A maioria dos contratos de concessão e exploração de gás e petróleo assinados entre o Estado português e várias petrolíferas não cumpre a lei, sobretudo os que concessionaram praticamente todo o território do Algarve à Portfuel, do empresário Sousa Cintra. A denúncia é da associação ambientalista Zero.
Ficaram de fora as directivas comunitárias transpostas para a legislação nacional em matéria de defesa do ambiente e de obrigatoriedade de realizar discussões públicas, alerta a Zero, que defende a cessação desses contratos e a aposta noutras energias que não as fósseis.
A Renascença foi ouvir as preocupações de populações, autarcas e empresários da região, que não entendem a falta de discussão pública prévia, nem a ausência de exigências ambientais, que não constam dos contratos.
Laurinda Seabra trabalhou como engenheira na área do petróleo durante três décadas na África do Sul. É uma das fundadoras da ASMAA, a Associação de Surf e Actividades Marítimas do Algarve.
Para Laurinda, o importante seria apostar em energias alternativas. E seria bom, para começar, que não houvesse responsáveis governamentais na área do ambiente a falar de pegada ecológica e ao mesmo tempo a autorizar a prospecção de petróleo.
"Faz mais sentido haver um desenvolvimento das energias alternativas para o país. Mas quando ouvimos o ministro do Ambiente, em sessões públicas, a dizer que temos de reduzir a nossa pegada ecológica, achamos curioso, porque, de um lado, dizem uma coisa e, do outro, fazem precisamente o oposto”, aponta.
Situações idênticas, diz Laurinda Seabra, são verificadas, por exemplo, com a Partex. Trata-se de uma petrolífera detida a 100% pela Fundação Gulbenkian, que partilha duas concessões "offshore" e que, por outro lado, também defende o ambiente.
"Têm um projecto que é da 'Oceans Iniciative', que foi lançado em 2013, e de um lado estão a dizer que protegem o ambiente ao mesmo tempo que fazem prospecção de petróleo”, diz Laurinda Seabra.
Criação de emprego? Mão-de-obra vem do estrangeiro
Outro argumento utilizado por quem defende a prospecção é o da criação de emprego. Que também não faz sentido. "A mão-de-obra qualificada que é necessária vai ser importada. Da Escócia, de Inglaterra, da Alemanha, dos Estados Unidos, da África do Sul. De vários países", diz a responsável da ASMAA.
Nada se sabe sobre a forma como as petrolíferas pretendem reduzir o impacto negativo nas comunidades decorrente da prospecção e extracção de hidrocarbonetos.
Ana Machado também pertence à ASMAA e reside em Vila do Bispo. Ficou comovida com a tomada de posição por parte da Associação de Municípios do Algarve. Queixa-se das dificuldades em contactar o Estado quando se vive num local afastado do poder central. "Acho que foi um passo gigantesco. Saber que o poder político no Algarve está de facto solidário e percebe o impacto profundo da eventual exploração de petróleo e gás no Algarve foi para mim extraordinário", diz Ana Machado.
A associação não deixou passar ao lado a presença, no concelho, do secretário de Estado do Ambiente, que foi recebido com uma manifestação silenciosa. A mensagem foi simples: "Nós queremos ter confiança em vocês, que são o nosso Governo. Cremos que são pessoas de bem e que estão de boa-fé, quando herdaram estes contratos assinados pelo anterior Governo. E queremos dizer que é urgente que estes contratos sejam suspensos - senão anulados."
“Fracking” é desaconselhado na Europa
Em vários países europeus foi já proibida a utilização da técnica conhecida como “fracking” - a fracturação hidráulica dos solos, para recolha de gás e de petróleo. O Parlamento Europeu aprovou em Fevereiro uma recomendação que sugere que os Estados-membros não optem por essa técnica para recolha de gás ou de petróleo do subsolo, devido aos riscos que a mesma acarreta.
O presidente da Associação de Comércio e Serviços da Região do Algarve (ACRAL), Álvaro Viegas, também se mostra preocupado com a situação. Porque, diz, estamos a falar de uma actividade que terá grande impacto na região.
"Nós não estamos a falar da execução de uma obra simples. Estamos a falar de algo que terá grande impacto na região. Quando nós sabemos que dos 16 municípios, 14 serão afectados com esta exploração, estamos a ver a dimensão do projecto”, afirma Álvaro Viegas.
Só ficam de fora Albufeira, Alcoutim e uma pequena freguesia de Vila do Bispo - a freguesia de Raposeira, terra natal do empresário Sousa Cintra, proprietário da Portfuel, a empresa que tem praticamente todo o Algarve concessionado para avançar com a prospecção e exploração de hidrocarbonetos.
Álvaro Viegas estranha a diferença de exigências, em termos ambientais, entre estas concessões e, por exemplo, um aldeamento turístico. "Para se construir um aldeamento, é exigível um estudo de impacto ambiental. Para a exploração de petróleo e gás, não é necessário. A lei prescinde desse estudo”, critica.
“Há aqui qualquer coisa que não se percebe. O impacto ambiental, e creio que é do senso comum, que decorre de uma exploração de petróleo é muito superior ao impacto que possa ter um aldeamento turístico”, defende.
Face à falta de esclarecimento e informação, a ACRAL exige estudos sérios, de impacto ambiental, e um grande debate com a população, de esclarecimento. "Tudo isto tem sido feito num grande secretismo. E quando se esconde, não é bom sinal".
Medida tomada a contraciclo pode prejudicar turismo
O presidente da Associação de Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA), Elidérico Viegas, vai mais longe: as concessões "onshore" e "offshore" são “atentatórias dos interesses regionais e nacionais”. "É totalmente desajustado”, diz.
“Numa altura em que o turismo é uma actividade económica estratégica nacional, estarmos a iniciar uma actividade económica associada a um outro sector, que conflitua com o turismo, é pôr em causa um sector já consolidado, e que é estratégico e prioritário da economia nacional”, considera.
A medida é tomada a contraciclo, sublinha Elidérico Viegas, que lembra que o turismo algarvio representa um volume de negócios de cerca de seis mil milhões de euros por ano. E que a região do Algarve representa mais de 50% do turismo nacional, razão pela qual a AHETA já manifestou, junto do Governo, a sua oposição à prospecção. "A nossa expectativa é que o Governo arrepie caminho e suspenda a eficácia de uma medida que, obviamente, pode por em causa uma actividade completamente consolidada".
Estão em causa os princípios sustentáveis da região, já que o Algarve tem cerca de dois terços do seu território classificado como Reserva Agrícola Nacional, Rede Natura, Reserva Ecológica - e o desenvolvimento de uma actividade ligada à exploração de hidrocarbonetos coloca em causa todo estes equilíbrios ecológicos e ambientais.
Para o presidente da AHETA, o Governo deve defender o interesse nacional. "Não havendo razões económicas objectivas para manter uma decisão desta natureza, naturalmente que só resta uma solução: é o Governo suspender esta medida, no sentido de garantir o interesse público".
“Governo sabe que faz mal mas quer experimentar”
É também de defesa do interesse que fala Rosa Guedes, professora universitária aposentada, pertencente a um movimento de cidadãos de Faro, um dos fundadores da Plataforma Algarve Livre de Petróleo. Toda esta questão em torno da exploração de gás e petróleo - fontes de energia que diz estarem ultrapassadas, já que a aposta devia ser nas energias limpas - faz-lhe lembrar um dos dilemas da juventude.
"Eu sei que faz mal, que as drogas fazem mal - mas quero experimentar. Parece-me que os nossos governantes estão a ir por esse caminho. Só que o que eles arriscam não é só deles, mas de uma população, por isso estamos contra. Não queremos de forma alguma esta indústria ou ‘exploração de riqueza’", defende.
Elvira Martins também faz parte da Plataforma Algarve Livre de Petróleo. Considera que esta é a altura certa para reverter esses contratos de concessão. "As câmaras já mostraram publicamente que estão contra, as associações empresariais também, e a sociedade civil também. Por isso, o que pretendemos é que pensem na situação de forma a reverter aquilo que está criado.”
Os contratos só representam vantagem para as concessionárias, segundo Elvira Martins. "O imposto e a taxa que foi acordada nesse contratos de concessão só serão pagos depois de as empresas recuperarem todos os cursos de prospecção, de desenvolvimento e custos operacionais. E quando atingirem resultado líquido positivo", explica.
São condições que só deverão verificar-se daqui a algumas décadas e só então o Estado conseguirá ganhar alguma coisa com a extracção. Rosa Guedes considera que, em termos legais, os contratos de concessão assinados respeitam a lei, mas não as directivas comunitárias transpostas para a legislação nacional.
"Esta lei relativa à indústria do petróleo não teve uma única alteração, desde 1994. Desde então, foram transpostas para a legislação nacional directivas que vão levantando cuidados relativamente a questões ambientais".
As directivas foram esquecidas ao assinar estes contratos de concessão. Ana Carla Cabrita é guia da natureza em Sagres e Vila do Bispo. Deixou uma vida em Lisboa para estar mais perto da família e da natureza. Um dia apercebeu-se do que estava em causa e decidiu agir: agora faz parte de um grupo de cidadãos preocupado com a situação.
Na génese do grupo está a vontade de saber mais sobre o assunto, recolher informação e difundi-la à população, porque há muitos que não acreditam que a prospecção e exploração vá de facto avançar, desconhecendo as suas implicações.
"Não estão a par que podem ser expropriadas dos seus terrenos, não estão cientes de que vivemos numa zona sísmica, e ao fazer este tipo de actividades, sabemos que há um aumento da sismicidade na região. Depois, há os nossos lençóis aquíferos, que geologicamente são muito permeáveis", diz Ana Carla Cabrita.
Furos suspeitos feitos às escondidas levantam dúvidas
Das várias sessões de esclarecimento em que já participou, lembra-se de uma em particular, realizada em Aljezur.
"Houve uma senhora que nos veio pedir ajuda. Ela meteu-se num táxi e veio ter connosco, para nos contar que ao pé do terreno dela, estavam a fazer furos, que os trabalhadores não eram amigáveis, até eram bastante agressivos quando ela começou a fazer perguntas, fazendo questão que aquilo não fosse visto pela população”, denuncia.
São furos que se realizam desde meados de Novembro, o que "é muito tempo para um furo de água". "A senhora contou-nos que a água saia azul, que havia uma espuma que saia desses furos, que cheirava a produtos químicos e que havia vários camiões na zona".
O presidente da Câmara de Aljezur, José Amarelinho, e vice-presidente da Associação de Municípios do Algarve (AMA), que em meados de Março, deliberou, por unanimidade, avançar para tribunal para travar a prospecção e exploração de petróleo e gás natural na região algarvia.
O autarca também já ouviu falar de uns furos que tem vindo a ser feitos no norte do concelho, na zona do Rogil. Quando soube disso, pediu informações à Agência Portuguesa do Ambiente, de quem recebeu resposta.
"Recebemos uma comunicação oficial, a dizer que no dia 4 de Setembro de 2015, tinha sido concedida uma autorização de recursos hídricos, para pesquisa e captação de água subterrânea, em nome de Domus Verde, Empreendimentos Imobiliários SA, cuja água é para rega de mais de 6,8 hectares de culturas hortícolas.”
Contudo, há pormenores estranhos - ou meras coincidências. "Não é estranho fazer-se um furo para captação de água", diz José Amarelinho. "O que é estranho aqui é a coincidência desta empresa, Domus Verde, pertencer ao empresário Sousa Cintra."
Neste momento, esclarece o autarca, não há nenhum mapa de trabalhos da empresa Portfuel, por parte da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis. "O único trabalho autorizado foi um trabalho à superfície, em que - tanto quanto sei - é utilizado um sonar. O que não implica qualquer furo".
Municípios: “Tudo foi feito à revelia das populações”
José Amarelinho lamenta que os municípios não tenham sido consultados, ou sequer informados, destas concessões.
A partir de agora, AMA exige transparência. "Já fomos ultrapassados uma vez, e não vamos ser mais ultrapassados mais. Tudo foi feito à revelia das populações. Esse tempo já passou. A partir de agora queremos transparência absoluta nestes processos".
"Exigimo-la", garante o autarca de Aljezur. Até lá, garante que os municípios não vão “ficar de braços cruzados, à espera que, de cima para baixo, nos imponham aquilo que muito bem querem. Nós não estamos à venda, e não toleramos nem totalitarismos nem populismos baratos", afirma.
“Têm a obrigação de nos perguntar se nós queremos ou não queremos. E nós não queremos."