De 2019 para 2020, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) registou um aumento de 40% na violência online e, no primeiro semestre de 2021, o número de casos está próximo do total do ano anterior: 1.138 pedidos de ajuda, quando comparado com os 1.164 de 2020.
A Linha Internet Segura é coordenada pela APAV desde 2019 e tem duas vertentes: o apoio à vítima e a possibilidade de denúncia destes casos. Mais de 60% das vítimas são mulheres e as consequências deste tipo de violência pode não ter fim. Grupos organizados partilham conteúdo íntimo a toda a hora, mas este ano surgiu um grito de alerta: a “Associação Não Partilhes”.
O isolamento provocado pela crise pandémica levou ao aumento da violência em plataformas digitais. Uma violência que provoca medo e ansiedade.
Inês Marinho, 23 anos, regressa à praia da Figueira da Foz, onde passou a adolescência. As memórias vão e vêm como as ondas. “Pensava que ia esquecer, mas não esqueci. Os olhares de nojo, discriminatórios, fizeram-me ter problemas de autoestima. Sabia de pessoas na praia, a tirar fotos e a colocá-las em sites e portais informáticos e nem sabemos onde vai ter. Gosto de vir à praia, de respirar, mas não me sinto segura na Figueira da Foz, esta praia não me traz boas recordações. Eu era uma miúda e ainda são coisas que eu penso, e aqui não estou segura”, insiste, olhando o mar e recordando o bullying que sofria na escola.
“Por exemplo, usava um decote, chamavam-me nomes, comentários que ouvi a vida toda, desde que eu me conheço como menina, quase que experienciava as mesmas coisas que oiço hoje aos 23. Até tive situações de me empurrarem na escola, de me mandarem copos de água na cantina e eu era menor, não ia conseguir aguentar isso para o resto da vida. Estou-me a proteger ao não estar aqui” e foi por esse motivo que Inês deixou a Figueira da Foz há quatro anos.
Administrativa em Lisboa, foi “numa grande cidade que procurou ter paz”, mas admite não se sentir livre em lado nenhum. “Posso ir para Espanha, Itália, eu não sou livre, em qualquer lado temos medo, temos namorado, temos medo, não temos namorado, temos medo, estamos de fato de banho, temos medo, estamos na praia, temos medo. Eu não quero viver assim, nem nenhuma mulher quer viver assim”.
“Esta impunidade que se sente online tem de acabar”
Se a ida para Lisboa afastou Inês do bullying presencial, a perseguição continuou online. Por detrás de um ecrã “somos quem quisermos”, salienta, denunciando que “a quantidade de assédio e de importunação que recebe online é de bradar aos céus, coisas chocantes”.
“Já tive pessoas a mandarem-me vídeos de pessoas a masturbarem-se para cima de fotos minhas, quando eu tive cancro, enquanto eu estava doente, coisas esquisitas, estranhas, chamarem-me nomes, coisas mesmo horríveis. Eu tento abster-me, e sou resiliente, o que eu não diria a si neste momento, não lhe diria online”, defende a jovem ativista que garante ter tido o apoio da família e amigos, ainda que não seja suficiente.
“Mesmo tendo a família, amigos, namorado, o resto da sociedade está toda pronta para apontar o dedo: mas tu puseste-te a jeito, não devias ter ido por ali, saíste a que horas? Como estavas vestida?”.
“Eu recebo mensagens diariamente: ‘isto é daquelas raparigas do bairro com muita quilometragem’, roça no crime de difamação injúria. ‘És uma porca’, dizem-me, um julgamento total como se eu fosse um quadro e eu não sou uma figura pública, ‘ela é feia, ela é gorda’, e esta impunidade que se sente online tem de acabar, tem de ser punido. Eu não posso dizer o que quero, nem ao vivo nem no online”, alerta.
“Considera-se que a violência doméstica é especialmente grave quando praticada online”
São sempre crimes, os acontecimentos que Inês relata. Uma tipologia diversa e particularmente grave, quando sucede no online, verifica Frederico Marques, jurista da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.
“A violência online pode ser praticada por inúmeras condutas e contextos diferentes e, por isso, o tratamento jurídico é muito diferente. Pensando nas situações de violência online que decorrem em contexto de violência doméstica, o agressor não se conformando com o fim da relação utiliza materiais em sua posse como forma de vingança. Esta conduta também é tipificada como violência doméstica e, portanto, um crime público, que não exige queixa por parte de vítima, e por isso não tem a baliza temporal dos seis meses que a vítima dispõe para apresentar queixa, mas sim a prescrição que será no mínimo cinco anos”, explica, acrescentando a gravidade da violência que decorre online.
“Considera-se que a violência doméstica é especialmente grave quando praticada nestas circunstâncias, a difusão através da internet, de vídeos, fotografias que envolvam a privacidade da vítima”, salientando o crime de pornografia de menores, “também de natureza pública, a utilização de menor em fotografia, vídeo ou a disponibilização de conteúdos pornográficos que envolvam menores”.
Há ainda a registar os crimes de gravação e fotografia ilícitas, “situação entre adultos em que alguém divulga fotografias ou vídeos que ainda que tenham sido legitimamente obtidos, se essa pessoa as divulgar sem consentimento, estamos também a falar de um crime semi-público e de um prazo de seis meses para apresentar queixa. Mas mesmo este prazo conta-se a partir do momento em que a vítima tem conhecimento destes factos e, para menores, permite-se que o menor chegue à maioridade, para decidir se quer ou não avançar com a queixa”, adverte Frederico Marques.
“Há coisas que podem ser feitas”
Desde janeiro de 2019 que a APAV é membro do Consórcio Internet Segura (CIS), coordenado pelo Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS), que também engloba a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a Direção Geral da Educação (DGE), o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ), a Fundação Altice e a Microsoft Portugal.
“Este nosso serviço torna-se cada vez mais conhecido e, por outro lado, com a pandemia, alguma criminalidade transferiu-se para o online, cada vez mais os crimes passam do real para o virtual e é um percurso irreversível”, garante, dando como exemplo o contexto internacional.
“O paradigma da criminalidade está a alterar-se. No Reino Unido, os crimes de componente online já ultrapassam os crimes exclusivamente praticados em contexto real, não sei se em Portugal já estaremos assim, mas será uma questão de tempo”, adianta Frederico Marques.
A violência online pode configurar tipos de crimes muito diferentes e isolá-la ainda não é possível para a maioria dos organismos. A Renascença contactou a GNR para perceber se existiam dados relativos à estratificação da violência online. A resposta foi que “o enquadramento é relacionado de forma geral à violência doméstica, não sendo possível inventariar o número de casos que ocorrem no online”.
“A APAV tem estes dados estratificados porque é responsável pela Linha Internet Segura. É difícil isolá-la” admite, no entanto, o jurista.
Entre 2009 e 2019, menos de metade dos arguidos que foram a julgamento em crimes relacionados com informática foram condenados, de acordo com o relatório anual do Centro Nacional de Cibersegurança. Ou seja, dos 4.630 arguidos, apenas 2.240 foram condenados.
O jurista da APAV lamenta que a investigação criminal e a recolha de provas sejam mais difíceis em contexto online. “O anonimato é mais fácil de manter, crimes sem rosto, não sabemos quem está escondido por detrás daquele ecrã. Mas o ser mais difícil, não quer dizer impossível. É uma investigação que exige meios dispendiosos para quem investiga.”
No entanto, há caminhos e estratégias, aponta Frederico Marques. “Denunciar estas situações nas plataformas onde elas ocorrem é o primeiro passo e somos, por força da nossa gestão da Linha Internet Segura, ‘trusted flaggers’, ‘sinalizadores fiáveis’. Se nos chegam ao conhecimento conteúdos ilícitos, fazemos denúncia ao Youtube e porque nos consideram ‘trusted flaggers’, vão apreciar mais rapidamente a situação e remover aqueles conteúdos, ou seja, eu queria combater a ideia de impunidade, a prevenção é o mais importante, mas não sendo possível há coisas que podem ser feitas”, afirma o jurista da APAV que recusa, por isso, falar em impunidade.
Sara denunciou nas redes e a violência aumentou
A violência migra do offline para o online. Sara Sequeira, 29 anos, modelo, viveu um episódio, em setembro de 2020, durante uma viagem.
“Foi no ano de 2020, em setembro. Eu ia no comboio, levava um vestido verde, era verão, muitos graus e o revisor ficou a olhar para o meu peito durante muito tempo e disse: ‘ainda bem que não está frio, senão as mamocas constipavam-se’. Fui pedir o livro de reclamações e quando vejo que não me pede desculpa, vêm insultos e aí eu comecei a gravar. Só nos conseguimos defender quando temos provas, e o primeiro ato é filmar”, esclarece Sara que expôs o caso nas redes sociais e a violência não mais parou.
“A nível de trabalhos meus, vi trabalhos a serem rejeitados, muito stalking, mensagens a ameaçar, comentários, não conseguia sozinha bloquear os perfis”, recorda, assumindo que só mais tarde teve noção do impacto da violência online de que tinha sido alvo.
“Só agora percebi que estava com um problema devido a isso, ansiedade. Quando saio à rua, quando visto um decote, fico com o coração acelerado, tenho de pensar três ou quatro vezes antes de vestir uma roupa. ‘Vou-te violar cabra’, lia isso em mensagens, de mulheres a dizerem que são vítimas de violência doméstica por causa de mulheres como eu, porque eles querem mulheres assim e depois batem nelas”, respira fundo.
“Por cada homem que faz uma atitude nojenta, estão 20 mulheres a aplaudi-lo”
Sara deu voltas e voltas e não conseguia dormir. “Ao início parecia que não estava bem em mim, à noite tinha picos de ansiedade muito grandes, dormia umas duas horas. Podia ter entrado em depressão grave, li ameaças, perfis falsos, eu tinha-me ido abaixo se não fosse forte. Já antes deste episódio recebia fotos de órgãos genitais. Eu lembro-me de uma vez não ter aceitado tomar café com um rapaz e comecei a ser insultada nas redes sociais, mas 80% dos comentários que eu li são das mulheres, a culpar-me. Eu enquanto pessoa, por mais estruturas que tenha à minha volta, não consigo insultar alguém como fazem nas redes sociais”, sublinha, concluindo que não se sente livre.
“Não estamos seguras em nenhum lado, é que nem a comprar um bilhete de comboio podemos ter um minuto de paz. Não somos livres, a culpa nem é só dos homens, é também das outras mulheres, a apontar o dedo. Por cada homem que faz uma atitude nojenta, estão 20 mulheres a aplaudi-lo” e a violência é crescente, nota Sara.
“A partilha das fotos íntimas está a aumentar com a pandemia, mas não se dá a devida importância. Há cada vez mais grupos de divulgação dessas imagens e mais esquemas, deixa-me louca, não sei como isto é possível”, desabafa.
A APAV tem disponível a LIS (Linha Internet Segura). A psicóloga Cláudia Meira está do outro lado da linha, é gestora do sistema integrado de apoio à distância.
“A Linha Internet Segura tem duas vertentes, prestar apoio Helpline, que é uma linha que funciona todos os dias úteis, das 8h às 22h, 800 219 090, e onde todas as pessoas vítimas ou denunciantes de cibercrime são apoiados e encaminhamos para um dos gabinetes da APAV, prestamos informações práticas. A pessoa pede-nos apoio por esta linha, prestamos apoio psicológico, jurídico, social, através de Skype”, revela Claúdia Meira, destacando também a vertente Hotline, “pessoas que tenham acesso a conteúdos ilegais, podem reportar esse conteúdo, enviam-nos o link através do linhainternetsegura@apav.pt e reportamos às entidades competentes”.
“O ‘pões-te a jeito’ é quase cultural”
O assédio online, com o envio semanal ou até mesmo diário de fotos íntimas, não solicitadas, o cyberflashing e o sextortion, práticas de extorsão de dinheiro em troca da não divulgação online de fotografias ou vídeos com conteúdo sexualmente explícito, são cada vez mais frequentes, observa Claúdia Meira da APAV.
“Em 2020, houve mais pedidos de apoio, principalmente por parte de mulheres (61% de mulheres e 27% de homens), ao todo, 1.164 pedidos de ajuda. Em 2019, registámos 827 casos. Mas de janeiro a maio de 2021 já vão em 1.138”, mostra Claúdia Meira, alertando para a especificidade da violência online.
O que preocupa a psicóloga é não poder garantir às vítimas que a violência online vai ter fim. “Temos de pensar nisto, houve uma violação da minha imagem, eu não sei se daqui a uns tempos os meus filhos, a minha família vão ter acesso às minhas imagens. A violência online é uma violência que nós, enquanto técnicos, não conseguimos dizer que isto vai acabar. Num caso de violência doméstica, a relação termina, a pessoa separa-se e consegue, por vezes, recuperar. Aqui não. Eu vou a um site e retiro os conteúdos, mas podem ser publicados noutro site, é humanamente impossível. É isso que tem de ser trabalhado com as vítimas, é elas terem a capacidade de perceber que isto pode não ter um fim, nada garante que daqui a uns anos não volte”, conclui Claúdia Meira, destacando o apoio da APAV.
“A pessoa precisa de ajuda, nós ajudamos a redigir a queixa, muitas vezes está debilitada e não consegue fazer sozinha. Há cada vez mais gravação de fotografias ilícitas, o sextortion é outro tipo de crime que tem estado a aumentar”, denota a psicóloga da APAV.
O caminho trilhado pela APAV, desde 2019, segue a prevenção. “Acho que cada vez mais se tem de falar na violência online e na prevenção. Mesmo em pandemia, a Linha Internet Segura promoveu sessões online nas escolas, para promover comportamentos saudáveis, seguros, no uso da internet”, ressalva Claúdia Meira.
“Já tenho conteúdo meu partilhado desde os meus 15 anos”
Também Inês Marinho, vítima de violência online, está decidida a sensibilizar os mais jovens e em outubro de 2020 deu o primeiro passo. O movimento ‘Não Partilhes’, que no passado mês de maio passou a ser oficialmente uma associação.
“Começou por ser um movimento, falando com outras meninas alvo destes grupos. Se calhar há mais pessoas assim, pensei, e procurei informação, mas não havia nada em Portugal. Na primeira semana recebi mais de 500 a 700 mensagens de testemunhos todos diferentes de mulheres e de três ou quatro homens: ‘quero te contar a minha história para saberes que não és maluca’, diziam-me. O meu objetivo é ajudar as vítimas e acolhê-las, tentar encaminhá-las e na parte da prevenção, começar a ir às escolas falar disto, porque a vítima mais nova que acolhi tinha nove anos. Quando alguém te pede uma foto íntima e és menor, não podes mandar, vai urgentemente falar com o teu pai ou mãe ou professores” e relembra um episódio na adolescência que a marcou.
“Um namoradito meu aos 14 anos, fiz uma vídeo chamada, e tirei a camisola e no dia a seguir todos os amigos dele sabiam a cor do meu soutien”, acautela Inês Marinho, que na página do Instagram da associação já tem mais de 35 mil seguidores, a maioria mulheres.
Por vergonha, acredita Inês, nenhum homem dá a cara quando sofre violência online. “Os homens têm de ser sempre fortes, eles até querem fazer queixa, mas têm vergonha”, justifica a ativista, que desde os 15 anos sabe o que é violência online.
“Eu já tenho conteúdo meu partilhado desde os meus 15 anos, fotos minhas na praia, montagens, ‘alguém tem nudes da Inês?’, perguntavam em grupos organizados, recebo semanalmente fotos íntimas ou vídeos de alguém a masturbar-se. Mandarem-me uma foto do órgão genital é a mesma coisa que uma pessoa se desloque até mim e o mostre, a intenção é a mesma, intimidar, assustar”, sustenta, valorizando o consentimento, que para a ativista é essencial. “O consentimento é fulcral, é como o piropo. É algo dúbio na cabeça de muita gente”, declara a jovem ativista.
Grupos organizados partilham fotos e vídeos das vítimas
A Renascença tentou recolher testemunhos de homens vítimas desta violência, mas sem sucesso. A voz que se ergue para falar por elas e por eles é a de Inês Marinho, que denuncia a existência de grupos organizados, os Cyber mobs, práticas online de assédio coletivo.
“Fotografias em que apagam a camisola, montagens, e eu acordava com mensagens de vídeos em que supostamente era eu que lá estava. Há mais do que nós imaginamos, há muitas que não falam ou nem sabem. A magnitude destes grupos é assustadora. Um dos maiores grupos tinha 63 mil pessoas. Eu recebia mais de cinco mil notificações. Partilhas de fotografias e vídeos de ex namoradas, print screens. É mais no Telegram, onde as imagens não são rastreadas, não há número, não há foto. No Twitter havia uma conta, o Leaktugas, que publicava fotos e vídeos de raparigas e já recorri à justiça, fui chamada para inquérito e estou a aguardar, sei que é um caso em um milhão”, lamenta a ativista, que revela que a maioria dos administradores desses grupos são homens, e para se entrar é preciso provar o género. “Pedem que envie um áudio da voz por exemplo, mas também há grupos geridos por mulheres”, acrescenta a fundadora da ‘Associação Não Partilhes’.
Inês está decidida e vai continuar a luta contra a violência online, que pode não ter rosto, que se esconde por detrás de um ecrã e que, muitas vezes, tem o aplauso da multidão. “Eu acredito que há 70 anos uma mulher levar uma chapada no meio da rua não fosse a coisa mais grave do mundo, se calhar estava a provocá-lo, e agora ninguém fica indiferente e nós ainda não estamos nesta fase no online, mas acredito que, daqui a uns anos, um homem que tenha partilhado fotos da namorada, seja visto como um criminoso”, espera a ativista.