Há uma centena de notáveis (muitos de quem gosto e com bom senso) que não se importam que lhes espreitem os emails, lhes leiam os SMS e lhes vasculhem a correspondência. Estão no seu direito. “Quem não deve não teme.”
Eu, pelo contrário, não gosto. Detesto. Não suporto. Irrita-me profundamente. Cheira-me logo a regimes totalitários. Métodos pidescos, bufaria, violação do Estado de direito e assim por diante. Em resumo; como diria o antigo primeiro-ministro almirante Pinheiro de Azevedo, “chateia-me”. Por isso, por mais útil que possa ser o produto do assalto à correspondência alheia, mesmo que, de arrastão, ela possa servir para apanhar “gangues” de bandidos, não consigo olhar para o” bisbilhoteiro”, seja ele carteiro ou pirata informático, como gente de bem. E o estatuto de “bandido útil”, para mim, é poucochinho.
Deve ser por isso que, onde os notáveis veem um Rui Pinto vítima e herói, eu só vejo um vilão com excesso de gel. Juro que não é pelo aspeto. Podia ser um beto rural, ou mesmo gente normal, e eu não mudaria de opinião. Há momentos em que hesito: será que foi o mundo que enlouqueceu ou eu que “emaluquei”?
Há coisas que são para mim tão óbvias que me custa perceber como podem ser entendidas de forma exatamente oposta pela elite reinante. Sinto-me com a síndrome do rei vai nu. O caso de Rui Pinto desencadeou uma crise. Neste caso tenho a Justiça do meu lado. Esta semana a Justiça não serve para companhia recomendável, mas não fosse ela e a solidão neste caso seria insuportável.
Vamos por partes para ver se consigo explicar o meu ponto:
1. Abuso de prisão preventiva
Eu, como os 98 signatários do manifesto por Rui Pinto, sou favorável ao escrupuloso cumprimento das normas que garantem os direitos humanos, sobretudo dos presos mais fragilizados. Além disso, revejo-me na “presunção de inocência”. Sou contra prender primeiro e investigar depois. Acho que os prazos de prisão preventiva não devem sequer esgotar-se, pelas consequências desastrosas que tal facto tem na vida de pessoas sem culpa formada nem julgamento marcado. Mas convenhamos que admito exceções: por exemplo, num caso que envolve um processo de extradição e um mandado de captura internacional, mesmo que outras polícias estejam interessadas em aproveitar a colaboração do preso atrasando o processo, não me choca por aí além um ligeiro atraso. Depois de marcado o julgamento, se o atraso se deve ao recurso, não me choca mesmo nada. Embora lamente que demore a libertação ou o julgamento a que Rui Pinto tem direito e não se consiga acelerar o processo.
2. Libertação imediata
Infelizmente, sei que essa ultrapassagem de prazos não é caso único. E se exceções houver, a de Rui Pinto parece-me das mais compreensíveis: alguém que através de uma inteligência prodigiosa e de uma inimaginável capacidade informática já provou que apenas precisa de ter acesso a um mero computador para que seja possível (e provável) a continuação da atividade criminosa, que pela mesma via pode alterar provas e prejudicar o inquérito, não creio que deva ser colocado numa situação em que tudo isso possa acontecer.
Então vai ser prejudicado só porque é mais esperto? Neste caso não vejo como não, a menos que se consiga libertar, garantindo que fica debaixo de uma nuvem inibidora de sinal, tipo Presidente russo, que o persiga para todo o lado. Mesmo assim não se garantiria que outro não pudesse, através de instruções recebidas, ser tão eficaz como ele.
3. Dívida social
A sociedade não devia já agradecer a Rui Pinto o facto de ele ter permitido desmascarar a podridão que reina no mundo do futebol ou o possível esbulho do povo angolano por uma alegada elite cleptocrática, através do “Football Leaks”, do “Luanda Leaks” (e de outros tantos “leaks” que ele ainda promete revelar…)?
Provavelmente sim. Mas o facto de ele ter feito chegar às mãos de 120 jornalistas de investigação milhares de ficheiros roubados, que lhes deram a possibilidade de pesquisarem nesse enorme caixote de lixo informático material de prova que permitiu “desmascarar” casos de fuga ao fisco e de branqueamento de capitais e provocar o desmoronamento de alguns impérios construídos com base em teias de tráfico de influências, nepotismo, corrupção, etc., não basta para branquear a violação de todas as garantias de um Estado de Direito, ao estilo “os meios justificam os fins”. Este é um princípio moralmente errado e inaceitável. E os signatários “pró-Pinto” são os primeiros a condenar essa metodologia em relação ao abuso de prisão preventiva.
4. E que tal uma aliança tácita com o “denunciante”?
Não. Rui Pinto não é um denunciante. Apenas um pirata (roubou informação confidencial e cometeu milhares de crimes de violação de correspondência pessoal e empresarial). E ao tentar, pelo menos por uma vez, embora sem sucesso, extorquir dinheiro, chantageando uma das vítimas, mostra que os motivos da denúncia não são nem foram desde início o interesse público. O julgamento o dirá, mas até agora parece que o Plano B (entrega da informação aos jornalistas) substitui o A (uso indevido em benefício próprio da mesma). Gente inteligente não desilude nem desiste facilmente.
O benefício público veio por arrasto e o resultado da investigação subsequente é fruto da investigação jornalística. Se, por arrastão, a informação acedida por maus motivos se torna prova conhecida, que permite desmascarar uma sucessão de gangues, não é graças a Rui Pinto mas apesar dele. Se não porque continua encriptada outra tanta?
5. A verdade não prescreve
Os pró-pintistas recordam que o crime de tentativa de extorsão foi cometido há quatro anos. Pois a Justiça é de facto muito lenta, mas com isso pretendem defender que já prescreveu ou que o pirata era jovem demais para saber o que estava a fazer? A moral não tem idade mínima. Aliás, quando Rui Pinto manda dizer pelo seu advogado que os portugueses merecem saber “ainda muita coisa” sobre, por exemplo, “os vistos gold” e outros, não sei porquê mas pareceu-me uma espécie de aviso mafioso. E isso não me cheira nada bem!
6. Contratem-no
Mas não devia o pirata, agora reconhecido nas suas capacidades, ser ajudado pela Justiça e cooperar com ela? Seguramente. Contratem-no. Talvez certas perícias se tornem mais fáceis e mais rápidas. Talvez os cruzamentos de informação mais fidedignos e os bandidos apanhados na rede subam em exponencial. Mas façam dele alguém que, cumprindo as regras do Estado de Direito, ajuda na investigação. Um polícia “bom” (ou melhor, um informador da polícia) com estas características pode até ser precioso.
7. Então não devia gozar de uma delação premiada?
Não creio. O estatuto de denunciante previsto agora em novas leis europeias, como tem sido amplamente explicado, surge quando alguém que trabalha numa organização tem conhecimento de um crime nela praticado e com o qual não pretende colaborar e, pelo contrário, quer denunciar para lhe por cobro. Para isso canaliza informação para a Polícia Judiciária e o Ministério Público (e não para a CMTV, nem para um sindicato de “freelancers”) e com aval destes pode posteriormente ajudar na obtenção de prova, que seria impossível de obter não fosse esse conhecimento próximo com a organização.
Ora, Rui Pinto não fazia parte de nenhuma das entidades assaltadas e a informação “roubada”, quanto muito, foi obtida na base do “aqui deve passar-se qualquer coisa…ora deixa lá ver”. É o velho ditado do “não há fumo sem fogo” ou “cheira-me a esturro…”.
Imaginem um Estado a funcionar assim. Nós não queremos uma polícia pidesca, que vá à procura do crime, que mande para a cadeia uns “maçadores”, uns “corruptos”, uns “déspotas” ou simplesmente “uns oposicionistas” que conviria “arrasar”... Isso é o que o senhor Trump gostava que os ucranianos fizessem por ele.
9. As causas da indignação
Mas então porque é que 98 líderes de opinião se indignam por, a 17 de Janeiro, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa ter decidido levar a julgamento Rui Pinto, acusado de 90 crimes de acesso ilegítimo, violação de correspondência, sabotagem informática e um de tentativa de extorsão (menos 57 dos que pretendia o Ministério Publico!)? Porque a Justiça funciona? Embora a própria PGR tenha sido alvo de devassa? Arrisco que, embora muito mal, a Justiça talvez funcione ainda qualquer coisita. Recuso-me a admitir que seja por “vingança” que Pinto continua preso.
10. Como recompensar o génio?
Que fique claro que eu acho que o jovem “assaltante” é seguramente um génio. Coisa que o velho Alves dos Reis também era, ao imprimir moeda falsa que tinha a magnífica qualidade de ser absolutamente verdadeira. Leiam-lhe a história. Tinha apenas 32 anos quando foi apanhado pela última vez. Já tinha inventado um diploma de engenharia numa faculdade inexistente de Oxford, vivido em Angola à grande e à francesa, comprado fábricas e feito múltiplos negócios, tentado comprar o “Diário de Notícias” e criado o Banco Angola e Metrópole.
Em 54 dias de prisão congeminou o seu maior golpe. Rodeou-se de cúmplices e gente totalmente inocente e fez emitir 200 mil notas de 500 escudos em Londres (aumentando a massa monetária em 1% do PIB nacional, apropriando- se de uns escassos 25% dessa maquia ). As notas Vasco da Gama série 2, impressas no mesmo papel, na mesma casa e com os mesmos números das verdadeiras, eram de tal modo iguais que Salazar, anos mais tarde, acabou por desistir de as retirar de circulação porque era virtualmente impossível. Justificação apresentada em julgamento: “Só queria contribuir para desenvolver Angola!”. Deixou herdeiros.