Na Noruega, continua em prisão perpétua o assassino de extrema-direita que, em 2011, matou 77 jovens num acampamento político de verão. Na sua caçada de lobo solitário queria "matar o futuro". Não queria que miúdos crescessem a defender, como os pais, uma social-democracia solidária, tolerante, plural e aberta, marcada pelo respeito pela diferença e o acolhimento aos outros.
Falhou. Entre os sobreviventes existem já membros do Governo e deputados. Não voltarei a dizer o seu nome para que o possamos esquecer. Como não direi o nome do neozelandês que esta sexta-feira, assumidamente inspirado por ele, escreveu um manifesto de ódio, onde referia a sua passagem por Portugal e outros países europeus há dois anos, e transmitiu, em direto, no Facebook, a carnificina praticada em duas mesquitas com a ajuda de alguns dos seus cúmplices.
Quinta-feira foi no Brasil. Dois jovens adultos ex-alunos de uma escola regressaram às aulas para matar quem lhes fizesse frente: alunos, professores e funcionários. De seguida mataram-se. Não se sabe qual a motivação. Apenas que, num dos casos, o atirador foi abandonado pelos pais toxicodependentes e acolhido com os irmãos pelos avós. Como sempre nestas coisas, alguém o descreveu como um menino “reservado e bom”.
O rapaz tinha fascínio por armas e caveiras e fazia avisos e ameaças de morte aos colegas via redes sociais. "Fiquem espertos!" foi a sua mensagem de despedida para os ex-colegas, segundo a revista "Veja". Ninguém ligou. Depois, talvez a inspiração tenha vindo de outros massacres, de outros casos, de outros lugares e da mútua inspiração do seu cúmplice. Balanço: 10 mortos, entre atiradores, crianças, funcionários e professores e mais de uma dezena de feridos.
Sexta foi na Nova Zelândia. Três? Quatro agressores? Fixemo-nos num, assumidamente “supremacista branco”. Os alvos da carnificina: duas mesquitas. Inspiração assumida pelo atacante preso: o triste caso de Utoya em 2011, outro na Carolina do Sul em 2015. O alvo eram “os outros”. A primeira-ministra neozelandesa teve o cuidado de dizer “aqueles outros que éramos nós”. Muçulmanos recolhidos, no seu dia santo e em hora de oração. Alvejados, em direto para o Facebook, em 17 longos minutos de puro terror, para chamar a atenção do mundo para a obra do autor: um manifesto de extrema-direita-radical, com mais de 70 páginas, cuidadosamente elaborado para teorizar o seu ódio. Balanço: meia centena de mortos e outros tantos feridos, todos muçulmanos.
Por ironia salvou-se, quase por milagre, toda a equipa de críquete do Bangladesh. O desporto chique da nobreza do século XVII que se tornou um desporto popular nas velhas colónias britânicas.
A religião, aparentemente, foi só um pretexto. Na Carolina do Sul em 2015, o miúdo de extrema-direita, também ele supremacista branco e que o “inspirou”, resolveu matar, em Charleston, na Igreja Episcopal Emanuel, oito dos seus companheiros de estudos bíblicos no final de uma aula. Motivação primeira: a cor da pele. Dias depois, os membros da comunidade diziam já lhe ter perdoado, mas a justiça do Estado condenou-o à morte depois de ainda ter ponderado a prisão perpétua. Ouviu impávido a sentença, como se já estivesse à espera.
Esqueçamos os países porque, em rigor, o massacre de Columbine, nos Estados Unidos, talvez tenha sido o mais “inspirador” no novo género desde curioso culto da ignorância e do mal, inimigo de qualquer outro culto ou religião que promova o respeito pelo outro ou o bem. Naquele primeiro massacre escolar de grandes dimensões não havia motivo além do ódio em estado puro. Tão brutal que se transformou em jogo de computador, em que os níveis sobem por intrínseca capacidade demonstrada na estratégia para matar cada vez mais.
Pensemos apenas no efeito mimético que pode ocorrer: ontem, alguns especialistas alertavam para o cuidado no tratamento das notícias do Brasil porque algures no globo existiriam muitos outros ovos de serpente prontos a eclodir ao menor sinal.
Gente em busca de se vingar da vida através da idealização dos seus momentos de glória pós-morte, ou ansiosos por zombar com a frieza imperturbável do assassino de Utoya da maior fragilidade da sociedade plural: se não quisermos ceder à maldade dos piores, teremos de os tratar como eles nunca mereceram mas como sabem que serão tratados.
Como eles nunca pensariam tratar os seus supostos inimigos. Os nossos agressores terão de ser tratados por nós segundo os nossos valores, que eles odeiam. E como fica provado até à exaustão, não é a ameaça de pena de morte ou prisão perpétua que faz recuar o agressor preparado para acabar com a própria vida.
Dar-lhes-emos direito a defesa e a um julgamento justo, não os condenaremos à morte, nem nos renderemos à sua incivilidade. Não lhes retiraremos a humanidade e continuaremos a chamá-los pelo seu próprio nome. Mas não o publicaremos, não o fixaremos, não o repetiremos. Hoje, Google e Facebook prometeram eliminar na totalidade os 17 minutos de tiroteio transmitidos em direto. A Reuters, infelizmente, umas horas passadas tinha-os recuperado, pelo menos em parte.
Resistamos a vê-los.
Esforcemo-nos por os ignorar e esquecer os que querem ser lembrados pelas suas tristes obras. Sem lhes chamarmos monstros, porque era assim que queriam ser lembrados. Como monstros sagrados da sua suposta pureza cultural. Evoquemos os heróis que lhes fizeram frente. Recordemos as vidas perdidas às suas mãos. Mas esqueçamo-los tão rápido quanto conseguirmos. Lembremos apenas o que efetivamente foram: uns pobres diabos.