O fenómeno da mentalidade jihadista actual tem raízes na visão europeia da religião islâmica, considera Aamir Mufti, um académico paquistanês que trabalha na América.
Formado em literatura e em antropologia, Mufti dedica-se entre outras coisas ao estudo das ligações entre a crise de refugiados e o fenómeno do terrorismo islâmico no Ocidente.
Em Portugal para participar num encontro promovido pela Universidade Católica, em Lisboa, conversou com a Renascença sobre estes assuntos.
“A cultura da União Europeia tem uma certa maneira muito específica de ver a figura do migrante e a figura do muçulmano. No fundo, o que digo é que a figura do muçulmano na Europa é uma invenção recente. Mesmo há 20, 30 ou 40 anos não havia uma identidade política uniforme e universalizada, pode-se dizer até que não havia muçulmanos... Havia paquistaneses, somalis, egípcios, turcos, pessoas de todo o mundo muçulmano, é certo, mas esta ideia de que existe uma identidade muçulmana unificada e única, que atravessa as diferenças de nacionalidade, origens, raças e línguas... É um fenómeno muito recente na política europeia.”
Para Aamir Mufti esta é uma visão politicamente transversal. “O que me preocupa é que os discursos estatais e públicos sobre esta figura unificada do muçulmano, tanto à direita como à esquerda, acabaram por produzir efeitos no terreno. Isto é, as comunidades passaram a ver-se a si mesmas desta forma, quando há uma geração não era assim.”
“A ironia é que grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, e vários actores estatais e não-estatais na Europa partilham desta ideia de que existe uma comunidade islâmica universal e uniforme, a nível global. Mas isto é um fenómeno recente e continua a dizer respeito apenas a pequenas minoras dos muçulmanos, esta ideia de uma prática islâmica única... Porque a prática do islão variou muito ao longo dos séculos, de região para região, até de aldeia para aldeia, dentro dos países”, conclui o académico paquistanês.
Trata-se, considera Mufti, da pior vertente dos estereótipos. “O poder de um estereótipo não está no facto de alguém ter de nós uma imagem negativa, mas que nós passemos a assumir essa imagem”.
Para Aamir Mufti, o fenómeno do radicalismo islâmico é, assim, apenas uma vertente de uma visão europeia do islão, que está a ser assumida por uma nova geração de muçulmanos, com particular destaque para os que vivem na Europa e estão, por isso, mais sujeitos a ela.
“Não é por acaso que milhares de crianças europeias se juntam ao Estado Islâmico e combatem por eles, é porque partilham desta visão. Os paquistaneses não estão a juntar-se em massa à jihad na Síria. A Indonésia tem a maior população islâmica do mundo, seguida da Índia e os filhos deles não estão a correr para a Síria para se juntar ao Estado Islâmico. Mas as crianças europeias estão. E em muitos casos são crianças mesmo.”
O cenário actual na Europa não é fácil, admite o ensaísta, mas há sinais de esperança e exemplos a seguir. Mufti aponta para a Alemanha. “Receberam um milhão de refugiados num só ano. Mas não estão propriamente com o país cheio de campos de refugiados, nem têm as pessoas a dormir em estações de comboio. Muito rapidamente estas pessoas foram assimiladas e tornaram-se parte de comunidades, aldeias, vilas e cidades em todo o país. É possível, havendo vontade política, e Angela Merkel tem-na demonstrado”, conclui.
Aamir Mufti foi um dos oradores do encontro "Global Translations: VII Lisbon Summer School for the Study of Culture", que se realizou em Lisboa entre os dias 26 de Junho e 1 de Julho.