A Justiça portuguesa, sobretudo a penal, não é nem sintética nem compreensível para o homem comum. Ao contrário do que acontece noutros países, sobretudo nos anglo-saxónicos. O gigantismo dos processos agrava a crónica morosidade de Justiça e alguns acabam mesmo prescritos. O problema, objeto de um manifesto recente de 35 juízes, procuradores e advogados, é o tema do programa Em Nome da Lei da Renascença desta semana.
O advogado Paulo Saragoça da Matta, um dos subscritores do manifesto, admite que, neste aspeto, a Justiça andou para trás. Há 30 anos, as decisões judiciais eram sintéticas e compreensíveis. Agora, graças ao “copy paste”, os acórdãos estão cheios de citações e de transcrições perfeitamente inúteis.
”O que é importante é que
seja comunicada à comunidade, aos arguidos e aos assistentes, qual foi a ratio
que levou o tribunal a dar fé e crédito a algumas provas e não dar a outras. E
também a ratio jurídica; porque é que preenche o tipo criminal ou não preenche.
Ora, o que é que acontece nestas decisões? Quatro mil ou cinco mil páginas de
transcrições de tudo o que foi dito do início ao fim. E depois a decisão se
calhar está em 10 ou 15 páginas. É algo que é um bocadinho incompreensível.
Além das citações que, às vezes, são manifestação de uma pura erudição bacoca que
não interessam a ninguém.”
Inês Ferreira Leite, vogal do Conselho Superior da Magistratura, diz mesmo que já viu decisões judiciais onde eram citadas páginas e páginas de teorias de académicos que nada tinham de relevante para o caso que estava a ser apreciado. “Por vezes, temos decisões judiciais que citam páginas e páginas de doutrina sobre assuntos que nem sequer são relevantes para a decisão judicial em causa”, afirma.
O problema começa nas universidades, onde há uma mentalidade muito escolástica, muito baseada em argumentos de autoridade, diz Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito de Lisboa.
Os alunos não aprendem a perceber e a compreender. Mas a decorar. ”Nós temos um sistema de ensino de Direito demasiado escolástico. É um ensino em que o principal objetivo não é conseguir que os alunos compreendam o assunto. Mas sim que eles decorem o maior número de informação possível sobre um determinado assunto ,especialmente se estivermos a falar de opiniões doutrinárias e de quem são os seus autores. É quase como se fosse uma passagem de modelos. O aluno tem de decorar os vestidos todos e quem foram os seus autores", sublinha.
O juiz conselheiro Mouraz Lopes, que se tem dedicado ao estudo do problema, defende que a falta de síntese e de clareza de algumas das decisões dos tribunais portugueses só se resolve com mais formação dos juízes no início e ao longo da carreira.
O diagnóstico em Portugal costuma ser a falta de lei ou legislação mal concebida. Mas não é o caso. "O problema não é um problema de lei mas de formação. E de formação inicial, para quem vai começar a trabalhar, mas também de formação permanente, para quem já está a trabalhar no terreno. E que não tem de ter pruridos para ir aprender aquilo que não aprendeu no seu tempo”, afirma Mouraz Lopes.
Juiz do "copy paste" tem nota máxima
Para o advogado Paulo Saragoça da Matta, o problema essencial é a forma de avaliação dos juízes. E dá como exemplo o que tem acontecido no Tribunal Central de Instrução Criminal, onde tem estado um juiz que profere decisões sobre decisões, fazendo copy paste, e sem uma única decisão própria, obtendo no entanto no máxima na avaliação.
”Nós temos decisões instrutórias de medidas de coação de 200-300 páginas. Chegámos também a ter decisões de arresto ou de suspensão de operações bancárias que chegam a ter 100 páginas. E que são 'copy and paste' total de não sei quantas decisões de tribunais superiores. E depois, no fim, temos uma decisão que não chega a estar fundamentada porque não se percebe no meio daquilo tudo onde é que começam as citações, onde acabam, e o que é a decisão do próprio juiz e em que pura e simplesmente o juiz o que vai fazer é aquilo que nós já sabíamos que ia fazer, desde a primeira linha. Sabemos disto há anos. Porque decide sempre da mesma maneira, sem nenhuma fundamentação própria.”
Além de muito palavrosas e extensas, as decisões judiciais utilizam quase sempre uma linguagem incompreensível para o homem comum.
A complexidade das decisões faz com que o advogado seja o único mediador entre o tribunal e o destinatário da decisão, o que o impede de sindicar a atuação de quem o patrocina, alerta a penalista Inês Ferreira Leite.
"As pessoas não conseguem compreender, na maior parte dos casos, as decisões judiciais, quer pelo excesso de tamanho, quer pelo tipo de complicação de palavras do texto. E isso, obviamente, gera um problema. Os advogados acabam por ser os únicos mediadores oficiais entre a decisão judicial e o cidadão. E isso não é desejável porque como é que o cliente pode também fiscalizar a atividade do advogado se a decisão judicial vem numa língua que ele não compreende?”, lamenta.
Inês Ferreira Leite e Paulo Saragoça da Matta coincidem na análise de que nem todos os processos judiciais pecam por excesso de citações de doutrina e jurisprudência, mas sobretudo os casos mais polémicos e mediáticos.
Declarações ao programa em Nome da Lei, transmitido aos sábados ao meio dia pela Renascença. Também pode ser ouvido nas plataformas de podcast.