Votações na ONU entram na recta final com Guterres mais ameaçado
05-10-2016 - 00:41
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Se escrutínio desta quarta-feira correr bem, o processo pode encerrar na próxima semana. Aumento das tensões entre Rússia e Estados Unidos pode beneficiar Guterres.

A corrida para secretário-geral das Nações Unidas entra esta quarta-feira na recta final. A votação que terá lugar no Conselho de Segurança (CS) pelas 10h00 da manhã será decisiva por vários motivos.

Antes de mais, porque é a primeira votação em que os cinco países membros permanentes darão a conhecer as suas preferências em relação aos candidatos. Ao votarem pela primeira vez em boletins de cor diferente dos restantes dez países do CS, as cinco potências com direito de veto – Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França – darão indicações determinantes sobre o evoluir da corrida. Um ou mais votos de desencorajamento provenientes de uma ou mais das cinco potências significarão o fim das hipóteses para esse(s) candidato(s). Não será ainda um veto formal porque a votação de quarta-feira não é ainda formal, mas prenunciam um veto que, em princípio, é inultrapassável.

Depois, porque é a primeira votação em que a nova candidata, Kristalina Georgieva, vai testar a sua popularidade entre os 15 países do CS. A sua candidatura tardia, formalmente apresentada pela Bulgária mas impulsionada sobretudo pela Alemanha e outros países do Leste europeu, está a suscitar as maiores expectativas no seio da ONU. Presume-se que um avanço tardio como o de Georgieva esteja estribado em apoios sólidos nos bastidores políticos e portanto mostre força suficiente para baralhar os dados do jogo que se conheceram até agora.

Por fim, porque os dados do jogo conhecidos têm sido favoráveis ao candidato português, António Guterres, que venceu as cinco votações feitas até hoje, mas a entrada em cena da ex-comissária europeia introduz na corrida um factor adicional de incerteza cujos efeitos ninguém arrisca antecipar.

Como já aqui escrevemos, no jogo de sombras que são os bastidores político-diplomáticos das Nações Unidas, a candidatura de Georgieva é vista por alguns como um “game changer”, isto é, a candidatura que vem provocar realinhamentos e alterar a relação de forças conhecida até hoje, abrindo uma fase de negociações em que as transações de votos ditariam o resultado. Mas é vista por outros como um tiro de pólvora seca, demasiado tardio e mal calculado, que se vai desfazer contra o primeiro obstáculo. Ou seja, a votação desta quarta-feira.

Voto formal em breve?

É esta segunda tese que parece estar subjacente às curiosas declarações feitas pelo embaixador russo na ONU, Vitali Churkin, na segunda-feira à noite em Nova Iorque (madrugada em Portugal).

O diplomata disse que, num pequeno-almoço com os restantes embaixadores, tinha ficado com “a sensação de que os membros do CS se inclinam na direcção de um voto formal a curto prazo” e que isso “será discutido imediatamente após a votação” de quarta-feira de manhã. De facto, está já convocada uma reunião de coordenadores do CS para a tarde de quarta-feira para analisar os resultados da “straw poll” da manhã e verificar se há condições para avançar nos dias seguintes para uma votação formal.

Refira-se que a votação da manhã será ainda informal e quando se fala de votação formal isso significa que poderá ser a votação definitiva. O que pressupõe que haja acordo prévio sobre um candidato que estaria então em condições de recolher os nove votos positivos e nenhum veto para poder ser aprovado e apresentado à Assembleia Geral.

Mas atentemos nas palavras de Churkin: “Penso que há uma boa probabilidade de uns dias depois avançarmos para uma votação formal e então as coisas ficarão claras: temos um candidato que estamos preparados para recomendar à Assembleia Geral? Estamos perto de ter um candidato que possamos propor à Assembleia Geral? Ou temos de recomeçar tudo de início? Estes são assuntos de importância considerável. Temos de navegar nestas águas nos próximos dias”.

E logo a seguir: “Então, temos? Veremos. Eu sinceramente espero que sim. Toda a gente estava tão entusiasmada com este processo, mas ele tem-nos consumido tempo – todas estas audições, votações. Julgo que há uma sensação de fadiga construtiva entre os membros do CS, que espero venha a resultar numa recomendação unânime de uma boa pessoa à Assembleia Geral para secretário-geral”.

Ora, a referência à “fadiga construtiva” dos membros do CS e à possibilidade de nos próximos dias se avançar para uma votação formal e decisiva não parece compatível com uma mudança de cenário que altere os dados actuais do jogo, nem parece compatível com a emergência de uma nova candidata que, de repente, recolha a maioria dos votos do CS, nenhum veto dos cinco permanentes, e reúna condições para ser eleita secretária-geral. A menos que as negociações de bastidores em favor de Georgieva já estejam tão avançadas que não haja objecções de qualquer das potências que integra o CS.

Embora os desígnios da ONU sejam insondáveis não é nesse sentido que apontam os sinais existentes até ao momento. Uma negociação global que implique realinhamentos não é algo que se resolva em um ou dois dias. Por isso, as declarações do embaixador russo parecem apontar mais para um consenso em torno da situação actual que é, como sabemos, de clara vantagem de António Guterres sobre os restantes candidatos.

Foi, de resto, na mesma lógica que o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou aqui em Nova Iorque, há duas semanas, que era desejável que o processo de selecção fosse encerrado em Outubro – e quanto mais cedo melhor. Um desejo que decorre da convicção de que um protelamento do processo traduzirá uma conjuntura mais difícil para Guterres.

“Uma boa pessoa”

Não há, de momento, qualquer outra candidatura que esteja em condições de proporcionar um voto rápido e definitivo nos próximos dias, como deseja Vitali Churkin. Acresce que o embaixador russo usou a mesma expressão que tinha usado há uns meses quando interrogado sobre se Moscovo poderia votar no candidato português: “Porque não? É uma boa pessoa”.

É certo que o diplomata do Kremlin reafirmou o desejo da Rússia de que o novo secretário-geral deveria ser do Leste europeu e uma mulher, mas essas são afirmações de circunstância que visam manter uma imagem de coerência no processo. Coerência que, aliás, acusou outros países de não terem porque publicamente se manifestavam a favor de uma mulher, mas nos escrutínios votavam em homens. E se entre os desejos (mulher e de Leste) e a realidade (ninguém nessas condições tem hipótese de vencer, por ora) se cavou um fosso, a arte da diplomacia é justamente saber adaptar os desejos à realidade.

Tendo apostado em Irina Bokova desde o início, Moscovo tem visto a “sua” candidata registar votações fracas, mas o avanço de Kristalina Georgieva desagradou ao Kremlin, que o exprimiu publicamente. Acresce que se Georgieva tiver o apoio dos Estados Unidos, como poderá suceder, isso afastará ainda mais a sua candidatura do beneplácito russo.

As relações entre Washington e Moscovo passam por uma fase bastante tensa, sobretudo devido à guerra na Síria. Fontes na ONU dizem que nem americanos nem russos estarão disponíveis para apoiar qualquer candidato patrocinado pelo rival. O que, mais uma vez, joga a favor de Guterres, cuja candidatura é patrocinada apenas por Portugal e tem sabido manter um saudável distanciamento dos grandes poderes em presença.

Por tudo isto, se a votação desta quarta-feira for semelhante às anteriores não se vislumbra como poderá o Conselho de Segurança encerrar o processo de selecção do secretário-geral dentro de dias sem que isso signifique a escolha do antigo primeiro-ministro português.