O cardiologista Luís Parente Martins considera que a crise no Serviço Nacional de Saúde tem origem em questões monetárias e na relação médico-doente.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, o médico, um dos organizadores do "Encontro Cristão", que junta em Sintra, diversas igrejas e comunidades em oração ecuménica, diz que "as pessoas perdem o empenho no SNS" quando do outro lado "o dinheiro é três ou quatro vezes superior".
No momento em que começa a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, Luís Parente Martins diz não ter uma solução para o problema, mas assegura que há no SNS "uma enorme falta de recursos".
O cardiologista dá o exemplo do Hospital Pulido Valente, onde trabalha, e onde a falta de capacidade de resposta é evidente. No seu serviço, o número de profissionais reduziu-se substancialmente depois da pandemia. “Temos filas enormes, tanto para as consultas como para as realizações dos exames complementares diagnósticos. Antes da pandemia, éramos 20, agora somos quatro ou cinco. Portanto, há, de facto, no Hospital Pulido Valente particularmente, um défice, uma incapacidade da resposta”, revela.
Sobre os atos eleitorais que se avizinham, Parente Martins diz que “é muito importante saber quais os caminhos que cada um dos partidos propõe".
Luís Parente Martins sente-se representante do “ecumenismo do povo”, de um ecumenismo que nasceu de “um contexto familiar onde foram caindo muitos preconceitos que existiam entre Igrejas”, o que tem permitido que “progressivamente tenha vindo a aumentar o número das pessoas e a abrangência do encontro”.
O médico sublinha “a graça de termos o Papa Francisco que orienta para a inclusão de todos”, facto que “até as comunidades evangélicas valorizam muito”.
São 14 edições de Encontro Cristão. Que caminho é que tem sido feito e que novos horizontes importa afirmar conjuntamente?
Penso que isto vale sempre a pena voltar às origens. Nós somos o ecumenismo do povo, não somos o ecumenismo dos teólogos. Portanto, este ecumenismo e estas relações nasceram de um contexto familiar, onde foram caindo muitos preconceitos que existiam entre Igrejas diferentes a que as nossas famílias pertenciam. Descobrimos que, de facto, o muito importante, aquilo que nos unia era Jesus Cristo. Portanto, descobrir este Jesus Cristo, louvar este Jesus Cristo em comum e poder fazer um encontro onde mais cristãos pudessem fazê-lo, foi a iniciativa que lançámos há 14 anos. Na altura, com um pequeno grupo de pessoas, ainda em Algueirão-Mem Martins.
Progressivamente, temos vindo a aumentar o número das pessoas e a abrangência do encontro. Penso que este encontro é muito importante porque envolve não só o Conselho Português das Igrejas Cristãs, mas a Igreja Católica Romana, a Aliança Evangélica, que é muito pujante, como se sabe, e cada vez mais. Há um número enorme de cristãos que vivem nestas comunidades evangélicas e que também já vão participando nesta dinâmica.
"Decidir amar" é o tema do encontro este ano. Não deixa de ser interessante, uma vez que o Papa fala de uma terceira guerra mundial aos pedaços e muitos utilizam a religião para justificar a guerra. Que atitude podemos ter e devemos também esperar dos cristãos na defesa da unidade e da construção da paz?
Li, há pouco tempo, um artigo de uma cristã de Beirute, que viveu exatamente num contexto de guerra onde tudo se desmoronava. Faz-me lembrar um bocadinho aquele movimento a que eu estou ligado, o movimento dos Folclores, em que Chiara Lubich [fundadora] viveu num contexto muito semelhante. Mais recentemente, há 15 ou 20 anos, esta nossa irmã, de Beirute, dizia que quando perdia a casa, quando perdia os projetos, quando parecia que tudo desmoronava, só uma coisa fazia sentido: era amar a Deus, que não passa, e amar o próximo de uma forma muito concreta.
Portanto, nós, e penso que isto é uma das partes belas do encontro, há três meses juntamo-nos numa pequena comissão ecuménica que vai meditando e que vai partilhando a palavra. Esta questão do "amarás o Senhor teu Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo" já foi muito digerida com o contributo de cada sensibilidade cristã e resultou neste título, mais impactante.
No fundo, aquilo que podemos fazer no contexto atual, que é um contexto extremamente difícil, é cada um de nós decidir amar e convidar os outros a decidir amar.
Para além deste tempo da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que relação existe entre as Igrejas?
Existe uma relação de grande fraternidade. Já tivemos durante estes 14 anos um espaço comum, a chamada "Plataforma Comunidade", onde acolhemos refugiados durante dois anos de uma forma conjunta. Mas, este ano, com este "Decidir Amar", nós queremos, por um lado, durante a tarde, fazer uma caminhada pelas ruas de Sintra, onde os jovens vão convidar os turistas e as pessoas que passam a um desafio, um bocadinho que está fora de moda, de decidir amar e não só usufruir, porque há muito, penso eu, este conceito que enquanto não vem a tal guerra, enquanto não se perde tudo, então vamos desfrutar de tudo, não é?
Mas há outra maneira que nos parece mais retributiva, que é, de facto, este preocupar-se com o outro, este viver com o outro. Quando nós fazemos esta proposta e a experimentamos, descobrimos que vale a pena este caminho, que este é um caminho válido.
Não há um risco de se cumprir um ritual de uma semana de oração que, depois, não tem sequência?
Não. Vamos lançar uma iniciativa que nos parece muito importante. O contexto é a parábola do bom samaritano. Todos nós, os cristãos, temos esta intenção de ser um bom samaritano, mas este samaritano que de facto olha e vê, este samaritano que se aproxima e não passa para o próximo, não passa do lado, este samaritano que quer cuidar.
Mas isto é muito complicado no nosso dia-a-dia. Eu estou-me a lembrar de uma experiência de um de nós: todos os dias vinha um arrumador e que lhe dava uma moeda. Assim ficamos um bocadinho pela caridadezinha, pela emolas, enfim, tem pouca consequência.
Portanto, já reunimos onze instituições de uma coisa que se chama o "ponto de encontro". O "ponto de encontro" vai ser na Tapada das Mercês e vai permitir descobrimos aquelas pessoas que estão com dificuldades na vida, não só no conceito estritamente social, mas no conceito psicológico, pessoas que estão sem sentido de vida, pessoas que perderam o sentido de vida, pessoas que estão com dificuldade em pagar os empréstimos ao banco, pessoas que estão com dificuldades nos relacionamentos entre cônjuges.
Vamos ter uma série de associações que são "expert" e vamos convidar cada um de nós que quer ser bom samaritano a levar essas pessoas até este "ponto de encontro", onde as pomos em contacto com a instituição que melhor pode ajudar naquele problema que têm. Vamos continuar a seguir mensalmente a situação, mas o ponto de encontro é exatamente só um local onde fazemos a junção entre aquele que quer ser bom samaritano, aquele que precisa de ser cuidado e aquele que são os cuidadores, numa relação que eu acho que vai ser terapêutica para todos. Porque, de facto, não beneficia só aquele que é cuidado: beneficiamos nós porque passaremos a ser mais aquilo que queremos ser, que é bom samaritano.
Começou esta entrevista dizendo que são o ecumenismo do povo. Pergunto-lhe: o movimento ecuménico, na realidade, concretiza-se mais por estas ações próximas, quase até de relação pessoal, do que a nível institucional?
Nós temos muito esta convicção, que é um bocadinho a convicção que vem da nossa experiência. Para dizer a verdade, fico um bocadinho perplexo porque quando Jesus Cristo, no Evangelho, diz que todos sejam um para que o mundo creia, e, portanto, faz depender a fé da unidade dos cristãos, esta frase não tem um impacto dentro das Igrejas, das comunidades. Mas tem em algumas minorias. Nós percebemos que, quando passamos da solidariedade a uma fraternidade, quando de facto nos conhecemos, quando de facto percebemos que temos diferenças, mas temos imenso cuidado em procurar aquela frase ou aquela iniciativa onde todos se sentem envolvidos. No fundo, é uma dinâmica sinodal.
Mas isso vai acontecendo, de facto?
Olha, nós temos sempre três meses de preparação deste encontro, que para nós é muito gratificante, porque é um encontro semanal das várias comunidades cristãs. Depois, quando lançamos uma destas iniciativas, tentamos mantê-la durante o ano e continuamos a manter relações de amizade, que, muitas vezes, passam por um jantar com um membro de outra Igreja, de uma visita à casa, às nossas casas. Enfim, é isto que alimenta o relacionamento fraterno e que, de facto, nos faz acreditar que não existe uma diferença substancial entre a fé do outro e a minha fé.
Que contributo podem os cristãos dar na construção democrática, na intervenção e até no apelo à participação neste tempo que estamos a viver, que é um tempo pré-eleitoral?
No fundo, o importante é não desmoralizar. Quer dizer, o importante é não desmoralizar e perceber que os cristãos têm como mira a eternidade. E não perder este foco na eternidade que se constrói no dia-a-dia. Penso que o contributo que podemos com certeza dar é empenharmo-noss naquelas situações que estão perto de nós.
E sermos também exigentes para com os partidos?
Sim, é muito importante perceber quais são os caminhos que cada um dos partidos propõe e como é que propõe um mundo com mais esperança e com mais vida. Saber exatamente nos programas o que é que consta como caminho para chegar a uma meta, porque, enfim, a meta é um bocadinho sempre uma meta de uma situação melhor, um mundo melhor, mas os caminhos são importantes e é também importante que sejam caminhos realistas.
As nossas instituições cristãs vão-se encontrar de três em três meses num espaço de comunhão. Porquê? Porque sozinhos não conseguimos levar para a frente estas boas intenções que todos temos. Juntos vamos fazer um encontro trimestral onde partilharemos experiências, faremos um momento de oração, porque as instituições cristãs focam-se muito para o social e acabam por ser instituições de solidariedade social, perdendo a dimensão da fraternidade. E é uma perda enorme para a ontologia da própria instituição. De facto, é necessário que cada um vá às raízes e perceba a razão porque está nesta missão.
Neste tempo em que a ameaça dos populismos e dos extremismos é crescente, também se exige aos cristãos uma maior participação cívica e política?
Sem dúvida. Mas a participação, penso eu, passa muito pela consciencialização e dinamização das comunidades cristãs, de tal forma que cada um saiba dar razões da sua esperança. E ao dar razões da sua esperança, de facto, percebe que não pode haver incongruências. Eu acho que temos a graça de ter o Papa Francisco que orienta exatamente para a inclusão de todos, que orienta no sentido de fazermos este caminho. Eu penso que, quando ele diz que vai no meio do rebanho - uns vão lá mais à frente, outros vão mais cá atrás - ele tenta unir, de facto, estas pessoas. Eu penso que até as comunidades evangélicas valorizam muito este papel.
É muito interessante que, por exemplo, durante a Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, tenha havido um encontro, no Estádio da Luz, organizado por organizações evangélicas, onde passou um vídeo do Papa. Quer dizer, o Papa é uma voz que, atualmente, é ouvida por toda a gente, inclusivamente pelos evangélicos.
Precisamente, nesse encontro da JMJ o Papa Francisco recebeu na Nunciatura Apostólica diferentes líderes religiosos a quem pediu que a presença das religiões no espaço público continue a assegurar, na sociedade, uma abertura à transcendência, assegure também a dignidade da pessoa humana e o cuidado pelos mais frágeis. Eu pergunto-lhe de que forma é que a prática dos cristãos, no seu compromisso político e cívico, tem de passar por aqui?
Pessoalmente, estou particularmente preocupado com esta abertura à transcendência. Porque, de facto, e isto é uma opinião muito pessoal, nós tivemos aqui um pico com a JMJ, em que, de facto, houve um pico de entusiasmo, mas, de facto, há que dar continuidade à JMJ. Nesse aspeto, eu penso que o caminho passa pela formação de pequenas comunidades e pela valorização destas pequenas comunidades que fazem um caminho de discipulado em relação a Jesus Cristo. Isso leva a um empenho na sociedade.
QNão vale de nada haver um misticismo que aflora em muitas circunstâncias, mas que, de facto, depois, separa completamente a alma da vida do quotidiano. E isto é uma tendência. Penso que hoje em dia, nas alturas de crise, há muito a tendência da polarização: ou focar-se muito ou no social ou muito no místico. No fundo, são refúgios. Ser capaz de fazer a síntese entre as duas coisas, estar alimentados e alicerçados na raiz para, depois, ser a expressão deste amor de Jesus Cristo, concretamente naquele que é o outro, é o caminho.
Pedia o seu olhar, agora, para este processo de sinodalidade que a Igreja Católica está a viver. Aqui mesmo, na Renascença, o D. Jorge Pina Cabral, da Igreja Lusitana, sublinhou que o processo em curso, se for enriquecedor para a Igreja Católica, sê-lo-á também para o movimento ecuménico em geral. Este processo da sinodalidade é também um desafio para as outras Igrejas?
Eu penso que sim. As Igrejas do COPIC já são igrejas sinodais. Nelas já não decide o bispo por si só, não podem tomar decisões sem consultar de facto a sua Igreja. É uma realidade tanto na Igreja Metodista como na Igreja Presbiteriana. E eu penso que esse processo é um processo valioso no sentido em que envolve todos e ajuda todos a caminhar.
Agora, são Igrejas que, em termos numéricos, não têm uma expressão tão grande. É mais fácil fazer sínodo numa Igreja mais pequena do que numa Igreja maior. Nas Igrejas evangélicas, o que eu tenho visto é que, de facto, também têm o mesmo problema de todos se ouvirem. Penso que é uma questão cultural. Atualmente, a autonomia é um valor que está perfeitamente empolgado, levando-o a uma certa autocracia em que eu só faço aquilo que eu acho. E o sínodo, o escutar o outro, como o Papa Francisco nos propõe, penso que é um desafio grande e é um desafio que temos de desenvolver em cada uma das comunidades e depois nas comunidades em geral.
Recorrendo à sua experiência profissional, como é que vê as atuais dificuldades no Serviço Nacional de Saúde?
Penso que tem muito a ver com esta questão monetária e a questão relacional. Em termos de respostas, há uma discrepância enorme entre aquele Serviço Nacional de Saúde que presta auxílio a todos e em que os médicos e os profissionais de saúde trabalham lá por uma causa e aquele que perdeu essa relação. Quando não há um projeto em conjunto, quando se perde a razão de estar e, do outro lado, o dinheiro é três vezes ou quatro vezes mais, as pessoas perdem este empenho no Serviço Nacional de Saúde.
Sinceramente, confesso que não tenho nenhuma maneira de resolver o problema. Percebo que há enorme falta de recursos e percebo que o caminho, provavelmente, tem a ver com a medicina relacional, ou seja, com o cultivar da relação, de forma a que as instituições que agora emergem em grandes quantidades não sejam nem corram o risco de serem fábricas de produção de técnicas e de cuidados de saúde.
No dia-a-dia, sente limitações no acesso à saúde, como defendem alguns?
Eu trabalho no Centro Hospitalar de Lisboa Norte e nós temos filas enormes, tanto para as consultas como para as realizações dos exames complementares diagnósticos. Antes da pandemia, éramos 20, agora somos quatro ou cinco. Portanto, há, de facto, no Hospital Pulido Valente um défice, uma incapacidade da resposta. Agora, há também um empenho e, já agora também lhe posso dizer, que, apesar de sermos poucos, criámos há cinco anos, uma dinâmica, que se chama a Unidade Mais Sentido e é uma coisa inovadora. É a prestação de cuidados, segundo a metodologia dos cuidados paliativos, profundamente relacional, com os doentes cardíacos.
Normalmente, as pessoas associam aos cuidados paliativos ao fim de vida, a doença oncológica, e os cardíacos e pessoas com doenças de órgão, também beneficiam imenso de serem cuidados, e não só no aspeto técnico, porque nós não somos mecânicos do coração, somos pessoas que tratam pessoas.
Nessa relação entre médico e doente, que envolve o cuidador e em que nada é mérito nosso, é tudo mérito da metodologia dos cuidados paliativos, mas aplicado ao Serviço Nacional de Saúde é muito retribuinte. Apesar das dificuldades, nós vivemos a nossa missão e a nossa profissão com grande entusiasmo, porque percebemos que somos úteis e percebemos que as pessoas nos veem com grande utilidade.
Perante essas filas que descreve, como é que fica a relação médico-paciente?
Tenho a sorte de ter um excelente diretor e arranjamos um método onde, de facto, o nosso problema é não conseguir dar uma resposta muito global, pelo contrário, é uma resposta muito restrita. Nós temos imenso tempo com cada doente, nós podemos ver cada doente numa hora. Exatamente porque aqueles doentes que, além da patologia grave que têm no coração, têm um conjunto de outras comorbidades, e portanto, desde o ponto de vista psicológico ao ponto de vista relacional, à sobrecarga do cuidador, todas estas dimensões são avaliadas e nós temos tempo para isso. E isto é muito bom, em termos de fazer a carreira profissional e de estar no hospital, porque nós vivemos rodeados de gente que está contente com os cuidados que recebe e de gente que está contente com os cuidados que presta.
Deixe-me recorrer, por último, a uma das outras experiências de vida do Luís Parente Martins para lhe perguntar porquê é que estamos a falhar, se é que estamos a falhar, ao nível da rede de cuidados paliativos?
Bom, existem, de facto, duas coisas que me parecem importantes. Por um lado, a pouca formação e, do meu ponto de vista, existe uma afetação cultural. Quer dizer, a um dado momento ainda existem, e era preciso procurar aquelas pessoas que estão nos cuidados paliativos, com esta missão e esta vontade de querer ajudar, mas já começa a haver também interesses económicos. Ou seja, é uma oportunidade de trabalho, é uma oportunidade também de criar rentabilidade e, portanto, a genuidade que eu encontrei quando comecei nos cuidados paliativos, hoje em dia, pode perder-se.
E isto é também uma das maneiras de voltar à genuidade. É uma questão cultural, portanto, voltar à genuidade e convidar cada um a fazer parte deste processo dos cuidados paliativos, de forma a que isso seja compensador em termos humanos, porque é uma relação que se estabelece e nós somos, de facto, seres de relação. Acho que é o caminho para implementar também os cuidados paliativos.