Eutanásia: Matar o doente transforma-se numa emergência médica
16-02-2020 - 11:58
 • Henrique Leitão*

A expressão de um desejo de morrer, que surge num doente sozinho e a sentir-se inútil para a sociedade e para a família é um verdadeiro sinal de alarme: Este doente precisa de ajuda para viver e não para morrer.

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O Projeto de Lei n. 832/XIII/3ª acerca da eutanásia não punível está cheio de palavras longas e aparentemente inócuas, que pretendem esconder a sua verdadeira intenção: a não punição da prática de matar uma pessoa.

Matar o doente é apresentado como um “procedimento clínico”, descrito eufemisticamente como “praticar o ato de antecipação da morte”. O médico que vai “administrar o fármaco letal” é o “médico orientador”, ao qual é pedido um “parecer favorável”. Todo o processo, considerado urgente, com um prazo previsto de cinco dias de deliberação, é avaliado pela denominada “Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação da Morte”, constituída por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética. A estas pessoas, que quase de certeza nunca viram o doente em causa, cabe decidir se o sofrimento expresso por uma pessoa que não conhecem é extremo e se deve morrer. Já não há sequer a tentativa de esconder o que se quer fazer sob a capa de uma suposta compaixão; a morte passa a ser apenas um procedimento de secretaria.

Para que não restem dúvidas de que estamos a falar do ato de matar um doente, basta ler a descrição do procedimento proposto: “Imediatamente antes de iniciar a administração ou autoadministração dos fármacos letais, o médico orientador deve confirmar se o doente mantém a vontade de antecipar a sua morte, na presença de uma ou mais testemunhas.” (artigo 9).

Sublinhe-se mais uma vez a “urgência”, os “cinco dias de prazo legal” e o “imediatamente antes de administrar”. Matar um doente transforma-se numa emergência médica.

Chamar a este ato um procedimento clínico e atribui-lo a um médico está em absoluta contradição com o que sempre foi a definição da medicina, desde o Juramento de Hipócrates ao regulamento que define os atos próprios dos médicos (Diário de República, 5 de setembro de 2019). E contudo, nem a morte de seres humanos nem a violação da profissão médica parecem perturbar os que agora avançam com estas propostas.

Num país do mundo ocidental civilizado e desenvolvido, com uma evolução tecnológica significativa, um serviço nacional de saúde tendencialmente gratuito onde os cuidados paliativos são uma prioridade do plano nacional de saúde, a resposta devida a um doente que sofre e pede ajuda - é a morte?

A expressão de um desejo de morrer, que surge num doente sozinho, abandonado física ou afetivamente, e a sentir-se inútil para a sociedade e para a família, deve constituir um verdadeiro sinal de alarme: Este doente precisa de ajuda para viver e não de um “fármaco letal” para morrer.

Aliviar o sofrimento da doença (sobretudo quando é crónica e incurável), manter uma relação de confiança com o doente, preparar e acompanhar a morte natural, tudo isto é da mais elementar humanidade e tudo faz parte da missão quotidiana dos médicos e profissionais de saúde.

O medo do sofrimento e da morte acompanha a vida de todos os seres humanos e esconde um desejo profundo de alívio, companhia e afirmação do valor da sua pessoa.

Gerações futuras olharão com vergonha e incredulidade para as sociedades que promovem e praticam a eutanásia dos frágeis e dependentes.


*Henrique Leitão é docente da Universidade de Lisboa e foi Prémio Pessoa em 2014