“A justiça é sempre vítima das perceções”: entrevista ao presidente do TAD
09-04-2024 - 06:45
 • Hugo Tavares da Silva

José Mário Ferreira de Almeida, advogado especialista em Direito Administrativo, é árbitro desde o início da atividade do Tribunal Arbitral do Desporto e está à frente daquela entidade desde 2019.

A justiça desportiva – pautada por sentenças, anulações de castigos e consequentes recursos – está sempre debaixo dos holofotes no caldeirão chamado futebol português, raramente pacificado. Para explicar o porquê de algumas decisões e descascar as camadas que revestem a perceção pública relativamente a determinados casos, como o episódio de racismo com Moussa Marega, a morosidade em dossiers como os de Adán e Feddal e ainda o levantamento da suspensão ao treinador de futebol feminino Miguel Afonso, condenado por assédio sexual, o presidente do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) deu uma entrevista a Bola Branca, na qual sugere, entre outras coisas, que, em certos processos de pequena escala económica e afim da redução das custas, seja aplicado um sistema de árbitro singular.

José Mário Ferreira de Almeida, advogado especialista em Direito Administrativo, é árbitro desde o início da atividade do TAD, em 2015, e está à frente daquela entidade desde 2019. No passado, foi secretário de Estado adjunto e do Ordenamento do Território do XV Governo Constitucional (2002-2003) e presidente da Assembleia Municipal de Lamego (2006-2012).

O TAD vai organizar o primeiro Congresso de Justiça Desportiva em meados de maio. Qual é a finalidade e porquê agora?
É um evento que estava programado para os anos em que ocorreu a pandemia, não foi possível por causa dessa situação. Vamos finalmente encontrar um espaço para debater com especialistas em matéria de justiça desportiva aquilo que é o modelo que temos e o modelo de justiça desportiva que queremos. É uma matéria que tem sido discutida fora de espaços onde deve ser discutida com seriedade. Vamos fazê-lo no dia 16 e 17 de maio, na Faculdade de Direito de Lisboa, no auditório. Esperamos que seja, de facto, um espaço de debate de temas fundamentais para a afirmação de um sistema que precisa de ser avaliado naquilo que efetivamente provou valer e aquilo que necessita de ser aperfeiçoado. O grande objetivo é esse: o aperfeiçoamento do sistema que temos.

Como imagina essa afinação?
Há uma proposta entregue ao governo há uns anos, pelo Conselho de Arbitragem Desportiva, que é o órgão de supervisão do tribunal, que propõe várias modificações à lei que enquadra o estatuto do Tribunal Arbitral do Desporto. Em alguns aspetos, detalhe, noutros mais estruturais do tribunal. Essa proposta não mexe, digamos assim, com o esqueleto fundamental daquilo que é a estrutura do tribunal e as funções do tribunal, aquilo que é o estatuto do tribunal.

O tribunal é um órgão jurisdicional independente dos poderes político, desportivo e económico. Esse estatuto é, no entender dos órgãos do tribunal, para manter. Agora, há aspetos em que o funcionamento ao longo destes quase 10 anos do tribunal revelaram merecer aperfeiçoamento, no estatuto dos árbitros, eventualmente no processo de escolha dos árbitros, assim como no próprio processo no sentido de incrementar eficiência do trabalho do tribunal. Enfim, e outros aspetos mais técnicos do funcionamento dos colégios arbitrais, mas também aspetos que dizem respeito à economia do processo. Uma crítica recorrente, e justa, é a excessiva carestia dos processos arbitrais. Temos de fazer alguma coisa por isso e há alterações que podem ser introduzidas na Lei do TAD com esse objetivo.

Essa é precisamente uma das críticas recorrentes e ia fazer uma provocação perguntando se não o inquietava existir o sentimento de que a justiça não é para todos. Há a sugestão que este poderia ser um tribunal virado só para o futebol e criava-se um só para modalidades, para ser mais viável ou pelo menos mais acessível. Como vê esse tipo de sugestão?
Bom, essa é uma crítica recorrente, a de que o Tribunal Arbitral do Desporto é um tribunal arbitral do futebol. Diz-se isso por essa razão, porque só o futebol pode suportar as custas arbitrais, e diz-se isso também por outro motivo: pelo número de processos ligados ao futebol que são resolvidos no Tribunal Arbitral do Desporto. Quanto a este último aspeto, diria que o número dos processos reflete a importância que o futebol tem como desporto, antes de mais, como atividade competitiva e como indústria. Basta abrir os jornais de hoje mesmo, os desportivos, para perceber que mais de 90% das notícias são sobre futebol. Portanto, seria estranho que, num ambiente competitivo como é o ambiente do futebol, isso não gerasse conflitos e que esses conflitos não viessem gerar também maior peso no universo dos processos que caem no TAD.

Outro aspeto é esse que referiu, uma crítica recorrente, no sentido de considerar que se deveria, na prática, dividir o tribunal em duas secções, uma secção para o futebol – em que o Tribunal Arbitral do Desporto deixaria de ser de desporto em geral para ser de futebol, uma crítica que não é feita só por juristas, é feita até por responsáveis do futebol – e outra destinada às outras modalidades. É uma coisa que não faz sentido vista desse lado porque, ao contrário do que se possa pensar, ninguém fica à porta do tribunal por falta de meios, tal como ninguém fica à porta dos tribunais judiciais do Estado por essa razão. O sistema de apoio judiciário que vigora para os cidadãos em geral no recurso aos tribunais do Estado é exatamente o mesmo que vigora para o Tribunal Arbitral do Desporto. Agora, admito que a perceção de que temos um tribunal caro possa afastar eventuais agentes desportivos, clubes de menor dimensão, com receio e por desconhecimento de que existe este apoio à entrada no tribunal para defesa dos seus direitos. Admito isso. Agora, como digo, há reformas que podem ser introduzidas com alguma facilidade, devo dizer, se essa for a vontade do legislador, no sentido de baixar os custos de acesso ao tribunal.

Quer concretizar?
Todos os processos têm um valor económico que determinam o montante das custas e as custas são, na prática, a soma de três valores: os encargos administrativos com o processo, os honorários dos árbitros e a taxa de arbitragem, que é a taxa paga pelo impulso processual. Ora bem, há aqui uma componente que pesa: os honorários dos árbitros. Para processos de pequena escala económica, não faz sentido a regra que a lei prevê da colegialidade. Os tribunais arbitrais que se constituem no âmbito do TAD são sempre tribunais coletivos, portanto isso determina necessariamente que há um valor de honorários de árbitros a multiplicar por três. Ou quatro, pode haver a hipótese, quando há contrainteressados, de haver quatro árbitros e não três como é mais habitual.

Em processos de pequena monta ou para processos disciplinares em que a sanção não tem particular significado, não faz sentido, antes de mais, a regra da colegialidade. Sei bem que o método arbitral pressupõe duas coisas: o direito ao juiz, que aqui é um árbitro especializado na matéria, e o direito à escolha do juiz. É aquilo que na prática caracteriza o método arbitral e é fundamentalmente a diferença que permite distinguir o que se passa num tribunal comum e num tribunal arbitral, é esta possibilidade de as partes poderem escolher o julgador, em parte. Para processos de pequena monta, isso não tem de ser assim. Ao nível dos tribunais do Estado, já foi assim nos tribunais administrativos. Deixou de ser assim por razões de eficiência, mas também por razões de economia. Uma das reformas que podia contribuir para a redução dos encargos com o processo, o encargo das partes, podia ser efetivamente passarmos para o sistema que vigora nos tribunais administrativos: o sistema de árbitro singular, que seria escolhido também com o concurso das partes, como tem de ser para que isto se continue a chamar arbitragem.

Há não muito tempo, mais de 90% dos processos do TAD diziam respeito ao futebol. Pode confirmar?
Oitenta e dois por centro, em 2023, são casos relacionados com o futebol.

Há sensivelmente dois anos, o presidente do Comité Olímpico, uma entidade intimamente ligada ao TAD, escreveu que este tribunal nasceu com muitos anticorpos políticos e corporativos. Partilha dessa visão? De que estamos a falar?
Não partilho totalmente dessa visão e por uma razão simples. Já que estamos a falar de desporto e de um tribunal do desporto, nós temos um desporto não oficial, não federado mas muito comum, que é o tiro à lei. O tiro à lei é uma prática muito comum entre nós e que consiste nisto: toda a gente reclama pela lei. Depois da lei promulgada e de entrar em vigor, toda a gente critica a lei e poucos se preocupam em saber o que vale e o que não vale essa lei. Aconteceu isso com a Lei do TAD e acontece isso com praticamente todas as leis neste país. Isto é negativo? Não é negativo, fomenta e dinamiza um debate que tem de haver, sobretudo nos primeiros anos de vigência das leis. É importante que as pessoas debatam, critiquem, mas é importante também que conheçam a lei que criticam e debatem.

Não estou a dizer que é o caso do senhor presidente do Comité Olímpico de Portugal, que conhece bem a lei porque esteve na sua génese. O que ele quer dizer e isso eu partilho é que, de facto, até por força da circunstância de a primeira tentativa de instituir o Tribunal Arbitral do Desporto ter sido sujeito a um escrutínio do Tribunal Constitucional, que considerou, num aspeto que agora também está em cima da mesa, o sistema de recursos e a morosidade que provoca esses sistema de recursos, e considerou a solução inicial inconstitucional duas vezes. Isso provocou de facto uma série de críticas dirigidas designadamente a baixos níveis de eficiência do tribunal. Essa crítica é desmentida pelos números, ainda que os números aplicados à justiça sejam analisados de uma maneira enviesada. De qualquer forma, os números que caracterizam ainda hoje a atividade do TAD não são números que ponham em causa a opção do legislador quando quis criar um tribunal arbitral especializado em matéria desportiva, bem pelo contrário. Se compararmos as pendências e o ‘disposition time’ dos processos nos tribunais administrativos e no Tribunal Arbitral do Desporto, o tribunal felizmente está muito longe de atingir o tempo de pendência que ainda hoje é verificado nos tribunais onde estes problemas eram apreciados e julgados antes de 2015.

Já lá vamos à morosidade dos casos. Há uma perceção de que o TAD contraria com alguma frequência o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol. Vê problemas ou incongruências na forma de atuar deste órgão?
Não. Como imagina, sou um observador atento daquilo que se vai produzindo no TAD e portanto não partilho dessa ideia. Há decisões que apoiam ou confirmam as decisões dos órgãos disciplinares da Federação Portuguesa de Futebol como de outras associações desportivas e há decisões que, apreciando do ponto de vista jurídico, porque é só esse que está em causa quando se aprecia uma decisão, designadamente uma decisão disciplinar, infirmam aquilo que é a decisão do Conselho de Disciplina, mas é para isso que existe efetivamente o Tribunal Arbitral do Desporto ou qualquer tribunal: apreciar do ponto de vista jurídico a legalidade, a licitude, das decisões tomadas pelos órgãos de disciplina, que são na prática órgãos administrativos. Tribunal é o Tribunal Arbitral do Desporto e a quem compete fazer a revisão dos critérios jurídicos adotados pelos órgãos de disciplina. Portanto, quanto a isso, tudo normal, há decisões confirmadas, há decisões infirmadas no Tribunal Arbitral do Desporto, como nos tribunais em geral em Portugal ou em qualquer parte do mundo.

Há um histórico de anulações de castigos a dirigentes por críticas a arbitragens. Onde é que está a linha vermelha para o TAD? É importante para a perceção pública para se perceber porque certas coisas ditas são desvalorizadas juridicamente. Quando é que a liberdade de expressão pisa o risco?
Não há linhas vermelhas. Há uma apreciação das circunstâncias concretas de facto e uma consideração que o Direito diz sobre aquilo que devem ser os limites colocados à liberdade de expressão e aquilo que, ultrapassados esses limites, são ilícitos disciplinares. Mas não há uma regra universal aplicável a todos os casos. Cada caso é um caso, tem de ser analisado no seu circunstancialismo, e um processo arbitral, tal como um processo judicial, tem duas partes: uma avaliação das circunstâncias de facto e uma aplicação do Direito a essas circunstâncias de facto. No caso da tensão sempre existente entre a necessidade de respeitar a ética desportiva, também na expressão, e a liberdade de expressão, esta tensão existe sempre. Existe sempre, existe sobretudo num ambiente emotivo, que não explica tudo nem justifica tudo, ao contrário do que muitas vezes se pretende passar, mas no ambiente emotivo, do desporto em geral, do desporto competitivo e em particular do futebol, esta tensão revela-se muitas vezes na circunstância do caso concreto.

Há circunstâncias que caem e o tribunal tem-nas declarado no âmbito daquilo que é a liberdade de expressão, que é o valor fundamental, sendo certo que é muita fina a película que divide a liberdade daquilo que é o abuso de direito, o tribunal tem-no afirmado. Há alguns colégios arbitrais com mais sensibilidade para a liberdade de expressão, para a prevalência da liberdade de expressão e colocam essa película mais do lado da liberdade de expressão. Aliás, subscrevendo uma corrente que assinala justamente um contexto em que determinadas expressões são proferidas e outra que considera que é fundamental, até para garantir a paz desportiva, colocar limites mais aquém daquilo que é considerado consentido como expressão de sentimentos, emoções, no âmbito da prática desportiva, sobretudo na prática desportiva competitiva, que tem associados interesses económicos que muitas vezes acentua esse clima.

Quando falei no pisar de risco da liberdade de expressão foi no sentido de haver insultos como “fez vista grossa”, dirigindo-se a um árbitro, ou “obrigaste o teu colega a marcar”. Isso não é igualmente danoso para a dignidade da pessoa?
Depende das circunstâncias trazidas ao conhecimento do tribunal e da avaliação que o tribunal faça dessa circunstância, sendo certo que estamos no limite, como diz e bem, onde muitas vezes essa tal película é uma película fina.

Estes exemplos que dei deram lugar a castigos anulados, por isso dá a sensação de que esse tipo de decisão do TAD legitima o ambiente ou as pressões aos árbitros. É justo dizer isto?
Não, não creio que seja justo. Provavelmente encontrará no acervo de decisões do TAD decisões no mesmo sentido e nos recursos das decisões outras dos tribunais superiores da jurisdição administrativa que vêm infirmar essa leitura. Tudo normal nessa matéria.

Há também anulações em temas relacionados com adeptos e comportamentos do público, nomeadamente quanto a interdições de estádios. Tivemos os tais casos do alegado apoio do Benfica a claques não legalizadas, o das crianças feridas por petardos num jogo do Porto e ainda um episódio de racismo no São Luís, em Faro. Não teme que daí resulte uma ideia de impunidade, de que vale tudo nos estádios de futebol? Mais uma vez falamos em linhas vermelhas.
Temo que se instale essa ideia...

E a perceção pública importa, não é?
E temo que a perceção pública estimule, muitas vezes, comportamentos que são absolutamente reprováveis e absolutamente antijurídicos do ponto de vista daquilo que é a preservação do valor fundamental do desporto, que é a ética, que é um valor que se desdobra noutros valores e que é o punível vincula designadamente os adeptos, mas vincula sobretudo as entidades promotoras do espetáculo no sentido de prevenirem, antes de mais, e reprimirem e evitarem esse tipo de comportamentos.

Há uma coisa que eu sei: essa perceção não é fomentada pelas decisões do TAD. Há uma coisa que é fundamental: o TAD limita-se, como qualquer tribunal, a aplicar a lei. O TAD não faz a lei, não constrói a lei. Portanto, há muitas vezes aspetos que não são considerados e não são percepcionados como a atuação do TAD no sentido de preservar esses valores que são postos em causa sempre que há comportamentos absolutamente reprováveis, até do ponto de vista da integridade física de quem assiste ao espetáculo, mas isso não resulta da atuação do TAD. O TAD não constrói a lei e os regulamentos, portanto há alguma coisa a fazer a montante daquilo que é a atividade do TAD. Agora, estou de acordo consigo, de facto é uma matéria à qual se tem de dar atenção, até para fazer prevalecer a lei.

Presumo que fique desconfortável com algumas conclusões ou decisões do TAD se anulam castigos que parecem tão óbvios.
O sentimento do presidente do TAD, nessa matéria, é absolutamente indiferente. A preocupação não será, mas o sentimento é indiferente.

Deixa-me ir ao caso Marega, em que o jogador do FC Porto foi vítima de insultos racistas em Guimarães. É um caso, parece-me, paradigmático: o Vitória foi punido com três jogos à porta fechada e até acabou por cumprir o castigo durante a pandemia, mas o TAD veio depois anular a decisão porque não ficou demonstrado que o Vitória promoveu ou sequer consentiu ou tolerou os cânticos racistas. Como é que propõe que se penalize e erradique o racismo nos recintos?
Vai-me perdoar, mas não vou comentar casos, até porque seria indelicado para os meus colegas árbitros que julgaram e avaliaram a situação em concreto. Percebo a questão.

Podemos falar no abstracto, mas é um tema que leva o jogador a reagir e que foi óbvio para toda a gente, há vídeos.
Eu não conheço a prova que se fez, sei que o tribunal não decide sem avaliar, escrutinar, aquilo que foram os factos trazidos ao seu conhecimento. E são as partes que trazem os factos ao conhecimento. Não há factos, em princípio, de conhecimento oficioso do tribunal. Tal como o tribunal não constrói a lei, não constrói o facto, nem julga por presunção. Os factos são trazidos ao tribunal e nesse caso, e não estou a fazer nenhuma avaliação subjetiva nem objetiva daquilo que foi decidido, estou somente a dizer que essa solução dada nesse caso em concreto foi o resultado de uma avaliação dos factos.

Sendo certo que não me passa pela cabeça que os membros do tribunal não tivessem em consideração o valor fundamental que estava em causa, portanto não há aqui nenhum propósito, nem nenhum pré-conceito, no sentido de favorecer práticas racistas ou xenófobas, bem pelo contrário. Basta ler boa parte das 800 decisões tomadas para perceber que é uma preocupação permanente do TAD combater esses valores negativos que corroem aquilo que são os princípios fundamentais afirmados na lei, bem afirmados e sublinhados na lei.

A verdade é que ao fim do dia a perceção que passa é essa, ecoado pela imprensa e comunicação social obviamente, mas é um caso bastante grave.
Mas a justiça é sempre vítima, como sabe, das perceções. Então, a justiça desportiva onde normalmente as decisões são avaliadas pelos olhos da natural parcialidade... Quando a decisão não é favorável aos nossos, ao nosso clube, aos jogadores da nossa eleição, do nosso gosto, a decisão é má. Muitas vezes é assim, é esse o critério.

Este é um tema da sociedade. O desporto podia ser um veículo de mudança.
Podia e devia. E acho que o tribunal tem feito um esforço nesse sentido. Claro que muitas vezes se isola aquela decisão cuja perceção é mais drástica, mais impactante, mas esquecem-se depois das 799 decisões. Dessas, 10 ou 15 que, feita outra avaliação de facto porque os factos trazidos ao tribunal foram outros, decidiram em sentido contrário. E há decisões em sentido contrário confirmando ou até agravando decisões disciplinares que visam punir comportamentos dessa natureza.

Outra decisão controversa prende-se com o caso de Miguel Afonso, o treinador do futebol feminino que foi condenado pelo Conselho de Disciplina da federação a 35 meses de suspensão por assédio sexual. Por indicação do TAD, e corrija-me se estou enganado, a amnistia papal levantou a suspensão do treinador. Não teme que uma decisão desta natureza mine a confiança das pessoas no tribunal e na justiça?
A resposta a isso é fácil porque a decisão não é do TAD. O TAD limita-se a declarar que ocorre o efeito legal, portanto a crítica, se é uma crítica que é justo dirigir, é justo dirigir ao legislador que instituiu uma amnistia e não ao tribunal que se limitou a aplicar independentemente do sentimento dos senhores juízes árbitros que apreciaram a questão.

Mas é um caso especialmente incompreensível, ou não considera assim?
Não nesta perspetiva.

Como cidadão.
Como cidadão, que despe agora o casaco de presidente do TAD, impressiona-me, naturalmente, o efeito e o resultado. Mas, como digo e vestindo novamente o fato de presidente do TAD, tenho de dizer que o TAD limitou-se a aplicar, como todos os outros tribunais, uma lei da Assembleia da República que declarou amnistiados determinadas infrações, esta incluída.

Voltando um pouco atrás, o TAD levou sensivelmente um ano e nove meses a deliberar no caso de Moussa Marega. É essa uma das críticas mais severas ao tribunal. No caso de Antonio Adán, do Sporting, o TAD demorou quatro meses, já o guarda-redes tinha perdido o tal dérbi com o Benfica. Também um castigo a Zouhair Feddal, do mesmo clube, foi revertido quando este já tinha abandonado Portugal. Presumo que vê esta morosidade como preocupante. Como é que se resolve efetivamente no dia a dia?
Há algumas reformas, como digo, que podem contribuir também para maior celeridade. Diria que a celeridade é um valor, mas não é um valor absoluto. O valor absoluto é a justiça. O tempo no desporto tem outra dimensão, digamos assim, e considera-se que o TAD atrasa decisões. Eu não estou, em geral, insatisfeito com o tempo médio de decisão do TAD. Estou, aliás, muito satisfeito. Mesmo considerando o conjunto de decisões de aplicação da recente lei da amnistia, que contribuiu para uma redução do prazo médio de decisão arbitral, devo dizer que em 2023 este prazo foi inferior a seis meses. Foi inferior a 140 dias, em processos com alguma e muitas vezes grande complexidade técnica.

Mas devo dizer também que é um processo que se pauta pelas regras do processo justo e equitativo, que é um jargão que os juristas utilizam para dizer que ninguém à partida tem razão. A razão é dada ao tribunal mediante o processo contraditório que é aberto e que dá às partes a possibilidade de exporem ao tribunal os factos que lhes dão razão, dando à outra parte a possibilidade de demonstrar que assim não é. Muitas vezes, o ritmo do processo até chegar à decisão depende menos do tribunal, depende mais das partes, sendo certo que o tribunal está vinculado a uma coisa fundamental, que é o princípio da prova, que é uma manifestação do princípio do contraditório. Não é possível, não é admissível, não seria justo, não seria um tribunal aquele que abrisse um processo hoje e o acabasse daqui a 15 dias. Não faz sentido, alguma coisa estava mal. A avaliação da prova depende da disponibilidade das partes, depende do cumprimento das regras do processo, porque só assim teremos um processo justo e equitativo. Mas devo dizer que há processos que são decididos em cinco, seis, sete dias. O prazo médio de decisão das providências cautelares, um facto que nunca será perceção porque não é notícia e não é divulgado, oscila entre 15 e 19 dias, o que não tem par em qualquer manifestação da justiça seja ela qual for, justiça penal, civil ou administrativa.

Há outra perceção, arrisco, e queria perguntar-lhe se sente isso, que há clubes, entidades ou órgãos que usam a justiça para realmente adiar um castigo, com a entrada de um recurso, com os tais efeitos suspensivos. Deixa-o desconfortável? Acha que é uma realidade?
Não me deixa desconfortável na medida em que se está a exercer um direito, portanto quem tem esse direito à sua disposição e o exercita não pode ser censurado por isso. Seria um paradoxo. Agora, o que me choca é outra coisa: é que sejam muitas vezes esses a criticar a morosidade da justiça desportiva.

Quer concluir?
Conclui.

Está a dizer que entopem a justiça com casos pequenos ou que realmente a ideia é entupir para...
A minha ideia é de que quem honestamente está preocupado com a morosidade da justiça desportiva fará os possíveis para não introduzir no TAD processos que sabe que só têm um efeito: adiar a execução da decisão, designadamente a decisão disciplinar. Quem estiver preocupado com o que diz, corresponde à perceção, exercerá o direito que tem.

O tribunal já é autossuficiente?
O tribunal, como lhe disse, é um órgão jurisdicional independente de todos os poderes, designadamente o poder do Estado. Andou bem o legislador quando, para garantir essa independência, formulou um sistema de financiamento que depende exclusivamente das custas arbitrais. Portanto, o Estado não financia o tribunal. O tribunal vive daquilo que é a sua produção, que é remunerada através das custas arbitrais. Isso garante, de facto, a independência do tribunal, mas não garante a tranquilidade e a sustentabilidade financeira do tribunal, sobretudo porque há situações em que as custas arbitrais não são pagas, por diversas razões. Ou porque são contestadas, ou simplesmente porque as partes que são condenadas a pagá-las não as pagam, ou porque o clube ou a SAD entrou num processo de recuperação e a decisão foi no sentido de perdoar parte daquilo que são as dívidas do clube ou da SAD.

O tribunal vive sempre nesta permanente dificuldade de encontrar meios de subsistência para garantir a sua independência, não digo a sua existência porque com mais ou menos sacrifício vamos vivendo. Mas também estimula-nos a imaginação no sentido de encontrar formas de tornar mais económico o funcionamento do tribunal. Recorremos às novas tecnologias e os processos tramitam sem papel e isso permite obviamente economias ao tribunal, mas também às partes, naturalmente. Temos um quadro de pessoal muito reduzido e fazemos os possíveis para que os meios sejam o menos dispendiosos possível para compensar esta dificuldade que é genética, vem desde o inicio do tribunal há 10 anos, para a qual não foi encontrada nenhuma solução. É um dos aspetos que temos de pensar numa futura reforma da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto.

Numa entrevista ao “Público”, em 2017, o antigo presidente do TAD, Luís Pais Antunes, referia que era expectável naquela primeira fase verificarem-se recursos para o Tribunal Central Administrativo Sul, não só para estabilizar a jurisprudência como para testar a bondade das decisões do TAD do ponto de vista jurídico. Quão frequente acontecem esses recursos para a justiça administrativa e com que olhos vê esse cenário?
São significativos, os recursos a decisões do TAD. Não discuto as motivações, muito menos as motivações de quem recorre, julgo que o faz com convicção de que a razão que lhe foi recusada pelo TAD existe e portanto o processo deve ser reexaminado noutra instância, numa instância superior de um dos tribunais superiores da jurisdição administrativa. Mas devo dizer que os números não impressionam, nem impressionam do ponto de vista do número de recursos, nem impressionam no número de decisões que confirmam ou infirmam as decisões do TAD. Acho que desse ponto de vista é tudo normal. Não seria assim em 2015, 2016, 2017, quando o tribunal começou a funcionar, onde de facto havia essa necessidade de verificar se as decisões do TAD seguiam uma linha jurisprudencial mais ou menos constante. Creio que essa fase já passou e creio que estamos numa fase de normalização. Se não houver abuso do direito de recurso, creio que a tendência será para diminuir o número de recursos jurisdicionais, até porque muita da jurisprudência, muitas vezes confirmando aquela que é criada no âmbito da atividade do TAD, se vai consolidando ao longo dos tempos.

Vê algumas fissuras na lei do TAD?
Não. Comecei esta entrevista por lhe dizer que o grande pedido que os órgãos do TAD fazem ao poder político, ao legislador, é no sentido de aperfeiçoar o modelo que, na minha opinião pessoal, demonstrou provar servir os interesses da administração da justiça. Agora, há aperfeiçoamentos a fazer. Há uma longa lista que foi entregue ao pré-legislador, que é o governo, o legislador é a Assembleia da República. Estamos a falar de um organismo que faz parte do universo dos organismos que administram justiça e essa é competência da Assembleia da República. Aliás, a Lei do TAD é uma lei da Assembleia da República. É uma longa lista de aperfeiçoamentos, mas, como digo, são aperfeiçoamentos no sentido de incrementar os níveis de eficiência do tribunal. Olhe, muitas vezes resolver algumas coisas que são também no domínio das perceções mas que têm algum fundamento e que também estimulam a necessidade de repensar essas soluções, designadamente essa que falei há pouco: a obrigatoriedade de tudo ser resolvido através de um tribunal coletivo.

A entrada do novo governo atrasa tudo?
Não, não creio. Acho que este é um debate que vai demorar meses. A ideia do congresso é também dar um contributo para que este tempo de debate chegue com a participação dos órgãos do poder político, designadamente o governo. Mas não creio que esse seja um factor, enfim, decisivo para aquilo que se espera que venha a ocorrer nesta legislatura.

O senhor é árbitro deste tribunal desde 2015. Se quiser com ou sem casaco, ia perguntar-lhe como vê o trajeto desta instituição nos últimos quase 10 anos?
Eu sou dos que consideram que a opção do legislador foi correta. Não por ser árbitro, até porque não o sou, fui árbitro durante quatro anos, a lei não obriga a que o presidente do TAD integre colégios arbitrais, portanto não julgo, não arbitro, mas é essa a decisão, até porque há alguns poderes de intervenção processual que a lei reconhece ao presidente do TAD para que ele tenha liberdade de intervir nesses processos, entende-se que o presidente do tribunal não deve integrar colégios arbitrais. Estes 10 anos serviram também para avaliar aquilo que está menos bem na lei e que precisa de ser melhorado.