Ser voluntário não é só partir para longe. Ajudar é possível onde quer que cada um esteja. A mensagem é deixada por Inês Souta, da Sol Sem Fronteiras (SolSef). Engenheira física de formação, há dois anos deixou a consultoria de tecnologias de informação para trabalhar a tempo inteiro nesta organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) ligada aos missionários espiritanos, e que promove ações de voluntariado em Portugal e em países lusófonos.
Em entrevista à Renascença e à agência Ecclesia, Inês Souta fala da experiência como voluntária. “Partir é importante para termos os olhos abertos para o mundo”, diz. Conta que a pandemia trouxe novos desafios. Mas, apesar das dificuldades, conseguiram manter os projetos que tinham a decorrer em 2020, e este verão vão retomar os que não puderam avançar o ano passado, como a missão “Ponte”, que em agosto vai enviar sete voluntários para o Brasil.
A Sol Sem Fronteiras é uma ONGD que nasceu há 28 anos, ligada à família dos Missionários Espiritanos. A pandemia obrigou a mudar muita coisa no que fazem e como fazem?
Sim, obrigou. Acho que nos obrigou a todos, a partir do momento em que tivemos de estar confinados. E numa associação que vive muito do voluntariado, do voluntariado na rua e de iniciativas de voluntariado internacional, foi necessário repensarmos as coisas.
Tiveram de interromper missões?
Não interrompemos, conseguimos manter tudo o que tínhamos a decorrer, e isso foi uma coisa muito positiva. Tínhamos, com o voluntariado missionário espiritano, quatro voluntários no terreno: um casal que estava em Cabo Verde e duas jovens que estavam no norte de Moçambique. Tivemos uma conversa séria com todos, e todos decidiram continuar o seu projeto de voluntariado, e continuaram.
Tínhamos outro projeto de voluntariado com os Jovens Sem Fronteiras, o “Projeto Ponte” – que é de curta duração, um mês, e que estava previsto acontecer o ano passado na Amazónia, durante o período de verão –, esse foi adiado para este ano. Não foi cancelado, não foi interrompido, em agosto eles vão partir. Mudou-se a localização, não será na Amazónia, mas em São Paulo. Mas vai acontecer, e os jovens vão partir.
Essa experiência de voluntariado de curta duração é importante para quem participa? Um mês ou dois, que diferença faz na vida de uma pessoa?
Eu acho que faz uma diferença muito grande, principalmente neste caso do “Projeto Ponte”, que acontece com voluntários jovens, à volta dos 20 anos. É muito importante, até numa ótica de consciencialização, de abertura de horizontes, de uma visão bastante mais alargada do mundo, de quebrar alguns preconceitos e de tirá-los da zona de conforto. Além, naturalmente, dos benefícios que é fazer o voluntariado em si, do impacto que a ação tem no terreno, acho que para os próprios voluntários é uma experiência transformadora, muito importante para criar cidadãos bem conscientes do mundo em que vivem.
Quantos é que partem este ano?
São sete voluntários acompanhados por um padre missionário espiritano.
E o que é que vão fazer no terreno?
Têm sempre a inserção dentro da paróquia onde vão estar, partilham a vida com a comunidade, e fazem geralmente ações de sensibilização na área da saúde, educação, cidadania, na área ambiental; fazem algumas atividades de ação social, por exemplo a entrega de cestas básicas, e visitas àqueles que estão mais isolados, que nesta altura de pandemia são muitos, na tentativa de não deixar nas margens e de fora os mais velhos e os mais vulneráveis. Portanto, irão acompanhar a vida comunitária e tentar apoiar a ação social desta paróquia.
O Brasil em termos de pandemia é um país complicado nesta altura…
É verdade, por isso também achamos que é uma mensagem importante: sem naturalmente correr riscos desnecessários para a saúde de todos, mas perceber que fechar fronteiras e deixar os outros lá longe com os seus problemas, não é uma solução no nosso mundo. Por isso é que no início, quando perguntaram: “que projetos é que interromperam?”, eu disse que dentro do possível tentámos manter tudo. Porque aqueles que já eram mais vulneráveis, agora ainda estão mais, e é muito importante este sinal de esperança, de se manter ligação com os que estão mais longe.
Há uma proposta de voluntariado para maiores de 30 anos, que é a “Missão Cooperar”. Também se vai realizar?
Essa missão acontece de dois em dois, ou de três em três anos, e irá acontecer no próximo ano. Seria para ser este ano, mas como era com um público mais vulnerável, para não corrermos riscos...
Ainda não estão todos vacinados, não é?
Exato. Contudo, temos uma outra iniciativa, que é o voluntariado de competências, de capacidades, em que vamos ter três voluntárias, que são professoras que já estão reformadas, e que a partir de outubro irão partir, cada uma delas por um período de três meses, e acompanhar um projeto que temos a decorrer a Guiné Bissau, com a Cáritas diocesana de Bafatá, que se chama “Capacitação Pedagógica”. Durante um ano letivo vão promover a formação contínua dos professores das três escolas desta missão. E estas três voluntárias estão prontas para partir.
Há sempre uma preparação dos voluntários que partem?
Claro, sempre, isso é inevitável. Cada programa de voluntariado acaba por ter o seu próprio plano de formação. Para o voluntariado que acontece em grupo, o grupo conhecer-se, conhecer as motivações e terem alguma vivência em conjunto, é importante para o sucesso do projeto. E depois formação nas áreas em que vão atuar, preparação dos planos de atividades. Costumamos também fazer formação certificada em Primeiros Socorros, formação em Educação para a Cidadania e Cooperação, portanto, há sempre um plano de preparação que dura um ano, pelo menos, para os voluntários que vão partir.
E nesse âmbito qual é a importância de ser uma instituição ligada aos Espiritanos? O que é que isso lhe dá de identidade?
Os Espiritanos têm esta marca humanista de não deixar ninguém de fora e estar junto das margens, e isso é muito claro também naquilo que é a missão da Sol Sem Fronteiras, sem sombra de dúvida. Se queremos viver num mundo com igualdade de oportunidades, temos de puxar os que estão mais para baixo para cima, e não esquecê-los, mesmo em contexto de pandemia.
Para além das missões internacionais, do trabalho que fazem ao nível da cooperação internacional, em Portugal intervêm muito ao nível da Educação para o Desenvolvimento e Cidadania. O que é que fazem exatamente?
Uma coisa muito curiosa deste contexto pandémico é que o número de voluntários nacionais aumentou. Acho que as pessoas perceberam que é importante doarem o seu tempo e as suas capacidades, e acima de tudo também perceberam que, às vezes, em formato online é possível ajudar. Nem tudo tem de ser presencial, é um dos ganhos de toda esta situação.
Contamos com voluntários de norte a sul do país - porque, de facto, a distância não evita que o voluntariado possa acontecer -, que nos apoiam em várias iniciativas que desenvolvemos em Portugal. Temos tanto voluntários que nos apoiam na área de Educação para a Cidadania Global, como voluntários que nos apoiam na área da Inclusão. Na área da Educação para a Cidadania Global temos vários projetos que têm como objetivo sensibilizar cá em Portugal, principalmente a juventude, para temas ligados ao desenvolvimento e à cidadania.
Tivemos a decorrer este ano dois projetos com voluntários a nível nacional, um primeiro que foi com escolas de norte a sul do país, que foi o projeto “Todos Contam”, que tinha como objetivo fazer sessões de educação financeira - falar da solidariedade que pode haver através da nossa gestão financeira - com jovens de escolas de todo o país, e aqui tivemos voluntários alunos da Nova SBE e voluntários colaboradores do Oney Bank, que nos apoiaram a dinamizar esta iniciativa.
Tivemos também, ainda há muito pouco tempo, a decorrer um outro projeto nesta área que se chama “Jovens e Inclusão”, com um grupo de 12 voluntários que nos ajudaram a fazer e a produzir um documentário que fala acerca dos jovens refugiados em Lisboa: oito jovens com estatuto de refugiado partilharam a sua história de vida, e outros jovens, tanto do norte do país como de Lisboa, ajudaram a filmar, a sonorizar, a criar os guiões para as entrevistas para este documentário que está a ser produzido, isto na área da Educação para a Cidadania Global.
Depois, na área da Inclusão, temos um negócio social que se chama “EmpoderArte”, que no fundo tenta incluir jovens vulneráveis em situação de desemprego ou subemprego em iniciativas de empreendedorismo. Neste caso, temos agora um atelier de costura em funcionamento, com duas jovens, em que fazemos produtos solidários - feitos por elas, e não só -, e esses produtos depois de vendidos acabam, por um lado, por lhes dar o seu ordenado, e por outro por apoiar os nossos projetos de cooperação internacional, projetos educativos que temos na área de cooperação em países em desenvolvimento.
Contamos com uma rede muito grande de voluntários que nos apoia neste negócio social. Temos desde costureiras que, a partir das suas casas, nos ajudam a costurar, ensinam estas jovens a fazer alguns dos artigos. Temos jovens que nos ajudam nas tarefas que parecem muito aborrecidas, mas que são muito importantes, como o embalamento dos materiais, colocar etiquetas, preparar encomendas. Temos jovens que nos ajudam a vender junto dos seus contactos e temos voluntários que também nos ajudam na divulgação dos nossos projetos e na venda destas prendas solidárias.
Nós visitamos paróquias de norte a sul do país, fazemos missas solidárias, apresentamos a associação e os projetos, e à porta temos uma banca onde são vendidos estes artigos, e isto só é conseguido graças à força voluntária.
Qual é a importância de trazer para o próprio país os dinamismos de intervenção que eram habitualmente associados à missão 'ad gentes', lá fora?
Eu acho que é muito importante, do ponto de vista de quem trabalha numa associação. Para as associações, os voluntários são uma força motora e motriz importantíssima e crucial. Muito do que a Sol sem Fronteiras consegue fazer, sem voluntários não conseguiria.
Depois, é uma forma muito bonita de testemunho. A doação do tempo é uma coisa muito importante, e pormos o nosso tempo ao dispôr de uma causa em que acreditamos é um testemunho forte, mesmo que isso seja à noite no computador, a trabalhar. Não tem de ser só o lado poético de partir, de apanhar um avião e de fazer milhas. Também pode ser a partir do meu sofá, da minha casa e com os meus contactos. Acho que é um testemunho bonito que se pode dar, que o voluntariado tem valor em todas as suas formas.
Esta é uma ONGD de jovens e para jovens. A juventude continua a ser a vossa prioridade?
A juventude é a nossa prioridade, o nosso foco, porque somos uma associação juvenil, mas ninguém fica excluído. Temos voluntários de todas as idades. Os beneficiários diretos dos nossos projetos são sempre, primordialmente, jovens, mas aqui contamos com gente de todas as idades, que nos apoia em todas as áreas em que trabalhamos.
Nessa rede. Porque é uma verdadeira rede…
É uma rede.
Quanta gente envolve?
A nível nacional, estamos a falar de 80 a 100 voluntários.
Voltando à questão dos jovens, neste tempo de pandemia será importante pensar numa intervenção específica das comunidades para ajudar os mais novos a recuperar do impacto psicológico dos confinamentos?
É muito importante. Um dos projetos que estamos a desenvolver este ano, na associação, é um programa do IDPJ, “Cuida-te+”, que tem um dispositivo para a educação da saúde mental através de várias áreas. No nosso caso, estamos a trabalhar a área da música, com a cantora Rita Redshoes. Estamos a fazer sessões de norte a sul do país, em escolas e associações, nas quais tentamos educar para a saúde mental.
Temos uma sessão sobre a regulação de stress e ansiedade, temos outra sobre a prevenção do “bullying”, uma sobre criatividade e a última sobre bem-estar emocional. Temos trabalhado com jovens entre os 12 e os 25 anos; se há muitas coisas que são difíceis de digerir para nós, neste confinamento, a quebra de rotinas, o deixar de estar na escola, o pensar que podemos ser um perigo para os familiares e os mais velhos, isso está muito presente na juventude.
Temos sentido que é muito importante esta educação para as emoções, poder falar sobre o que se está a sentir, aceitar as próprias emoções, boas ou más, percebendo o que são e fazendo alguma coisa com elas. Há quadros grandes de ansiedade e de stress em camadas muitos jovens, agravados por toda esta situação. É, sem sombra de dúvida, algo importante.
E é um projeto que vai continuar?
Vai continuar até dezembro deste ano.
Em termos pessoais, teve várias experiências de voluntariado, com os “Jovens Sem Fronteiras”, esteve no Brasil e em Angola. De que forma é que essas experiências foram decisivas para o que faz hoje?
Foram decisivas, porque em termos de formação sou engenheira física. Foi ainda na faculdade que fiz a primeira experiência de voluntariado no Brasil, em Cabo Frio, periferia do Rio de Janeiro; no meu primeiro ano de trabalho, fiz a experiência de voluntariado em Angola. Foram elas que me abriram horizontes para as desigualdades do mundo em que vivemos. Por outro lado, mostraram-me a oportunidade de, enquanto pessoa, fazer alguma diferença.
Isso vinculou-me muito, também, aos Jovens Sem Fronteiras e à associação Sol Sem Fronteiras, e fez com que há dois anos eu largasse o meu emprego, que sempre foi na área da consultoria de tecnologias da informação, e ficasse a tempo inteiro a trabalhar para esta associação.
Partir é muito importante para termos os olhos abertos para o mundo em que vivemos, para perceber que é muito importante todos estarmos engajados enquanto cidadãos, trabalhando por um mundo melhor, que todos queremos.
Percebemos que foi uma experiência marcante, que a levou a mudar de vida. Que experiência a marcou mais? Há coisas que carregamos sempre connosco, dos sítios onde passamos…
Da experiência que tive no Brasil, ficou-me muito marcado o contraste que se senti no país. Estávamos numa zona de periferia do Rio de Janeiro, Cabo Frio é uma estância balnear para ricos, mas está encostada a todo um conjunto de bairros favelados – com toda uma realidade de contextos familiares difíceis, de violência, Isso acabou por me marcar, na altura, ao mesmo tempo que via a resiliência e, acima de tudo, a alegria na vivência da fé, que senti junto da comunidade que nos recebeu. Foi o que mais me ficou.
De Angola, em 2008, já estávamos num país em paz, há anos, mas impressionou-me ainda ver as marcas da guerra, em muitos sítios, cidades que foram bastante marcadas… Isso ainda se via.
Das experiências de voluntariado, o que fica são as coisas boas. A gente lembra-se sempre é das pessoas, dos momentos partilhados, da alegria e da generosidade com que os voluntários são recebidos. Mesmo quando é por um curto tempo ou quando a língua é uma barreira. Em Angola, apesar de o português ser a língua oficial, as pessoas acabam por falar umbundo, o que para mim era chinês. Muitas vezes o contacto com as pessoas era complicado, mas há sempre uma grande alegria em receber visitas, o que sublinha esta importância de estar, de não deixar de partir, de não ficar ao longe, mesmo dos que estão mais longe. Essa é uma mensagem que trouxe da experiência de voluntariado.
Disse há pouco que o voluntariado cresceu, apesar da pandemia. Que mensagem deixa a quem nunca fez voluntariado?
Deixo o convite de passarem pelo nosso site, conhecer um pouco melhor a nossa associação. Qualquer que seja o talento da pessoa, o tempo que tem para dar há de sempre ser útil, quer seja a divulgar o trabalho que é feito, os produtos solidários, a comprá-los, a ajudar na escrita de artigos, na dinamização das redes sociais, embalar artigos em casa, falar com a paróquia para lá receber uma missa solidária.
Há um espetro tão alargado do que se pode fazer, desde algo pequeno, que ocupa pouco tempo, a uma partida, que possa demorar um mês ou um ano para um voluntariado internacional, há escolha para todos. E digo-vos que faz toda a diferença, portanto arrisquem.