O historiador e investigador António Araújo diz que “ciclicamente, surgem pulsões mais autoritárias e radicais”, numa alusão aos discursos mais radicais e populistas, e, em vésperas dos 50 anos do 25 de abril, lembra que “olhar o passado ajuda muito” a desconstruir esse fenómeno.
Em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia, o historiador que integra a Comissão Executiva do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos sustenta que “não há razões para saudosismo”, sublinhando que "é importante, atualmente, fazermos, cada vez mais, uma pedagogia da liberdade e da democracia” porque “só quando sentimos falta de ar é que vemos a sua importância”.
António Araújo deixa uma outra mensagem sobre o momento politico que o país está a viver, afirmando que “não deixa de ser paradoxal” o facto de “num tempo de tantos e tão exacerbados nacionalismos", haver "tão pouca gente disposta a morrer pela pátria e até a cumprir o serviço militar”.
O historiador, que integrou a Comissão Organizadora das Celebrações dos 50 anos da Vigília da Capela do Rato, aponta esse acontecimento como "o gesto mais emblemático e mais simbólico de manifestação de resistência católica" ao Estado Novo.
António Araújo diz que a entrada da policia na Capela do Rato foi “talvez o facto mais decisivo” por ter dado origem a "uma repercussão muito grande nos meios políticos”.
Noutro plano, o historiador reconhece o papel dos documentos do Vaticano II e dos pontificados de João XXIII e de Paulo VI na consciencialização de que a guerra colonial era injusta. “Acho que, do ponto de vista eclesial, o acontecimento decisivo é o Vaticano II e, depois, os pontificados de João XXIII e Paulo VI”, afirma.
Tem vários livros publicados sobre o período do Estado Novo, é autor de uma tese académica sobre a célebre Vigília na Capela do Rato, na passagem de anos de 72 para 73 e esteve na Comissão Organizadora das Celebrações dos 50 Anos desse acontecimento vigília. Porque é que este momento é tão significativo para a história contemporânea de Portugal?
É difícil responder muito telegraficamente, porque acho que foi, talvez, o gesto mais emblemático e mais simbólico de manifestação de uma espécie de resistência católica ao regime do Estado Novo e de questionamento por parte dos crentes, de uma minoria de crentes, é certo, mas apesar de tudo muito ativa. Era aquilo a que D. Helder Câmara chamava as minorias abraâmicas... Foi um questionamento da guerra colonial em nome do lema anunciado por Paulo VI de que a paz é possível. Portanto, estamos a falar das comemorações do Dia Mundial da Paz, no início do ano de 73.
E o caso teve uma série de repercussões políticas, como é evidente, porque foi uma vigília, uma ocupação, apesar de tudo, mais ou menos consentida da Capela do Rato, seguida de uma greve de fome, de protesto, e depois de uma série de debates que foram realizados na Capela, com pessoas como, por exemplo, Sofia de Melo Breyner e Francisco de Sousa Tavares. Em grande parte, o impacto dessa vigília decorreu da reação das autoridades, que invadiram o templo e prenderam uma série de pessoas que lá se encontravam. A partir daí, houve uma repercussão muito grande nos meios políticos, por via da chamada ala liberal dos deputados, sobretudo Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra, que levaram a questão da entrada da polícia num templo religioso a debate na Assembleia Nacional. Houve um grave confronto com um deputado dito ultra, que era Francisco Casal Ribeiro, mais ligado, se quisermos, ao legado salazarista.
Quando se fala de aula liberal, para quem não está tão familiarizado, vamos dizer que é uma espécie de terceira via que ia surgindo...
Exatamente, a ala liberal foi um conjunto de jovens deputados que Marcelo Caetano, por via de Melo e Castro, decidiu levar para a Assembleia fazendo parte das listas da Acão Nacional Popular, que tinha deixado de ser tratada União Nacional, o partido único de apoio ao regime. Era um conjunto relativamente reduzido, mas, já agora, eu também estou ligado a algo que foi a celebração, e ainda continua, do encontro dos liberais, que foi um encontro tido em julho de 73. Muitos desses liberais pertenciam à dita ala liberal, que não significa a Iniciativa Liberal dos nossos dias. Eram, antes, pessoas que queriam a liberalização do regime, pessoas que estiveram grande parte delas na fundação do PPD, hoje PPD-PSD.
O que acontece na Vigília da Capela do Rato acaba por ser um sinal de que a ideia de que o regime era reformulável por dentro não era viável. Essa ideia sofre aí um duro golpe com a atitude repressiva do regime...
Não foi apenas essa, é uma série de repressões. Desde logo, a reeleição de Américo Tomás, em 72, terá sido o sinal mais emblemático de que o regime era incapaz de se reformar por dentro, porque houve tentativas de candidatura até do general Spínola, até de Marcial Caetano. Houve gente que queria que Caetano fosse eleito, que se candidatasse ao cargo de Presidente da República, mas se quisermos, a reeleição de Tomás, que no fundo Marcelo acaba por aceitar, é o sinal mais expressivo de que o regime não se ia reformar e sobretudo que a política de continuação da guerra colonial naqueles moldes iria prosseguir.
Mas isso deu força a que por fora se iniciasse um processo?
Sim, sim, sim. É preciso dizer que antes da vigília, desta vigília de finais de 72/início de 73, já tinha havido uma tentativa de uma outra, a chamada Vigília de São Domingos, no final dos anos 60, que não teve a mesma projeção, talvez por alguma inexperiência das pessoas que estavam a organizar: Nuno Teotónio Pereira, Luís Moita, etc. O clérigo que estava responsável conseguiu dominar os acontecimentos. Aqui, não. A escolha da Capela do Rato foi muito feliz, a equipa sacerdotal que estava era bastante alinhada, ainda que tenha tido um conhecimento muito leve do que se ia passar, mas o padre Alberto de Neto, António Janela, Armindo Garcia já eram padres, bastante avançados. Isso ajudou muito ao êxito da jornada. Mas talvez o fator mais decisivo, como digo, tenha sido a entrada da polícia na capela.
Entrevistas que fiz anos depois, mostraram que talvez a polícia tenha errado e que a técnica que teria sido mais eficaz para retirar as pessoas da capela tivesse sido cortar a água ou luz. Era isso que os organizadores mais temiam. Não foi isso que a PSP fez. A PSP do capitão Maltês entrou na capela e, à força, retirou uma série de pessoas, entre os quais um jovem que não era católico e que estava ali por solidariedade, o Francisco Louçã. Eles foram presos pouco tempo, talvez 15 dias, no máximo. Os principais dinamizadores, os rostos mais visíveis são presos pouco tempo.
Diferente foi a situação mais tarde, quando se dão prisões muito mais graves, no final do ano de 73. Aí, uma série de católicos, já por acusação de cumplicidade com as Brigadas Revolucionárias, de Carlos Antunes e Isabel do Carmo, que também tiveram uma participação na Vigília da Capela do Rato, também são presos. Nesse momento, são acusados do transporte de explosivos, de esconderem explosivos. Aí, Nuno Teotónio Pereira....
Contextualizando: o que temos em causa é o facto destes movimentos católicos, ao contrário de outros movimentos de oposição ao regime, não operavam na clandestinidade. Tinham uma identidade, tinham um reconhecimento. Portanto, há um impacto muito severo quando há um confronto destes movimentos não clandestinos com o regime...
Alguns deles seriam mais clandestinos, como, por exemplo, os cadernos de GEDOC, do padre Felicidade Alves e do Nuno Teotónio Pereira, mas havia um confronto que se desenhava desde o pós-guerra. O jornal "Trabalhador", do padre Abel Varzim, o padre Alves Correia, o Congresso dos Homens Católicos, em 1950, as atuações de Francisco Lino Neto... Tudo isso era feito dentro do regime, num certo sentido, e era feito às claras. Depois, houve uma radicalização, sobretudo nos anos 60, e chegou-se à ideia, como dizia António Matos Ferreira, que a chamada oposição do stencil e do polacopiador, que era dos abaixo-assinados, de distribuir panfletos, era pouco consequente. Por isso, envereda-se por caminhos mais ligados à ação direta, a ações de protesto. As mais visíveis terão sido essas da Vigília de São Domingos e, sobretudo, a da Capela do Rato. Mas fizeram-se muitas coisas, como, por exemplo, distribuição de propaganda e folhetos clandestinos. Havia já uma rede de oposicionismo católico muito desenvolvida.
Já falou aqui do Dia Mundial da Paz, de Paulo VI. Que papel têm os documentos do Conselho Vaticano II e os pontificados de João XXIII e Paulo VI no desenvolvimento da contestação à política colonial portuguesa e, em particular, na consciencialização de que a guerra era injusta e era também inútil?
Muito grande, e acho que, do ponto de vista eclesial, o acontecimento decisivo é o Vaticano II e, depois, os pontificados de João XXIII e de Paulo VI.
Em 73, o Episcopado português faz uma carta pastoral sobre o décimo aniversário da "Pacem in Terris", da encíclica que proclamava a paz de 63, de João XXIII. Era uma encíclica sobre a paz num país que estava em guerra. Vejam o significado de haver uma encíclica papal a falar da necessidade da paz na terra. Era algo já de si subversivo. E, depois, Paulo VI tem, como se sabe, algumas ações, nomeadamente a ida ao Congresso Eucarístico de Bombaim, em 1964, e a vinda a Fátima, já no final do salazarismo.
E 1967 é marcado também por algumas notas importantes. Paulo VI vem a Portugal, mas não vai a Lisboa: desembarca em Monterreal. Paulo VI faz daquela visita, não uma visita com caráter político, mas uma visita eminentemente pastoral. E diz-se, até, que o encontro com o Salazar não terá decorrido da melhor forma, porque o Salazar ter-se-á dirigido a Paulo VI como Sua Santidade e Paulo VI terá replicado "sua eternidade". Isso talvez faça parte da pequena história, e não seja real, mas mais significativo, como é evidente, é o facto de Paulo VI receber os chamados líderes dos movimentos de libertação, que se encontravam em Roma, no início dos anos 70. E, depois, já depois da Vigília, há um facto muito significativo, que é a denúncia pelo padre Adrian Hastings do massacre de Viriamu, que foi uma trágica coincidência com a Capela do Rato. Foi mais ou menos nessa altura, no início de 73, mas não tem ligação. Isto é, as pessoas que estão na capela não sequer adivinhavam o que se estava a passar.
Havia também uma série de sacerdotes e até de prelados das ditas colónias do Ultramar que se tinham afastado, se quisermos, da matriz do regime. Outros não, como, por exemplo, D. Cristóvão Alvim. Era uma pessoa muito afeta ao regime e ao esforço de guerra colonial, mas é preciso lembrar, por exemplo, no dia 25 de abril de 1974, o episcopado da metrópole está em Fátima e em 27 de abril emite uma nota sobre os acontecimentos revolucionários, sobre a revolução dos cravos, ao mesmo tempo também manifesta preocupação pela situação de D. Manuel Vieira Pinto, que era bispo de Nampula, e foi expulso do território de Moçambique com 11 missionários combonianos. Portanto, já havia, mesmo no interior da Igreja, ao seu mais alto nível, essa consciencialização para o problema da guerra e do regime. E não falei ainda da ação de D. António Ribeiro, que é importante também frisar, mas já havia da parte de alguns prelados, de alguns bispos uma consciência de que o regime não podia prosseguir com aquele esforço de guerra.
Apesar de, historiograficamente, durante décadas termos tido uma leitura, quase unívoca, de alinhamento da hierarquia católica com o regime, o que vemos é que vários responsáveis católicos e movimentos ajudam a preparar também a democracia em Portugal…
Sem dúvida. Acho que há um grande erro, quando abordamos um regime que durou tanto tempo, como o Estado Novo, de procurar colar-lhe etiquetas que tentem durar o tempo todo. É o mesmo que se passa com a etiqueta de "fascista". Isto é, o regime teve caracteres fascistas e influências e ligações, até sobretudo a Mussolini, nos anos 30, mas, depois, como é evidente no pós-guerra, sem se tornar uma democracia, dá uma espécie de golpe de rins. Salazar até promete, falsamente, "eleições tão livres como na livre Inglaterra" e o regime aparece como um oásis na Guerra Fria, um oásis de estabilidade para este lado e como membro fundador da NATO, etc…
O mesmo se passa com a ideia da cumplicidade da Igreja Católica. Não há dúvida que, durante muito tempo, uma parte substancial da hierarquia foi conivente com o Estado Novo. Basta pensar na relação Salazar-Cerejeira, embora não tão próxima nem tão cúmplice como muitas vezes as pessoas procuram figurar, mas enfim…
Veja-se, por exemplo, também a Concordata de 1940: não é uma Concordata em que Salazar ceda à Igreja. Pelo contrário, é a Santa Sé que tem de ceder, se quisermos, ao realismo político de Salazar, que atuou totalmente com base na sua razão de Estado e não como um crente católico.
Num contexto muito difícil, da II Guerra Mundial…
Exatamente. Em relação à hierarquia, pode-se dizer que nos anos 50 e nos anos 60 uma parte substancial ainda estava alinhada com o regime, sobretudo a alta hierarquia. Gostaria de deixar também uma palavra sobre D. António Ribeiro: a entrada dele não trouxe, imediatamente, uma democratização da Igreja, até porque ele não tinha força para isso nem lhe cabia mudar totalmente a composição do episcopado, mas deu sinais muito interessantes, como, por exemplo, em 1973, num encontro discreto, para não dizer secreto, com Mário Soares. Para além de uma série de outros sinais.
Mesmo no caso da Capela do Rato, é preciso que as pessoas saibam que no dia 1 de janeiro, os sacerdotes que vão celebrar a missa são detidos pela PIDE. São levados para António Maria Cardoso, para a sede da PIDE. D. António vai lá pessoalmente dizendo que só saía quando os seus padres fossem libertados. Portanto, há uma ideia de confronto direto com a PIDE e com o diretor da PIDE.
Noutra geografia, também é muito importante o papel de D. António Ferreira Gomes, não é?
Sim, sim, um bocadinho mais recuado, no tempo, porque antecedeu um bocadinho estas convulsões, mas o que é facto é que D. António Ferreira Gomes ficou sempre como uma grande referência do questionamento. E há outros talvez menos conhecidos, como o padre Alves Correia, só para dar outro exemplo.
D. António, até pela atitude persistente que teve de receber pessoas e, sobretudo, pela escrita, a sua poderosíssima escrita, foi sempre uma referência, até uma referência moral para um certo oposicionismo católico do Porto, que tinha algumas confluências com o de Lisboa, mas, apesar de tudo, tinha singularidades próprias.
Escreve que o 25 de Abril cultural, como o define, precedeu o militar e o político. Havia sinais de que o regime do Estado Novo sim encaminhava para o seu fim?
Sim, sem dúvida. Houve um historiador, Paulo Guinote, que fez uma pesquisa sobre os bigodes e as barbas dos deputados à Constituição de 1911, e concluiu que 99% tinham bigode e barba porque era a moda do tempo. Só um é que não tinha: por acaso era padre ou tinha sido padre… E nós vemos essa revolução cultural nas fotografias do 25 de Abril, onde vemos os civis já com os cabelos "à Beatles", cabelos muito compridos.
O que quero dizer com esta metáfora capilar, quase irónica, é que houve mudanças ao nível da sexualidade, desde logo, com a questão da pílula. Também ao nível da abertura ao mundo, trazida pelo turismoe pela imigração, ao nível do maior contacto dos jovens com aquilo que já se chamou internacional de referências, marxista ou pós-marxista, Che Guevara, as grandes figuras míticas como o Luther King, etc. Há toda uma transformação da juventude que tem efeito no maio de 68, mas também tem efeito nas crises académicas, cá. Do ponto de vista social, o 25 de Abril, de certa forma, já tinha acontecido. A rutura de uma parte significativa da juventude com o regime, até por efeito da guerra da África, já tinha acontecido.
Fala, aliás, do papel da juventude como grupo político nesta fase…
Exatamente. Marcelo Caetano tinha até um livro chamado "Por Amor da Juventude". Ele próprio tinha consciência e disse que a juventude tinha deixado de ser uma idade da vida para se converter num grupo político ou, se quisermos, num grupo social ou corporativo com reivindicações próprias - do ponto de vista do serviço militar e dos anseios próprios da juventude. A juventude já não era apenas um tempo de vida, entre a meninice e a velhice, era também um grupo social, um grupo de pressão específica.
Que importância tem recuperar esta memória histórica e este enquadramento do que foi realmente a Revolução de 74, o 25 de Abril, para uma geração que nasce em liberdade e que provavelmente nem sempre dá valor ao que é a democracia?
Eu acho que é muito importante. Digo sempre isto às pessoas que ainda falam em saudosismos do anterior regime: se essas pessoas já têm alguma idade, mais de 64 anos, nesta altura, se vivessemos naquele tempo, essas pessoas já teriam morrido - porque a experiência média de vida era de 64 anos. Por outro lado, se essas pessoas são jovens e têm menos de 30 anos, o que também se deve dizer é que, se calhar, estavam a caminho de morrer na Guerra da África, nos confins do Ultramar.
Portanto, não há razões para saudosismo, há razões para uma visão distanciada da História. Atualmente, é importante fazermos, cada vez mais, uma pedagogia da liberdade e da democracia, porque como já estamos tão habituados a ela, sentimos que é como o ar que respiramos. Só quando sentimos falta de ar é que vemos a importância…
Enquanto sociedade, estamos a enveredar por um caminho perigoso no qual parece ganhar cada vez mais adeptos aquele discurso mais radical e populista. Também será importante revisitar a nossa história para combater, de alguma forma, este tipo de ideias?
Eu acho que sim. Eu não gosto muito de falar do presente, até porque fui convocado aqui para falar como historiador e não sou comentador político. Aliás, acho que é uma profissão bastante de risco… Mark Twain dizia que a história nunca se repete, mas às vezes rima. Portanto, ciclicamente, surgem estas pulsões mais autoritárias ou, se quisermos, mais radicais. Não deixa de ser paradoxal, num tempo de tantos e tão exacerbados nacionalismos, que haja tão pouca gente disposta a morrer pela Pátria e até a cumprir o serviço militar. Portanto, para fazer a desconstrução de uma série de mitos políticos do presente, acho que olhar o passado ajuda muito.