O mundo mediático acordou agora, e com estrondo, para o Qatar. Convém recordar que a escolha do Qatar para o mundial de futebol de 2022 foi decidida em 2010.
A indignação – de resto, justa – sobre o não cumprimento dos mais elementares direitos do Homem devia ter começado aí e não apenas agora.
A falta de liberdade e o desprezo pela igualdade é o que mais choca no Qatar e colide com a nossa consciência.
Uma consciência formada pelos valores ocidentais, embora seja uma consciência nem sempre retamente formada, porque nos leva a identificar com arrogância nos outros aquilo que nunca reconhecemos em nós.
De facto, também por cá, no ocidente, os mais elementares direitos humanos são muitas vezes desrespeitados. A uma escala diferente, mas ainda assim postos em causa.
Todos nós já vimos, incluindo nos últimos dias, trabalhadores imigrantes em Portugal a viverem em condições que rivalizam com as chocantes imagens que nos chegam dos trabalhadores imigrantes no Qatar.
E não só em Portugal. Em muitos dos nossos países ocidentais têm sido detetados casos de exploração deplorável de pessoas e de verdadeiro tráfico de seres humanos.
Por hipocrisia ou mera distração, não nos lembramos também que muito daquilo que consumimos confortavelmente nas nossas sociedades é produzido por trabalhadores - quando não por crianças - que noutras zonas do mundo trabalham sem descanso nem salário digno.
Muito vestuário ou outros bens de consumo, adulados como ‘fashion’, são produzidos em condições deploráveis.
A maior parte das vezes, tal produção foi deslocalizada para esses países, por motivos económicos: mão de obra a preço de saldo torna tudo mais barato e eleva as margens de negócio.
A opção das empresas do chamado mundo desenvolvido não deixou de constituir para muitos desses trabalhadores, em países asiáticos ou africanos, por exemplo, uma oportunidade. Ao trabalharem em condições que nos repugnam têm, no seu contexto, uma hipótese de viverem menos mal do que sucederia se tais empregos não surgissem.
O problema reside num sistema económico que uma vez globalizado, precisa de ser profundamente repensado e reajustado.
Não se trata de o substituir pelos modelos socialistas / comunistas que sempre geraram pobreza e desrespeito massivo dos direitos humanos.
Pelo contrário, em muitas sociedades o modelo capitalista permitiu gerar e redistribuir riqueza, embora com injustiças e iniquidades, agora bem evidentes à escala global.
Não há sistemas perfeitos, mas é indispensável definir outros modelos económicos que permitam às pessoas e às famílias viverem com dignidade e justiça - em qualquer parte do mundo.
E sendo verdade que no Qatar e em países semelhantes a dignidade das mulheres e os direitos humanos são repetidamente espezinhados, duvido que a mudança nessas regiões se processe com o isolamento ou através de meras imposições culturais e comportamentais.
Quanto mais nos aproximarmos desses países, melhores condições haverá para que as transformações aconteçam.
Com todos os problemas e engulhos - culturais e desportivos - a realização do mundial no Qatar pode até constituir uma oportunidade para intervir na cultura local e deixar sementes de mudança.
Sendo chocante que a decisão de entregar ao Qatar a organização do mundial de futebol possa ter ficado a dever-se a uma vasta operação de corrupção, é igualmente verdade que o isolamento destes países nunca favorecerá a transformação cultural. E as mudanças serão longas, porque a cultura local é muito antiga e diversa.
Por cá, no ocidente, há quem não perceba a dimensão das diferenças culturais e pressione para que tudo se processe de imediato. Seria bom, mas não é viável.
Não se pense, contudo, que o sistema de valores que se pretende impor nesses países é a ‘última coca-cola do deserto’.
Há aspetos indiscutíveis como a liberdade das pessoas e a sua igualdade, independentemente do sexo, das orientações, da raça, das origens, das crenças e das opções.
Porém, vejo nalguns gestos ocidentais uma inconfessada vontade de exportar, quase com sabor neocolonial, não apenas a liberdade e a igualdade, mas também uma conceção totalitária do mundo que passa por impor cegamente - no ocidente e no oriente, a tudo e a todos, como regra e matriz - a ideologia do género.
Esta cegueira ou mesmo fúria ideológica, pode provocar localmente, mais rejeição do que abertura. É isso que queremos?
À boleia de uma boa causa - liberdade e igualdade - procura impor-se a agenda completa. Trata-se de mais uma hipocrisia, a somar a tantas outras a propósito do mundial do Qatar. Neste caso, a hipocrisia do género, transformada em mais um género de hipocrisia.