O comissário do Emprego e Direitos Sociais diz que o tempo da troika já lá vai e o momento agora é de uma "mudança de paradigma" sobre a importância do social para o contexto económico.
Em entrevista à Renascença, o luxemburguês Nicolas Shmit, que ajudou a montar a Cimeira Social do Porto, defende que os mecanismos europeus de apoio ao emprego, como o Programa SURE, devem continuar enquanto forem úteis para manter o emprego afetado pela pandemia.
Para já, há dinheiro para gastar e há, sobretudo, que insistir com as metas sociais nos planos de recuperação.
Não há o risco de este ser um acordo de mínimos em vez de tentar extrair o máximo de todo o potencial do Pilar Europeu dos Direitos Sociais?
O pilar é um processo. Não se trata agora de obter o máximo. O pilar tem a ver com a busca das respostas certas e do compromisso certo. Digo sempre que a Europa é uma longa história de compromissos. Mas, no fim, todos eles nos trouxeram progressos. Sempre gostei da expressão do antigo Presidente Mitterrand, que dizia que a Europa avança com um "compromisso de progresso". Todos têm que "pôr alguma água no vinho", mas no final de contas todos devemos estar de acordo em relação ao progresso. Daí a importância desta Cimeira do Porto.
A Comissão escolheu três metas para 2030: alcançar uma taxa de emprego de pelo menos 78% na União Europeia, mobilizar pelo menos 60% dos adultos em ações anuais de formação e reduzir o número de pessoas em risco de exclusão social ou de pobreza em pelo menos 15 milhões de pessoas, entre as quais cinco milhões de crianças. Porquê estas metas em particular?
Não escolhemos estas metas por acaso. Acredito que estes três grandes objetivos refletem a situação social e estão muito interligados. Trabalhar estes três objetivos significa que se pode realmente melhorar a situação social na Europa. Mas temos de os ligar também à economia. Não queremos separar o social da economia – são duas faces da mesma moeda.
Quando se refere uma taxa de emprego de 78%, estamos a falar de bons empregos. Temos de criar postos de trabalho e, portanto, temos de ter uma forte recuperação.
O que é um "bom emprego"?
Em primeiro lugar, é um emprego que permita às pessoas viver decentemente e isto está muito ligado também à nossa proposta de salários mínimos. É um trabalho que faça sentido na nossa sociedade, que dê alguma segurança de que os jovens precisam em particular.
Tive uma longa discussão esta semana com jovens e eles pediam alguma segurança na sua vida. Um "bom emprego" pode ser um trabalho intelectual ou qualquer outro trabalho. Há muitos empregos que fazem muito sentido e que temos de valorizar ou revalorizar.
Penso em todas as mulheres nos hospitais e a prestar cuidados, mas também aquelas que se encontram no setor da limpeza. Vimos como isto é importante e temos de respeitar estes trabalhos.
Como conseguir melhores empregos na atmosfera digital?
Penso que o digital também tem uma grande diversidade. Existem empregos de topo na economia digital. E é aí que se fala em investir em competências, em tecnologia, conhecimento, em investigação e desenvolvimento.
Precisamos de mais engenheiros digitais, mais operadores digitais e assim por diante. É isto que faz o futuro da economia europeia. Mas o digital também é o indivíduo que vem de bicicleta e traz a sua pizza. Talvez ele não tenha segurança, não tenha salário ou proteção social. Tem, pois, os dois extremos no digital.
Temos de sustentar e apoiar os primeiros, investindo em competências. Temos talvez um milhão de vagas na economia digital e não são para indivíduos de bicicletas.
Mas temos de dar melhores condições de trabalho e alguma segurança aos rapazes ou raparigas nas bicicletas. Temos de lhes dar salários que possam eventualmente negociar com a plataforma e especialmente dar proteção social, sobretudo se estiverem doentes, pois vimos que, neste contexto do pandemia, quão importante é ter um seguro.
Temos um fosso digital ("digital divide", na expressão anglosaxónica) também no mercado de trabalho?
Sim. Temos diversos tipos de fossos nos nossos mercados de trabalho. Temos polarização entre empregos bem qualificados e remunerados e aqueles que têm empregos muito precários. Temos de trabalhar sobre estas lacunas na esfera desses indivíduos que podem ser considerados como trabalhando na economia digital porque dependem das plataformas.
Estão dependentes de algoritmos, mas o que eles estão a fazer também não é apenas digital. Conduzir o meu carro para a Uber não é muito digital. Eu utilizo uma plataforma digital, isso é verdade, mas o trabalho que estou a fazer não é diretamente um trabalho digital. O importante é dar melhores condições à pessoa que depende da economia digital.
Uma das chaves propostas é o diálogo social. Ao longo da última década, tem vindo a intensificar-se uma discussão sobre o papel dos sindicatos na Europa. Será esta, de algum modo, uma forma de sustentar mais o papel dos sindicatos nos mercados de trabalho na Europa?
Certamente que não represento os sindicatos. Não sou pago para dar bons conselhos para os sindicatos. Compete-lhes refletir a forma como se adaptam à nova economia social. Mas é certo de que precisamos de sindicatos, porque precisamos de equilíbrios na economia.
Se não tiver sindicatos, não tem acordos coletivos. Pode ter maus salários e condições de trabalho e isso não é aquilo a que nos propomos. Visamos uma economia social de mercado, uma economia onde há parceiros sociais ativos.
Não sou um comissário que defenda que tem de colocar sobre a mesa, todos os dias, um novo regulamento. Penso que muito pode ser feito ao nível do diálogo social, da negociação social entre parceiros sociais. Mas, para ter esta negociação, é necessário ter parceiros sociais fortes.
Isto é assim também para os empregadores, porque também as organizações patronais perderam grande parte da sua influência. E é também, obviamente, muito importante do lado da representação dos sindicatos para os trabalhadores e os empregados.
Há 20 anos, tínhamos a Estratégia de Lisboa. Muitos dos objetivos não foram alcançados. Subsiste a sensação de que muitas vezes há apenas belas palavras. Como responde a este argumento?
Bem, eu já andava por cá quando a Estratégia de Lisboa foi adotada. Não é assim tão simples dizer que a Estratégia de Lisboa falhou. Bem, não deu resultados em tudo.
Concordo que talvez não tenha estado à altura das nossas expectativas. Foi o início da nova economia, da economia do conhecimento. No entanto, penso que a Estratégia de Lisboa deu contribuições importantes. Não concordo com a ideia de que foi um grande fracasso. Concordo que não atingiu todos os objetivos, mas houve o lançamento de uma dinâmica com a Estratégia de Lisboa.
Espero que desta vez sejamos mais eficazes em matéria de resultados e nas abordagens que fazemos, com o envolvimentos dos Estados-membros, parceiros sociais, partes interessadas. É assim que temos de construir a Europa.
A Europa não vem apenas de Bruxelas, a Europa é um negócio diário a todos os níveis. Espero que o Processo do Porto, se assim posso chamar, seja algo que pode ser desenvolvido porque há muitos parceiros interessados em desenvolvê-lo.
Houve uma sondagem recente onde os europeus se diziam pessoalmente interessados e preocupados com uma Europa social.
Espero que a Europa tome conta dos meus problemas diários no trabalho, rendimentos, habitação, família, que tenhamos políticas que conduzam finalmente a uma sociedade de maior igualdade de oportunidades.
Nos últimos anos, as nossas sociedades seguiram numa direção diferente, com menos igualdade de oportunidades e mais precariedade. Isto é um ponto de viragem que temos de conseguir.
Em matéria de salários mínimos, estamos no ponto em que se foi o mais longe que pôde? Isto é apenas a solução de compromisso, um ponto de partida ou de chegada?
Temos tratados que temos de cumprir e foi o que fizemos. Mas criámos um enquadramento, demos ferramentas e temos objetivos definidos. Muito depende agora, por um lado, dos Estados-membros, mas também dos parceiros sociais, porque estão numa larga parte desta proposta pelos acordos coletivos, diálogo social e negociação coletiva. Esperemos que isto seja um instrumento forte. É também um sinal.
Lembre-se de que há 10 anos – não foi assim há tanto tempo – qual era o conselho também por parte da Comissão para países como Portugal? Reduzam o vosso salário mínimo, reduzam os vossos salários. Essa foi uma das chaves, um dos conselhos para serem mais competitivos.
Hoje, pensamos que os salários são importantes. Não são apenas um custo, eles fazem parte do nosso contexto macroeconómico e são também uma forma de garantir a coesão social, justiça social e o valor do trabalho.
Sou talvez um pouco enfático, mas isto é uma espécie de mudança de paradigma, quando comparado com o que foi dito não há muito tempo.
E as empresas estão "a bordo" nesta mudança?
Penso que as empresas inteligentes estão a bordo, porque estamos a viver numa época em que a tecnologia onde o investimento, as competências, o conhecimento e o digital são fundamentais para a sua competitividade. Ao mesmo tempo, têm salários sociais muito baixos. Isto não bate certo, especialmente para os jovens.
Como é que se incentivam os jovens a investir nos seus conhecimentos, na educação e, ao mesmo tempo, se defende que os salários têm de ser os mais baixos possíveis? Isto não é algo que seja compatível. Por isso, tem de haver uma mudança e penso que as empresas inteligentes aceitam estas mudanças.
Muitos jovens perguntaram-me nos últimos dias sobre estágios. Não sou contra os estágios, porque penso que são uma forma muito valiosa para os jovens obterem experiência profissional. Mas se os jovens estão em estágios, estão a fazer um trabalho. Estão a aprender, mas estão também a trabalhar. Tem de se reconhecer o seu trabalho. Tem que se lhes pagar, dar um salário decente pelo trabalho que estão a fazer. Muitas empresas fazem isso. Infelizmente, há também empresas que não o fazem e isso não é justo entre empresas e não é especialmente justo em relação aos jovens.
Existe neste momento o programa SURE para lidar com esta crise. É o instrumento europeu de apoio temporário para atenuar os riscos de desemprego numa situação de emergência. Mas a União Europeia parece estar ainda distante de um mecanismo de resseguro de desemprego. Quais serão os próximos passos?
O SURE tem sido uma grande inovação e tem sido um sucesso. Tem mantido milhões de pessoas nos seus empregos com os seus rendimentos. Teríamos tido uma crise muito maior se tivéssemos tido estes esquemas laboral de curto prazo apoiados pelo SURE. No ponto em estamos, esperamos sair desta crise e estamos a preparar a recuperação. É útil para manter estes esquemas, onde quer que se revelem indispensáveis.
Existe um calendário?
Isso depende dos setores. Se olharmos o setor do turismo, se formos bem sucedidos na vacinação, o próximo Verão significará uma verdadeira recuperação para o turismo. E o setor da hospitalidade irá melhorar porque as pessoas poderão viajar e assim por diante. Isto significa que os esquemas de apoio de curto tempo de trabalho podem ser diminuídos. Talvez haja algumas pessoas que tenham de escolher outros empregos e isto é outro ponto que têm de fazer agora.
Esta crise vai deixar-nos com uma economia um pouco diferente. O digital tem aumentado de uma forma muito rápida, por isso precisamos de mais trabalhadores digitais. Temos de treinar, requalificar as pessoas para este tipo de empregos. Temos de trazer também mobilidade ao mercado de trabalho, dando às pessoas as oportunidades para mudar o emprego, para transitar de um trabalho para outro.
E, ao mesmo tempo, onde as expectativas não são forem tão boas como podíamos esperar, talvez tenhamos de manter alguns esquemas de apoio ao emprego de curto prazo.
Ou seja, prolongar o programa SURE?
Sim. O dinheiro tem sido distribuído e ainda estão disponíveis alguns milhares de milhões de euros. E depois teremos de ver. O SURE não é certamente um
instrumento que deva correr durante anos e anos.
Por isso, questionei sobre um mecanismo mais estável
Certamente chegará o momento em que temos de discutir isso. O mecanismo a que se refere foi proposto principalmente no contexto da Zona Euro, de forma a termos transferências para os países confrontados com o que chamamos um choque assimétrico, quando alguns países têm dificuldades e outros podem não as ter.
Os primeiros serão apoiados e vão ter algum apoio financeiro. E isto poderia ter sido organizado através de um regime de resseguro de subsídio de desemprego.
Agora tínhamos agora um tipo de crise muito diferente. Mobilizámos mais de 700 mil milhões de euros. Os países que têm sido realmente afetados mais profundamente
pela crise, como os países do Sul por causa do turismo e da economia, que receberam a maior parte deste dinheiro.
Por isso, a urgência de trabalhar agora sobre este instrumento, que estava sobre a mesa antes desta crise, não está a ser dada agora. Mas não excluo que tenhamos de voltar a esse mecanismo.