​Hong Kong em democracia confinada
05-06-2020 - 15:44

A proibição da memória do massacre de Tiananmen foi justificada, cinicamente, com o medo do contágio da Covid. A pandemia distrai-nos a todos, enquanto os ditadores se multiplicam ou vão reforçando os seus poderes. A Guerra Fria acabou. A questão, agora, não é saber se regressa. Há um ar quente e asfixiante a percorrer o mundo. Um verão desconfinado e estranho. Com a raiva à solta nas ruas, em guerras, cada vez mais quentes.

Foi bonito ver as fotos de uma cidade iluminada e da praça da Vitória cheia de gente. Apesar da primeira proibição, por parte do regime chinês, de que há memória em três décadas, o povo não cedeu às ameaças e, em Hong Kong, voltou a sair à rua, na quinta-feira, pelo 30º ano consecutivo, para não deixar o regime esquecer o massacre Tiananmen.

Nunca se soube ao certo quantos morreram, nessa noite de 3 para 4 de junho, quando os veículos militares que cercavam a praça avançaram sobre os estudantes. Sabe-se apenas que se enterrou, com eles, o sonho da abertura democrática do regime. Como se está a enterrar, agora, o que resta do regime de semi-autonomia da cidade de Hong Kong, claramente a viver os seus últimos dias de liberdade, perante uma China disposta a trocar as vantagens económicas da existência da sua praça financeira, pelo reforço do poder do Partido Comunista Chinês e da sua odiada lei de Segurança Nacional.

O alerta é de Jean-Philippe Béja, um dos mais reconhecidos sinólogos mundiais, feito, ontem mesmo, nas páginas do “Libération”, horas antes de se conhecer que o povo descera, na mesma, à rua desafiando a mobilização policial e a proibição de ajuntamentos a pretexto do Covid.

A praça Vitória acabou cheia. Como sempre, em memória das mortes daquele dia e os confrontos resumiram-se a breves escaramuças com a polícia. Para cúmulo da ironia, as autoridades de Hong Kong deram, durante a tarde, mais um passo na direção da subordinação a Pequim, criminalizando os “insultos” ao hino nacional, usados como forma de reivindicação da autonomia da cidade pelos manifestantes, contra a imposição da lei chinesa. Um texto capaz de esvaziar, num ápice, a prometida autonomia da região, contida na Declaração de 1997.

Béja antecipava o simbolismo da proibição feita, este ano pela primeira vez, desde o massacre, da vigília de homenagem às vítimas, concluindo que se tratava de mais um passo dado na erosão do estatuto negociado com o Reino Unido, perante o “escandaloso” silêncio da Europa, tolhida pelo medo de hostilizar os novos senhores do mundo.

Encontrei as declarações do meu velho professor, de estudos políticos no CERIS, em Bruxelas, numa entrevista concedida ao jornal francês. Passaram mais de 16 anos, mas as suas palestras não eram fáceis de esquecer, e a evolução da China que ele garantia que não perderia pela demora em mostrar a sua força ao mundo, nunca mais deixou de lhe dar razão.

Hoje, é director emérito de investigação do CNRS. Então não tinha ainda esse estatuto, mas já era um dos sinólogos mundiais mais informados. As suas palestras, conhecidas por uma comunicação contagiante, eram marcadas pela polémica constante, de que dei nota nas minhas crónicas da altura. Trocas de palavras acesas, sobretudo com os alunos recém-chegados de Leste, para trabalhar em embaixadas ou instituições comunitárias.

Muitos viam-no como um “colaboracionista” com o regime maoísta. Não lhe perdoavam o passado juvenil. As análises do intelectual francês, na juventude, quando várias vezes visitou Pequim integrado em pequenos grupos de investigadores “amigos” ou pelo menos “tolerados” por um regime que violava ostensivamente os mais elementares direitos humanos.

Cada pergunta era geralmente um acicate e quase implicava um pedido de desculpas do mestre pelo fechamento e falta de informação que o impedia, como a todos, de ter uma visão livre do que se passava no terreno. Os alunos, sobretudo os da carreira diplomática, não lhe perdoavam o historial.

Béja pode ter demorado até perceber o que efetivamente se passava. Lembro-me de se ter desculpado com a inexperiência, o ar dos tempos e sobretudo com as dificuldades que a ignorância da língua acarretava, mesmo para os estudiosos mais esforçados.

O facto de durante uma das suas visitas ter ocorrido um terramoto, muito perto da zona onde se encontrava e só ter sabido no regresso a França, foi um dos seus exemplos. Entretanto, aprendera a decifrar algumas notícias no jornal do Povo. A única referência encontrada ao evento, por esses dias, era a repetição, dia após-dia, da mesma e enigmática frase na primeira página: “o povo chinês não é supersticioso”. Os terramotos são tidos pela população como uma profecia das mudanças de poder.

Nessa altura, poucos anos passados da recuperação do território das mãos britânicas, com uma declaração entregue junto da ONU salvaguardando todos os direitos dos seus habitantes, quer no que respeitava ao estatuto financeiro quer, sobretudo, ao regime democrático, Béja era já muito cético sobre as futuras ambições do gigante adormecido, mas não antecipava nenhuma alteração dos compromissos assumidos em relação ao estatuto de Hong Kong.

Já, então, repetia que as ambições da China sobre a cidade remontavam a 1949 e só não tinham sido concretizadas, logo durante a liderança de Mao, porque o líder percebera a vantagem de ter ali “uma janela aberta para o mundo exterior”.

Com Deng Xiaoping (à frente do partido entre 1978 e 1992) o facto de Hong Kong ser visto como a única forma de atrair investimentos fez com que não fosse posta em causa a velha formula “ um país dois sistemas”. No caso concreto da região semi-autónoma, não previa mesmo que o valor estratégico da sua praça financeira acabasse irrelevante para o Regime. Previa-lhe, do ponto de vista económico, a mesma sorte que para Macau protegido pelo poder de atracão do dinheiro do jogo.

No “Libération”, ele próprio assume que só agora admite o risco de um futuro sem liberdade económica nem democracia. O velho professor não hesita em avisar: “o Partido Comunista Chinês faz o que quer com a lei. É ele que as escreve. Pode mudá-las ou violá-las”. E, para Xi Jiping a lei serve “desde que permita reprimir”. E acrescenta: “até à votação desta lei (da Segurança Nacional), estive sempre convencido que não (a China não abdicaria das vantagens económicas da praça financeira) mesmo sabendo que é sempre mais importante, para eles (os chineses) a política do que a economia. Subestimei o sentimento de ameaça que a crise trouxe ao regime”.

O escândalo para Béja não está nas atitudes de Trump sobre a crise de Hong Kong, nem na timidez da reação britânica (antiga administradora do território), mas no silêncio cúmplice de toda a Europa e de países como a França que vai fazendo vista grossa para não hostilizar a China.

“Se não defendemos Hong Kong isso significa que aceitamos que a China possa violar os seus compromissos “. E, nesse caso, vale a pena perguntar até onde irá? Acrescentamos, nós.

A proibição da memória do massacre de Tiananmen foi justificada, cinicamente, com o medo do contágio da Covid. A pandemia distrai-nos a todos, enquanto os ditadores se multiplicam ou vão reforçando os seus poderes. A Guerra Fria acabou. A questão, agora, não é saber se regressa. Há um ar quente e asfixiante a percorrer o mundo. Um verão desconfinado e estranho. Com a raiva à solta nas ruas, em guerras, cada vez mais quentes.