procurar conviver. É preciso apresentar uma alternativa para que as pessoas possam estar com o máximo de segurança, ainda que presumindo a existência de algum risco, que nunca será nulo, mas que nos permita viver as nossas vidas com alguma normalidade.

Ou seja, o Governo vai ter agora a tarefa complicada de fazer algum recuo, e numa altura em que as pessoas estão cansadas, mas tendo a plena liberdade de fazer um ajuste de medidas que apresentem caminhos que permitam às pessoas estar à vontade, ou com menos risco. Será muito importante que as pessoas não sejam convidadas a ações clandestinas. As grandes reuniões em espaços fechados são, certamente, mais prejudiciais em termos de transmissão da Covid.

"Se não for acompanhada de uma comunicação à altura, e bem fiscalizada, a proibição de entrar e sair da Área metropolitana de Lisboa, ao fim de semana, pode ser contraproducente"

No último fim de semana, salvo as exceções conhecidas, foi proibido entrar ou sair da Área Metropolitana de Lisboa. Essa medida deveria ser mantida? Produz algum efeito num espaço tão vasto, de fiscalização difícil. Muitas pessoas dizem que atravessaram e ninguém as mandou parar...

É uma pergunta difícil. Essa medida tem um efeito imediato e psicológico, que foi de aviso...

Mas deveria manter-se?

Se esta circunstância não for muito bem explicada, se não for acompanhada de uma comunicação à altura e, sobretudo, se não for devidamente fiscalizada, até pode vir a ser contraproducente. Teoricamente até a vi com bons olhos, no sentido de haver uma sinalização de risco. Só que depois há a questão do incumprimento e das suas consequências. Temos de ver o contexto e perceber que estamos todos muito cansados. Isto surge depois de um mês e meio de incongruências, de uma comunicação que não foi tão eficaz. A recetividade das pessoas a regras que não compreendem e que sejam vistas como inúteis, isso pode ser contraproducente.

Erros de Comunicação

Fala de mês e meio de incongruências, mas este vírus na comunicação, que o senhor tem apelidado de inadequada, não tem percorrido toda a pandemia? Não existe um vírus anexado ao coronavírus, na comunicação?

Podemos dizer que sim. Houve um fio de erros e de circunstâncias que correram menos bem na comunicação, ao longo de toda a pandemia. Houve pontos altos e pontos baixos.

Quais são os erros capitais, desde o início?

Para ser concreto, a má gestão da incerteza. Tivemos, também, várias vozes com mensagens contraditórias. É difícil gerir algo assim. Ou seja, nem sequer posso estar a apontar a A, ou B, ou C, uma responsabilidade especifica quando, depois, a comunicação de risco é caótica ou partilhada de forma não alinhada...

Tem sido caótica a comunicação de risco, nomeadamente por parte dos políticos?

Creio que houve momentos em que umas vezes houve mensagens incongruentes entre ministérios ou entre o governo e o Presidente da República. Outras vezes houve especialistas, com exposição mediática, que avançaram mensagens que não foram uteis, em determinados contextos.

Eu julgo que há, também uma relação a construir de novo entre os profissionais de saúde e os media, na gestão de crises e pandemias.

Ainda vamos a tempo de emendar a mão?

Não sei responder, para ser franco, porque são já muitos meses de pandemia. Há, neste momento, uma Task-force de uma ciência comportamental. Espero que seja usada porque tem pessoas de grande valia.

Seja como for, há a necessidade de fazer reformas estruturais porque, vamos ser concretos, não é apenas a questão de uma doença infeciosa, prolongada e desgastante, a obrigar à existência de equipas preparadas, e de longo prazo. Podemos ter, daqui a algumas décadas, um sismo em Lisboa ou uma nova tragédia como a de Pedrogão. É necessário revisitar a ciência dos desastres – e há pessoas qualificadas para analisar a forma como devemos responder – mas também a comunicação em crise, a comunicação de risco, com destaque para a saúde.

Devemos perceber que, se a comunicação for clara e soubermos mobilizar os cidadãos, será necessário adotar medidas menos restritivas.

A imunidade de grupo, com 70% da população vacinada, já não corresponde à verdade.

Para si ainda é um dado adquirido que haverá imunidade de grupo quando 70% da população estiver vacinada?

Bem, isso já não corresponde à verdade porque já sabemos que, com as novas variantes do vírus, sobretudo a variante Delta, a transmissibilidade é maior. Quando a transmissibilidade é maior, o limiar da imunidade de grupo também é maior. E, depois, ainda que temos de dividir isto pela chamada efetividade vacinal. Ou seja, pela percentagem de pessoas que efetivamente não se infecta.

Qual seria a sua fasquia para a imunidade de grupo, neste momento?

Não me arrisco a definir um valor para a imunidade de grupo, nem devemos estar presos a esse paradigma. Julgo é que é necessário chegarmos a um ponto em que temos toda a população adulta vacinada. Só assim teremos uma proteção coletiva ao ponto de haver uma maior dissociação entre o número de casos, de internamentos e de óbitos. Nós não vamos eliminar esta doença, mas se conseguirmos evitar óbitos e internamentos, ao longo do caminho, certamente iremos fazer com que essa adaptação acabe por conduzir a uma incorporação do Sars-Cov-2 juntamente com os seus primos, e para que isto passe a ser um vírus como qualquer outro.