Cuba sem Castros? Eis a "mudança na continuidade"
18-04-2018 - 21:44
 • Elsa Araújo Rodrigues (texto) e Marília Freitas (vídeo)

Miguel Díaz-Canel deverá ser anunciado esta quinta-feira como o novo Presidente de Cuba. É o primeiro desde a Revolução de 1959 que não faz parte da família Castro.

Depois de mais de dez anos no poder, Raúl Castro diz adeus à presidência de Cuba, aos 86 anos.

Esta quinta-feira é esperado que os 605 deputados da Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba concluam a votação para decidir quem será o próximo Presidente do país.

Se o processo terminar sem surpresas, será Miguel Díaz-Canel, o atual primeiro vice-presidente do Conselho de Estado e de Ministros, o próximo chefe de Estado. A mudança será histórica: é a primeira vez em 60 anos que o Presidente de Cuba não vem da família Castro.

Miguel Díaz-Canel é apontado como o “sucessor natural” e torna-se Chefe de Estado um dia antes de celebrar 58 anos. Nasceu a 20 de abril de 1960, já depois da chegada ao poder do histórico líder Fidel Castro. Será o primeiro Presidente do país que não participou na Revolução Cubana de 1959.

Díaz-Canel é um civil que fez carreira no Partido Comunista Cubano e diz-se que terá sido escolhido pelo próprio Raúl para lhe suceder. Por isso, e apesar de histórica, esta será uma transição de continuidade e não representará uma mudança de paradigma.

“É uma incógnita, mas a lógica, para mim, é que seja Miguel Díaz-Canel”, diz à Renascença o cubano Eduardo Bennett. Músico de profissão, vive em Portugal desde 2002 e não pensa que o novo Presidente venha a assinar mudanças radicais no país. "Vai haver continuidade porque o povo está preparado para isso", opina, antes de acrescentar que a população não quer abrir mão dos "sucessos da Revolução Cubana".

"Penso que o novo Presidente do meu país vai continuar com a mesma política e vai tentar salvar os sucessos que o socialismo conseguiu em Cuba, como a educação e a saúde gratuitas e alguns benefícios e regalias a que os cubanos têm direito”, assegura.

Victor Guerra, que esteve à frente da missão diplomática cubana em Portugal entre 1989 e 1991, diz que "não tem uma bola de cristal" para saber o que vai acontecer mas também aponta Miguel Díaz-Canel como o próximo Presidente - um que trará "uma continuidade e não uma alteração de sistema", frisa o também advogado e jornalista.

Entra sangue novo no sistema, mas o mesmo não deverá conhecer alterações estruturais. A eleição colegial de um novo Presidente acaba por ser, acima de tudo, "uma transição geracional que tinha de se materializar", como defende José Ramon Machado Ventura, guerrilheiro da revolução, hoje com 87 anos.

Tudo muda, para ficar quase tudo na mesma

“Existe uma votação, a democracia em Cuba é assim”, afiança Eduardo Bennett, de 64 anos.

É uma democracia particular, porque apesar de se basear numa votação, os eleitores cubanos não têm muito por onde escolher. Há apenas uma força política, o Partido Comunista Cubano (PCC), e o resultado é previsível pela forma como o sistema eleitoral cubano funciona, em que os eleitores escolhem os representantes que elegem o Presidente.

Não há candidatos diretos, o PCC é um partido não eleitoral e o voto não é obrigatório. No passado dia 11 de março, mais de 85% dos 8 milhões de cubanos que podem votar elegeram os delegados das 15 províncias do país que, por sua vez, escolheram os deputados da Assembleia Nacional do Poder Popular. Foram esses 605 deputados que estiveram reunidos na quarta e quinta-feiras para escolher o futuro Presidente, o primeiro vice-presidente, os outros cinco vices e os 23 membros do Conselho de Estado, o órgão máximo de Cuba.

Este sistema de voto torna os resultados previsíveis. “Seguindo os princípios políticos cubanos, quem sucede ao Presidente da República é o vice-presidente que está no poder”, explica Bennett. Como a maioria dos cubanos, também o músico radicado em Portugal não antecipa surpresas quanto ao vencedor. “Poderá haver alguma outra alteração que nós desconhecemos, mas o que pensamos é que Miguel Díaz-Canel será o próximo Presidente.”

Desde 2008 na presidência, quando sucedeu ao irmão Fidel, Raúl Castro levanta-se da cadeira mas não sai completamente de cena. Deixa de ser Presidente de Cuba ao final de dez anos no poder, um limite que ele próprio instituiu, mas continuará a ser secretário-geral do PCC até 2021, quando terá lugar o próximo congresso do partido.

O discreto fã dos Beatles

O tempo é de mudança, mas só o tempo dirá até que ponto as coisas vão realmente mudar. Certo é que o PCC terá grande influência no processo de transição do poder e será ele o mediador entre o futuro presidente do Conselho de Estado e os históricos que, para já, vão continuar à frente dos principais ramos do partido.

Entra aqui em cena Díaz-Canel, um homem discreto, conhecido como o "Richard Gere cubano", e que não podia estar mais longe de se parecer com os "revolucionários barbudos" que vieram das montanhas até Havana para conquistar o poder nos anos 1950. Antigo ministro da Educação, o sucessor dos Castro é engenheiro eletrotécnico de formação, foi professor universitário e é funcionário do PCC desde a juventude.

Começou a carreira política em 1994, quando se tornou secretário do partido em Vila Clara, a sua terra natal. Quem o conhece diz que é fã de "rock & roll" e fala na sua fama de homem que está perto do povo e que gosta de ouvir as pessoas.

“Díaz-Canel vem como jovem figura do PCC”, descreve Victor Guerra, que nas suas constantes viagens a Cuba ouviu muitos relatos sobre a personalidade do mais que provável futuro líder de Cuba. “Toda a gente o conhece porque gosta de música e aprecia bastante os Beatles”, adianta Guerra, ecoando os relatos que ouviu sobre Díaz-Canel ter criado “um espaço musical em Holguín (província oriental de Cuba) chamado ‘Submarino Amarelo’" e de como "é visto como alguém que faz reformas”.

Questionado sobre se o futuro Presidente levará a cabo reformas quando chegar ao poder, Victor Guerra é claro na resposta: “Não pode chegar a esse nível, porque continuidade é continuidade.”

Chegou a hora da geração perdida

Para além de Canel, surgem outros nomes possíveis para a liderança - que embora não pareçam tirar o lugar quase certo ao atual vice, são apostas fortes para as posições mais relevantes da futura equipa governamental.

A líder do PCC em Havana, Mercedes Lopez Acea, de 54 anos, o economista da “reforma da atualização do sistema”, Marino Murillo, de 57 anos, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Bruno Rodriguez, de 60 anos, são algumas das figuras que deverão fazer parte do elenco governativo - a chamada 'geração perdida', os cubanos que foram os primeiros a colher os frutos da revolução sem terem participado nela.

Embora Raúl Castro tenha afastado sempre a premissa de uma sucessão dinástica direta, há dois Castros que é preciso não esquecer. Um é o seu filho, Alejandro Castro, de 52 anos, alto quadro do Ministério do Interior (e considerado o arquitecto das negociações secretas com os EUA, que permitiram a abertura de canais diplomáticos depois de meio século de divórcio). A outra é a filha, Mariela Castro, de 55 anos, que dirige o Centro Nacional de Cuba para a Educação Sexual (CENESEX).

Não é de descartar que um deles ou ambos possam vir a desempenhar funções ainda mais relevantes num futuro governo.

Numa entrevista há um ano, Mariela afastou a possibilidade de vir a ser "candidata" à presidência, ainda que tenha afirmado que poderiam surgir "surpresas" no processo de sucessão (não detalhou quais).

Para Victor Guerra, é improvável que Mariela troque o seu projeto pessoal por qualquer outro lugar no gabinete do novo líder. "Conhecendo a liderança em Cuba, penso que será muito difícil [Mariela suceder ao pai] porque não está enraizada na questão política, não é como Díaz-Canel, que tem experiência partidária", explica o antigo diplomata. Hoje, a sua grande missão é "levar adiante um projecto que defende o casamento gay", acrescenta Guerra. "É a primeira vez que alguém no governo defende a comunidade LGBTI em Cuba.”

Dois pesos, duas medidas?

O sucessor de Raúl Castro tem duas grandes tarefas pela frente: unificar as moedas e reformular a Constituição cubana, ambas sem se afastar demasiado das premissas revolucionárias. As contas não são fáceis de fazer e começam por juntar os dois pesos.

Cuba tem duas moedas oficiais, o peso cubano (CUP) e o peso cubano convertível (CUC). O CUC, como é conhecido, começou a circular em 1994 e foi criado para facilitar as trocas comerciais e impor uma taxa de conversão de 13% dos dólares - que deixaram de ser aceites em Cuba em 2004 - para pesos cubanos.

Em 2013 foi anunciada a intenção de pôr fim ao CUC, que deveria ser gradualmente unificado ao peso cubano de menor valor, uma unificação que ainda não foi conseguida e que passa a ser um ónus do próximo governo.

"A primeira coisa que o Presidente terá de fazer é tratar da moeda", considera Victor Guerra, nas suas palavras "uma tarefa dura".

"É preciso escolher entre o peso e o CUC", diz o antigo diplomata, para quem a escolha é clara: "O CUC não presta, porque isso é que está a dar cabo da economia." É uma moeda que "foi criada para um período especial" em que economia cubana atravessava muitas dificuldades na sequência a queda da ex-URSS e "esse momento já acabou", ressalta. "Raúl prometeu que iria [unificar as duas moedas], mas não conseguiu.”

Como é que se poderá enfrentar esse problema? "Não sabemos, isso é um problema para os economistas resolverem", responde.

A economia precisa de reformas, mas isso só será possível se a Constituição cubana for alterada. Raúl Castro começou a ampliar liberdades, mas há ainda muito caminho pela frente.

“Na altura da revolução, em 1959, existia no mundo outra situação. Hoje a vida é diferente, é tudo diferente, e eu acho que devemos manter a linha de restabelecer as boas relações entre os Estados Unidos e Cuba”, considera Eduardo Bennett.

Ainda com Obama na presidência norte-americana, as relações diplomáticas com a ilha dos Castros pareciam estar a entrar numa nova era. Em 2016, Donald Trump chega à Casa Branca e desde então a aproximação que vinha a ser feita a Cuba parece ter parado.

“Essa aventura que o Papa pediu que começássemos quando esteve em Cuba, uma intenção começada pelo Presidente dos Estados Unidos, devia ser continuada. Barack Obama começou alguma coisa, uma abertura que agora está parada", lamenta Benett.

Com Trump na presidência, não se antevê nova aproximação - pelo menos nos próximos tempos. Pode ser que o novo líder cubano, que deverá ser mesmo Díaz-Canel, venha a retomar o diálogo com os EUA.

"Tem de haver uma mudança a favor de Cuba e dos cubanos, do mundo para Cuba”, considera o músico cubano. "Estamos no século XXI e isto não pode continuar.”