A hipótese de uma segunda vaga de refugiados ucranianos é real. O alerta é deixado pelo chefe da missão portuguesa da Organização Mundial das Migrações (OIM), das Nações Unidas, em entrevista à Renascença.
De acordo com Vasco Malta, se a guerra se prolongar, e face às carências que já se sentem, é possível que uma parte significativa dos oito milhões de deslocados internos - obrigados a sair das suas casas, mas ainda dentro da Ucrânia - venham a optar por deixar o país.
E se isso acontecer, Vasco Malta aconselha a Europa a definir, de uma vez por todas, um plano para acolher estas pessoas, e a passar a controlar com mais rigor quem as acolhe.
A guerra na Ucrânia já obrigou cerca de um terço da população total do país a sair de casa - continuem ou não na Ucrânia.
Sim, neste momento temos 6,2 milhões de pessoas que saíram da Ucrânia, e oito milhões de deslocados internos, isto é, pessoas que estavam em cidades ou regiões onde não se sentiam em segurança, e que, por isso, se deslocaram ainda dentro das fronteiras da Ucrânia.
Os que já saíram, como é que se distribuíram pelos países de acolhimento?
A grande maioria deslocou-se essencialmente para países vizinhos. Estamos a falar de cerca de três milhões de pessoas que ainda estão na Polónia, e de pessoas que estão na Moldávia e na Roménia.
A verdade é que a grande maioria dos cidadãos ucranianos e de outras nacionalidades que fugiram desta guerra, ainda está nos países de fronteira porque estão legitimamente a assistir à evolução do conflito, para saber se podem voltar rapidamente para o seu país.
Relativamente ao resto da distribuição pela Europa, Portugal atingiu as 38 mil pessoas, mas há outros países que receberam um número significativo de refugiados. A Itália julgo que já vai nas 100 mil pessoas, a Espanha andará também à volta das 100 mil, e a Irlanda entre 30 e 40 mil.
Foram sobretudo para aqueles países onde já existiam comunidades ucranianas muito fortes, porque aí tinham redes de contacto e a ajuda que precisam nesta altura.
Essa continua a ser uma característica desta crise humanitária. O facto dos ucranianos serem o maior apoio dos ucranianos.
É verdade. A solidariedade a que se assistiu decorreu numa primeira fase através da diáspora ucraniana espalhada por toda a Europa. Foi a primeira almofada que permitiu acomodar muitos dos pedidos.
E é natural que assim seja, porque as pessoas estão a fugir do conflito e procuram uma rede familiar, uma rede de apoio, e se essa rede está espalhada por diversos países da União Europeia é normal que as pessoas a procurem enquanto esperam pela evolução da guerra.
Mas, para além do papel da diáspora ucraniana, é preciso dizer que existiu também uma grande vontade de ajudar por parte dos cidadãos da União Europeia, que é verdadeiramente visível. E Portugal não foi exceção.
Mas apesar do apoio dos compatriotas e da generalidade dos países europeus, também já existem muitos campos de refugiados na faixa de fronteira.
Em todos os países vizinhos há campos de primeira linha. A partir do momento em que as pessoas atravessam a fronteira, seja na Roménia, seja na Moldávia, na Hungria ou na Polónia, há um conjunto de campos que são geridos por entidades com experiência no terreno, como por exemplo a Cruz Vermelha, muitas vezes em parceria com organizações humanitárias das Nações Unidas – como é o caso da OIM, que ajudam na gestão dos campos.
Essa primeira triagem não foi criada para ser uma solução de médio e longo prazo. Esses campos servem apenas para o curto prazo, só para se fazer a verificação das necessidades das pessoas. E o que a OIM tem feito nesses campos em articulação com os governos de cada país e com as embaixadas, é tentar perceber o apoio que pode ser dado para que essas pessoas se possam dirigir para onde querem.
Para além disso, a OIM celebrou um acordo com a Airbnb que permite a qualquer cidadão que esteja nos países limítrofes da Ucrânia, ir para uma habitação Airbnb durante um período máximo de 30 dias para definir o que é que quer fazer a seguir, e para que pais é que quer ir.
E como é que acha que está correr esse acolhimento?
Globalmente bem, mas temos que ser claros e honestos: a maioria dos países europeus não está a controlar a forma como o acolhimento é feito, principalmente por parte das pessoas e entidades privadas que se disponibilizaram para isso.
Porque é preciso ter em conta duas dimensões. Primeiro, nem todas as pessoas têm capacidade para receber cidadãos extremamente vulneráveis nas suas habitações.
Por razões várias ou porque as condições psicológicas dos refugiados não o permitem, ou simplesmente porque as condições físicas das casas não têm as condições mínimas para aceitar pessoas.
Na perspetiva dessas pessoas se calhar até têm condições, mas a verdade é que não são boas condições. Muitas pessoas no intuito de ajudar julgam que o simples canto de um quarto ou de uma sala é suficiente para receber um número significativo de pessoas.
Para além disso, é preciso ter em conta que há pessoas que se disponibilizam para ajudar, mas podem não ter as melhores das intenções. Este é um ponto sensível muito importante.
É importante criar mecanismos que permitam controlar para onde é que estas pessoas vão, e se quem as está a receber tem ou não condições. Por exemplo, há países da União Europeia onde é obrigatória a apresentação de um certificado de registo criminal para se poder receber pessoas em casa.
Estamos a falar de pessoas extremamente vulneráveis, que vieram de um conflito, a maior parte delas mulheres e crianças que tiveram que deixar os seus maridos, pais, namorados na Ucrânia. É importante perceber que essa vulnerabilidade acrescida tem que ser tratada devidamente, e isso significa, falando de uma forma muito frontal, que nem todas as pessoas, em todo o lado, estão habilitadas a receber pessoas com estas vulnerabilidades”.
Mas Portugal também não tem propriamente um plano de acolhimento…
Apesar de Portugal não ter um plano concreto, pelo menos à data de hoje, que diga respeito à integração destas pessoas, há, no entanto, uma intenção visível do Governo de querer ajudar na integração destas pessoas.
Chamar-lhe um plano bem definido pode ser um preciosismo, mas a verdade é que no que diz respeito ao emprego há a possibilidade dos refugiados se inscreverem num site criado para fazer o “match” entre a procura e a oferta ao nível do emprego. Há por parte das autoridades escolares a preocupação em ajudar a inserir as crianças nas escolas, há por parte do Alto Comissariado para as Migrações uma tentativa de monitorizar pelo menos onde é que as pessoas estão, e ajudar as autarquias nos mecanismos de integração.
Pode não ser um plano publicado, e que esteja visível na Internet, mas há um conjunto de ações do Estado português com o objetivo de ajudar à integração.
Dir-me-á, e isso é suficiente? Eu acho que há sempre espaço para melhor, e o que a OIM tem feito junto do Governo é apresentar a possibilidade de ajudar em vários domínios, quer seja no registo destas pessoas, quer seja no domínio da integração.
E aí de facto é importante pensar em desenhar o mais rapidamente possível um plano, para que de forma sustentada ao longo do tempo possamos ajudar estas pessoas.
E em relação aos deslocados? Aquelas pessoas que foram forçadas a deixar os sítios onde viviam, mas continuam dentro da Ucrânia. Como é que estão a viver?
A OIM está a trabalhar intensamente na Ucrânia, é das organizações das Nações Unidas com maior presença no país, nesta altura estão lá mais de 300 colegas meus. E foi feito um inquérito junto dos deslocados, e os resultados são muito claros.
Primeiro, precisam de apoio financeiro. Segundo, precisam de apoio em relação aos serviços de saúde, e depois também nos transportes e no acesso a medicamentos. Estas são as áreas específicas que os deslocados internos identificaram como sendo prioritárias.
Como é que funciona essa deslocação interna? A OIM tem a funcionar dentro da Ucrânia uma linha telefónica que visa prestar este tipo de apoio. Tem como objetivo explicar a determinada pessoa qual é a cidade mais segura ou mais perto, e qual é o meio de transporte disponível para essa pessoa ou grupo de pessoas se possam deslocar. São cidades ou locais onde a OIM tem a indicação de que naquele dia ou naquela semana, são mais seguros.
Depois, nesses destinos, como por exemplo em Lviv, há centros que recebem estas pessoas, mas também há o apoio de outros ucranianos que também recebem essas pessoas.
E que perspetivas têm essas pessoas?
A grande maioria deles, mais de 50%, assumem que a possibilidade de saírem da Ucrânia é ainda real. Caso o conflito se intensifique, existe entre estes oito milhões de pessoas a pretensão de sair da Ucrânia. O que significa uma coisa muito objetiva, e o próprio diretor-geral da organização, António Vitorino, já o disse várias vezes, que é a possibilidade real de vermos um novo fluxo de refugiados a sair da Ucrânia para os países limítrofes.
E nesse sentido, é importante começar a pensar em algum plano de contingência, caso aconteça um novo fluxo, porque sejamos claros: os países limítrofes à Ucrânia não têm muito mais capacidade para absorver um grande número de cidadãos.
É inevitável pensarmos que os mecanismos de solidariedade entre os países que estão na fronteira com a Ucrânia e o resto da Europa têm que passar a funcionar de uma forma muito ágil, caso isso venha a ocorrer.
Esperemos que os países europeus estejam em linha com a solidariedade europeia, e permitam receber e espalhar esse novo fluxo por todos os países da União Europeia.
A perceção que nós temos é que o conflito dentro da Ucrânia não vai acabar assim tão brevemente como se calhar algumas pessoas pensavam no início. E é preciso estarmos preparados para isso, e prepararmo-nos para um eventual novo fluxo também para o nosso país. É importante sublinhar que esta situação pode de facto ocorrer, e é importante estarmos preparados para ela.
A guerra na Ucrânia não é a única fonte de refugiados, nem acabou com diversas outras crises humanitárias. Trabalho não falta a organizações como a OIM.
No que diz respeito à resposta da OIM dentro da Ucrânia e nos países vizinhos, que foi imediata, a verdade é que o conseguimos fazer sem afetar a resposta que damos a outras crises humanitárias no mundo. Designadamente o Iémen, o Afeganistão, a Etiópia, a Venezuela, a crise dos rohingyas.
A OIM juntamente com toda a família humanitária das Nações Unidas continua a prestar apoio de forma inexcedível a todas essas pessoas.
Se olhássemos para um mapa interativo desses fluxos, o que é que víamos?
Víamos ainda um número significativo de cidadãos da Venezuela a sair para os países limítrofes, designadamente para o Brasil e a Colômbia, víamos fluxos de migrações de países da África Central para outros países da África Central; e é importante sublinhar que há um grande número de fluxos dentro do continente africano.
Mas há também fluxos para a Europa. Para as Canárias, existe um número significativo de pessoas que chegam todos os anos às costas espanholas e em especial às Canárias, e outras rotas que continuam a existir através da Itália e da Grécia provenientes da Tunísia e de outros países do Norte de África.
Esses fluxos continuam a existir, independentemente do conflito na Ucrânia.