O Senado americano é raramente um palco de surpresas e, na terça-feira, o status quo manteve-se. Apesar de serem a minoria, os republicanos liderados pelo senador Mitch McConnell travaram uma proposta de lei que permitiria um acesso facilitado ao voto nos Estados Unidos, atirando mais achas para o debate sobre o impacto do filibuster na política americana.
A proposta, desenhada pelos democratas e pelo Presidente Joe Biden, seria a maior reforma das leis eleitorais em mais de meio século, com um impacto semelhante à lei dos direitos civis dos anos 60.
No entanto, no Senado, qualquer partido pode travar legislação antes desta sequer ser votada, através do filibuster, que obriga a uma maioria de 60 votos em 100 possíveis.
Mesmo com 50 votos de todos os democratas a favor - incluindo do senador Joe Manchin, que se opunha à proposta até esta ser suavizada para poder contar com o seu voto - e o voto de desempate nas mãos da vice-presidente dos EUA, a democrata Kamala Harris, a medida caiu por terra.
O ataque ao direito ao voto das minorias continua
A proposta, conhecida como "For The People Act" (do inglês, "Decreto Para O Povo"), era uma resposta às restrições ao voto criadas por republicanos ao nível estatal.
Em estados controlados pelos conservadores, têm sido aprovadas medidas que limitam o acesso ao voto antecipado ou ao voto por correio - duas formas que foram uma grande mais-valia na vitória de Joe Biden nas últimas eleições presidenciais e dos democratas na eleição especial na Geórgia.
É precisamente na Geórgia onde as políticas de limite ao voto se tornaram mais polémicas. Joe Biden ganhou de forma surpreendente o estado contra Donald Trump, apesar da região ser tradicionalmente conservadora.
Em março, e depois de todas as tentativas de Trump anular, contestar ou reverter o resultado das eleições, o senado regional ainda controlado pelo Partido Republicano, passou à "prevenção", para que um candidato republicano não voltasse a ser prejudicado pela ampla liberdade de voto.
Por exemplo, limitaram o tempo para votar antecipadamente e o voto por correio, foi proibida a distribuição de água nas filas de voto, foi impedida a identificação através de cartões de estudantes e alterou-se a certificação de resultados eleitorais para as assembleias legislativas, controladas pelos republicanos. Até o número de pontos de voto foi drasticamente reduzido.
Todas estas medidas afetam particularmente a comunidade negra americana: tradicionalmente mais precária e a viver em comunidades mais densas, qualquer impedimento ao voto obriga a uma maior concentração em pontos de voto, longas filas - nas últimas eleições, houve quem esperasse dez horas para votar, e as eleições são sempre a uma terça-feira - e é comum a dificuldade em ter identificação requerida.
De notar que cerca de um terço da população na Geórgia é afro-americana e o voto da comunidade negra e de outras minorias étnicas pende mais para os democratas, pelo que limitando o voto destas minorias irá prejudicar muito mais os democratas.
Em 2020, 88% da comunidade negra votou a favor de Joe Biden e 90% votou nos dois senadores agora democratas do estado, Jon Ossoff e Raphael Warnock, uma revolução política num estado tradicionalmente republicano que ajudou os democratas a assegurar o controlo da Casa Branca e do Senado.
À espera do senador do centro
A "For The People Act" foi travada, mas a batalha até chegar à discussão no Senado foi difícil, mesmo dentro do Partido Democrata. O senador Joe Manchin, o mais acérrimo centrista na câmara alta do Congresso americano.
Manchin opôs-se a muitos pontos da proposta inicial, confiante num diálogo com os republicanos e cético em relação a questões progressistas.
Por exemplo, os democratas queriam implementar a nível federal um período de 15 dias de votação antecipada e o fim do redesenho dos distritos eleitorais através do recenseamento da população - uma prática conhecida como gerrymandering.
O senador Joe Manchin, do estado da Virgínia Ocidental, procurou trocar as medidas por outras mais consensuais, que pudessem convencer os republicanos - nomeadamente tornar o dia de eleições em feriado nacional, garantindo uma menor abstenção.
No entanto, a aproximação aos republicanos não foi suficiente.
A minoria que controla o Senado
A derrota antecipada e previsível dos democratas deve-se à utilização dos republicanos do filibuster - um procedimento que trava qualquer legislação na fase de debate e obriga a que esta passe com 60 votos, em vez da maioria simples de 51 votos (ou 50 votos, mais o voto de desempate da vice-presidente).
Com os democratas de volta ao controlo do Senado depois da eleição especial na Georgia, o senador republicano Mitch McConnell tem feito o que se esperava - usar o filibuster a qualquer oportunidade, para travar legislação demasiado progressista.
Para muitos democratas e eleitores, a ferramenta é antidemocrática por não dar real poder à maioria eleita e deve ser morta. Mas isso é ainda mais difícil de concretizar.
Joe Manchin é conservador no papel do filibuster - considera que o debate é fundamental e todas as medidas devem ser conseguidas através de um consenso entre os dois partidos - e é contra qualquer proposta para pôr fim ao mecanismo. Outros democratas, como Kyrsten Sinema, acreditam que o fim do filibuster a curto prazo seria benéfico para os democratas, mas quando os republicanos voltassem eventualmente ao poder, daria uma oportunidade para um ataque ao acesso ao voto ainda maior.
A verdade é que a derrota da proposta de lei na terça-feira atira mais achas para a fogueira desta discussão, perante o desespero de legisladores em ver medidas constantemente travadas no Senado. Para já, o debate está a ser ganho pelos republicanos, graças à falta de união entre o Partido "Azul".