Joana Carneiro, a maestrina que o mês passado tomou posse como conselheira de Estado, considera que a sua participação neste órgão político está relacionada com o contributo que a cultura e a beleza podem trazer para a construção do país.
Em entrevista à Renascença, a artista recorda a sua participação à frente do coro e da orquestra da Jornada Mundial da Juventude, uma experiência que, quase um ano depois, ainda é "difícil transmitir em palavras", e afirma que "a vida em orquestra é um excelente reflexo de como em comunidade se consegue construir de forma positiva, construtiva, qualquer coisa de belo, independentemente de uma possível disparidade de opiniões".
Aproximamo-nos da Páscoa. Do seu ponto de vista, é possível dissociar a vivência espiritual deste tempo da experiência musical proporcionada por um vasto conjunto de obras que falam justamente sobre esta época festiva?
Para mim é muito difícil dissociar de um ponto de vista global a experiência espiritual da arte, em particular nos momentos em que há uma reflexão sobre a humanidade, a relação entre o homem e a sua fé. Os artistas ao longo da história, através da música, da pintura, da literatura, da palavra, do som, debruçaram-se muito e produzirem muita música, muita arte relacionada com estes temas.
Tanto na Quaresma, como na Páscoa propriamente dita, são tantos os exemplos que fazem parte do nosso imaginário musical: as últimas palavras de Cristo que vários compositores desde há centenas de anos até aos dias de hoje [interpretaram]; as pautas de James MacMillan que ouvimos com tanto fervor, com tanta intensidade, com tanta paixão; e, por outro lado, obras como a Sinfonia da Ressurreição, de Mahler, em que escutamos uma viagem da morte para a vida eterna, passando muito pela vida terrena. Aquela canção que há na 2ª sinfonia de Mahler, Urlicht, diz-me que há essa luz eterna que nos gera, que está no nosso princípio, mas que também é para ela que tendemos. [Apesar de] tudo o que passamos na vida, todos vamos chegar a essa luz.
São essas as obras que a ajudam a viver melhor este tempo?
Confesso que as oiço com outra intensidade. Esta semana dirijo uma Paixão contemporânea de uma compositora finlandesa chamada Kaija Saariaho, que refletiu sobre a vida de Simone Weil, uma filósofa, uma santa. Sim, posso dizer que, nesta altura, oiço estas palavras, e esta música com uma intensidade maior, com uma vivência diferente e mais profunda, mas são peças a que, durante todo o ano, todos os artistas voltam.
A 2ª sinfonia de Mahler é uma reflexão muito importante e muito bonita em qualquer altura do ano. Esta questão da vivência quotidiana, daquilo que sacrificamos, daquilo que vivemos, o nosso sofrimento e depois a forma como há uma redenção, uma salvação depois desta dor, é um tema universal, mas que na música se sente mais na Quaresma e na Páscoa. Nesta altura, admito que oiço de outra forma Bach, Kaija Saariaho e Mahler também.
A música é uma reflexão (...) e uma forma de expressão de quem souDisse que os maestros só aprendem à frente de uma comunidade. Vê aqui uma analogia com a experiência cristã?
Sem dúvida. Tanto da nossa experiência cristã tem a ver com comunidade: com a nossa vivência na igreja doméstica, mas também na nossa comunidade, naquilo que experimentamos, na forma como vivemos a nossa vida com o outro, na forma como tentamos ser o melhor que podemos em todos os momentos.
A vida em orquestra passa muito por essa construção de um bem comum, da qual se tem falado muito, sobretudo nos últimos 40/50 anos da história da religião. Creio que a orquestra é um grande exemplo em que isso acontece, em que todos experimentamos à frente uns dos outros, em que temos de tocar música com a máxima convicção, com base naquilo em que acreditamos, com respeito pelo outro, escutando o outro, criando beleza com o outro, porque sem isso cria-se um caos na música. A vida em orquestra é um excelente reflexo de como em comunidade se consegue construir de forma positiva, construtiva, qualquer coisa de belo, independentemente de uma possível disparidade de opiniões.
De que forma é que o belo pode ser uma expressão ou um contributo para uma maior liberdade interior de cada ser humano?
Do ponto de vista da composição musical, é fácil compreendermos isso. Aquilo que fazemos como músicos é uma reflexão da vida. De uma forma muito simples, para mim, a música é uma reflexão de quem eu sou como pessoa, e uma forma de expressão de quem sou. Um compositor, através da sua imaginação, da sua arte e da sua técnica, consegue transmitir esses sentimentos que, às vezes, são sentimentos coletivos de fases boas, menos boas, mais bonitas, menos bonitas, mais construtivas, menos construtivas da sua vida pessoal ou de uma vida em comunidade.
Portanto, em si é um exercício da construção dessa liberdade e da compreensão de quem nós somos, através dessa liberdade. Nesse sentido, é uma forma muito simples de compreendermos como é que o belo pode ter essa intervenção pessoal e única, através da voz de um compositor quando a escreve, mas também o fazemos quando tornamos essas palavras, esses sons vida, realidade. É um ato de liberdade em primeiro lugar porque o escolhemos fazer, porque nós, como artistas, escolhemos tocar uma peça musical e há algumas que consideramos que fazem mais sentido.
Por exemplo, esta semana, estou na Suíça, perto de Zurique, a falar sobre Simone Weil, sobre a pobreza, a empatia que esta mulher tinha para com os mais desfavorecidos. Tudo isto contribui para a nossa imaginação, para vivermos a nossa vida e construirmos livremente cada um, dentro de nós – esta beleza reflete-se depois na nossa vivência com os outros.
Então a construção do belo passa por tudo isso: passa não só pelo compositor, mas também pela forma livre como nós escolhemos o que fazemos, e como o fazemos com o outro, e como interpretamos e tornamos essas palavras as nossas palavras. É uma coisa muito bonita isso que diz: ser artista é realmente um grande exercício de liberdade, de espontaneidade, de expressão natural de quem nós somos, através das vozes dos outros, mas também através da nossa voz. Construirmos isso com os outros ainda mais belo é.
O ano passado dirigiu a orquestra da JMJ. O que é que essa experiência lhe trouxe?
A Jornada Mundial da Juventude trouxe-me tanto, tanto, tanto, que ainda é difícil, passado quase um ano, realmente transmitir em palavras aquilo que se passou no seio da orquestra, tal foi a intensidade, o amor, a música, e a arte, e a beleza construída ao longo de meses. Alguns ensaiaram durante um ano ou dois anos, eu juntei-me em março, portanto, cerca de 4 ou 5 meses antes da Jornada, mas criou-se ali uma comunidade muito bonita.
Nós retiramos, em primeiro lugar, a oportunidade de participar de uma forma tão bonita e tão próxima desta experiência. Estar tão perto do altar, tão perto do Santo Padre, é evidente que torna esta experiência absolutamente única. Convidar esta assembleia de um milhão de pessoas ali presentes, e muitas mais pelo mundo fora, a orar através da música, a ter a oportunidade de, como o Papa Bento XVI tão bem nos disse aos artistas, de sairmos do quotidiano e irmos para um outro plano, que é espiritual, que é do divino. Sermos convidados a participar dessa forma em si tem tanto de maravilhoso, que eu nunca conseguirei retribuir por muitos anos que possa viver nesta Terra.
Por outro lado, a forma como me senti inspirada, não só pelo grupo de pessoas que foram os curadores musicais liderados pela Teresa Cordeiro, pela Matilde Trocado, que realmente pensaram, com os responsáveis da Jornada Mundial da Juventude, tanto em Portugal como no Vaticano, de forma ponderada, profunda, bonita. [Depois], os compositores convidados a juntarem-se a este grupo de artistas, a arte que foi criada para este momento, a participação de todos, dos solistas, dos artistas convidados, foi qualquer coisa de muito profundo, para além da própria experiência em si de tocar. Sentimo-nos todos, realmente, em conjunto a participar em qualquer coisa muito maior do que nós todos.
Vivemos um contexto nacional com inúmeros desafios, sobretudo depois dos resultados das últimas legislativas. Como é que olha para esta orquestra? Vai ser difícil de dirigir?
Acho que estamos nos primeiros dias e temos de ter confiança. Aquilo que tenho sentido é que existe uma abertura para dialogar, e penso que isso é um bom sinal, depois da campanha eleitoral que tivemos. Quero pensar que essa abertura para o diálogo terá um resultado bom. Espero que seja também um momento de crescimento e bom para o nosso país.
O meu sonho verdadeiro é que todas as crianças tenham acesso ao ensino da música
Foi escolhida pelo Presidente da República como conselheira de Estado. Que contributo é que conta dar enquanto artista?
A contribuição que posso dar é a minha experiência de vida como artista. Os meus 25 anos de carreira em diversos países, com diferentes comunidades, passam por ter participado na criação artística em contextos muito diferentes. Aquilo que me for pedido, eu tentarei corresponder da melhor forma com esta minha visão que tenho sobre a arte, sobre a música, sobre fazer música em conjunto, e sobre aquilo que a cultura e a beleza podem trazer à construção pessoal e à construção de um país.
Com que país sonha a nível cultural e artístico?
Em Portugal, temos orquestras muito boas, músicos a produzir música muito bonita. Estamos a formar, do ponto de vista da educação musical, artistas muito bons. Vou pelo mundo fora e encontro artistas portugueses excelentes, tanto em Portugal como no estrangeiro. Portugal tem qualquer coisa de muito bom ao nível artístico. A programação é muito boa, está ao nível de qualquer país que tenha uma produção musical de grande relevo.
Do ponto de vista da educação musical formal, sem dúvida formamos grandes artistas e músicos profissionais. Mas é evidente que o meu sonho verdadeiro é que todas as crianças tenham acesso ao ensino da música o mais profundamente possível. Que todas as crianças do meu país possam cantar num coro desde cedo, tocar num conjunto – não precisa de ser uma orquestra formal, como a conhecemos, nas nossas salas de espetáculos –, mas que possam experimentar a música de uma forma formal, como criação conjunta.