Diz que Fernando Pessoa é uma espécie de “velho amigo”. Traduziu e integrou muitos versos e pensamentos do poeta português no seu último livro “Bússola”, vencedor do Prémio Goncourt 2015, a maior distinção da literatura francesa.
Nascido em França, mas a viver em Barcelona, onde tem um restaurante libanês, Mathias Énard considera que falta visão aos políticos europeus. Critica o facto de “não verem para lá do seu mandato” e de não perceberem que “o que acontece na Síria tem influência” no que se passa na Europa.
É sobre estes dois mundos, o Ocidente e o Oriente, que escreve num livro cuja personagem principal sofre uma insónia. É nas horas sem sono que se passa “Bússola”, editado em Portugal pela Dom Quixote.
Em “Bússola”, o personagem Franz Ritter sofre uma insónia muito fértil em que acaba a recordar a sua vida e a fazer uma reflexão sobre as culturas do Oriente e Ocidente. O que lhe interessou com esta reflexão?
Durante a noite, quando não podemos dormir, estamos sozinhos com as nossas memórias e vidas, mas também com tudo o que nos rodeia, a nossa casa, os nossos livros, as nossas lembranças. Como “Bússola” é também uma grande viagem ao Oriente, precisava de um lugar fechado para poder ir mais longe.
Precisava de um não lugar?
Sim! Precisamente, um lugar que fosse muito íntimo, onde pudéssemos entrar na consciência do Franz Ritter e onde ele nos pudesse contar toda a sua vida, como se a contasse a ele próprio. É como um lugar e um tempo muito fechado que nos dá a possibilidade de viajar para longe.
E a insónia ajuda a criar esse tempo e espaço.
A noite, o sonho, o estar acordado tem a ver com “As Mil e Uma Noites”, mas isto é como uma noite em mil. Não são mil e uma noites para contar histórias, mas uma noite para contar mil e uma histórias.
E assim viajamos até ao Oriente. O que há de interessante para si na reflexão sobre a relação Ocidente-Oriente?
Sempre foi um tema muito actual. Há uma construção de uma certa ideia do Oriente como um mito, uma alteridade, esta ideia de um mundo distante, fascinante e exótico é também uma história apaixonante. Agora, damo-nos conta de que este Oriente está muito próximo, está aqui mesmo e por todas as partes. Acho que é importante que a literatura se interesse por este tema, dadas as relações culturais entre estes dois lados do Mediterrâneo.
Hoje o mundo oriental está mais próximo porque há uma permanente comunicação, mas ao mesmo tempo há mais confronto entre culturas. Esta é uma das questões do seu livro.
Isso é pura ilusão, porque aquilo que pensamos que poderia ser um confronto mostra-nos que somos afinal muito próximos. Pertencemos ao mesmo mundo globalizado. Por exemplo, mesmo na pior violência, como a do autoproclamado Estado Islâmico, utiliza-se o Facebook e o Twitter, coisas muito globais. Isso mostra-nos até que ponto este é um só mundo. Se virmos, por exemplo, os refugiados sírios que fogem da guerra, damos conta de que Síria está muito perto. Há milhões de pessoas que chegaram à Turquia ou à Europa e os nossos políticos não vêem isto. A Síria está mais próxima do que nunca!
O que é que os políticos europeus não vêem?
Acho que os políticos sempre pensaram que o que acontecia em Damasco ficava em Damasco. Esqueceram-se que estamos hoje noutro mundo. Já não estamos na época das Cruzadas ou nos primeiros momentos do comércio internacional do século XV. Agora tudo é mais rápido e está mais próximo. Não se pode fomentar atentados nos Estados Unidos, Europa, Paris, Bruxelas ou Nice, ao mesmo tempo que chegam milhares de refugiados do Médio Oriente. O problema dos políticos europeus, pelo menos os que conheço, os franceses e os espanhóis, é não verem para lá dos seus mandatos, quer no tempo, quer no espaço. Têm dificuldades em compreender e ver que tudo está vinculado. O que se passa na Síria tem influência directa em França ou Espanha.
Aos líderes do autoproclamado Estado Islâmico também falta essa visão?
A sua política é utilizar o mundo de uma forma global para recrutar gente na Europa, para alargar a sua luta na Europa e para ter influência na política europeia. Eles, com os seus meios, têm em conta esta globalidade do mundo.
Em “Bússola” fala da cidade de Palmira. O que perdeu o mundo com a destruição desta jóia síria?
Palmira é muito interessante porque concentra várias coisas. É uma cidade no meio do deserto que é muito original, quase única. Está num oásis. Está cheia de elementos romanos, da Pérsia, mas também elementos dos árabes do deserto. Ali encontram-se e dão algo único. É muito interessante ver como algo muito original e local sofre todas estas influências. É como um cruzamento de civilizações muito importante. Foi durante anos um símbolo do nacionalismo sírio e as suas fotografias foram usadas pelo regime de Bashar al-Assad para construir um símbolo nacional com a sua história antiga. Para o Estado Islâmico isso representa o inimigo. Este tipo de cruzamento de civilizações, misturas entre árabes, romanos, persas, não lhes agrada. Acho que foram esses os motivos que os levaram a destruir os símbolos mais importantes de Palmira.
O mundo perdeu esse símbolo de encontro de culturas?
Não perdemos, porque Palmira é muito grande. Há ainda muito de pé. Há muitas memórias para se poder reconstruir um pouco o que foi destruído. O Estado Islâmico queria apagar esse encontro de culturas, a possibilidade de algo “mestiço”
O Prémio Goncourt mudou muito o percurso de “Bússola”?
É o prémio mais conhecido de França, mas também a nível internacional. Multiplicou-se o interesse sobre o livro, é como um foco, uma luz sobre o livro. Multiplica os convites a festivais e encontros. Para mim foi um ano com muito trabalho. Viagens, entrevistas… [risos]
Mas continua a ser o escritor que se refugia numa antiga casa de um padre em França para escrever?
Sim, sim! O trabalho da escrita tem algo estranho. É muito solitário. Temos de estar em casa, sem ver ninguém durante semanas. Temos de dormir bem, levantarmo-nos cedo, ter um ritmo muito são. Depois há o contrário. Não paramos de viajar, falar, conhecer gente nova. São dois lados completamente diferentes, quase opostos!
Consegue ler enquanto escreve?
Leio muito. Estou sempre a ler, mesmo enquanto escrevo.
E Fernando Pessoa é um dos seus poetas?
Sim. Pessoa é como um velho amigo. Já o leio há muito tempo e aos poucos acho que o vou percebendo melhor. Cito-o muito no livro. São quadras em que fala da vida e da morte, da melancolia, e isso interessou-me. Quis também ver o lado mais orientalista do Pessoa, que é algo menos conhecido. Através dele penso o que seria um oriente português.