Nasceu nos Estados Unidos, mas o sangue italiano corre-lhe nas veias. Claudia Durastanti é filha de pais italianos, ambos surdos, e resolveu pôr em livro a história da sua família.
“Sempre Estrangeira” é um testemunho pessoal sobre o mundo de silêncio onde cresceu, uma família com um código próprio de comunicação, onde diz ter-se sentido sempre uma “intérprete” entre dois mundos.
Em entrevista ao programa Ensaio Geral da Renascença, a autora fala sobre a atual pandemia de Covid-19, afirma que em Itália há um “caos” na forma como a informação é prestada, incentivando um clima de medo. “Dentro das nossas fronteiras pensamos constantemente que o perigo está lá fora. Mas o que vejo é que o perigo está dentro!”
"Sempre Estrangeira" é um livro muito pessoal, fala de si e da sua família, em especial dos seus pais que são ambos surdos. Quais os riscos de escrever sobre algo tão intimo? Porque decidiu faze-lo?
Acho que tentei durante muito tempo evitar escrever este livro. Para ser honesta, a última coisa que queria fazer quando comecei a publicar os meus romances há 10 anos, ou quando comecei a escrever em miúda, era falar das circunstâncias da minha vida. O que queria mesmo era fugir da pequena aldeia onde vivia, da minha família, etc. Para mim não fazia sentido escrever na primeira pessoa. Mas decidi escrever “Sempre Estrangeira” quando me apercebi que já havia uma distância, entre mim e em especial a minha mãe. De certa forma poderia observar a minha família como uma antropóloga. Estaria naquela comunidade, teria muita intimidade, mas estaria do lado de fora.
Mas este livro aborda também, através da história da sua família, e em particular da sua mãe e da sua avó, outros temas. Fala por exemplo da questão a emigração. A Claudia nasceu nos Estados Unidos e já viveu em Londres e Itália. Sente-se também uma emigrante?
É verdade que é um livro que parece muito pessoal. A minha abordagem foi pegar na minha família e em todas as questões que eram importantes para ela, como a emigração, a surdez, as classes sociais, e a deficiência e torná-las numa espécie de caleidoscópio de temas que me permitiram perceber melhor, não só a mim, mas o que eu penso sobre a sociedade, a incapacidade e o isolamento.
Queria falar desse isolamento também devido à condição de surdez dos seus pais?
Acho que o livro é sobre diferentes formas de silêncio e foi uma forma de investigar o que é mesmo o silêncio, não só para a minha mãe surda, mas também para mim que cresci entre pessoas que estavam muitas vezes em silêncio.
Sentia estranheza, sentia-se uma "estrangeira" na sua família, ao ser falante?
Mais do que uma estrangeira, eu senti que era constantemente uma intérprete entre dois mundos. Quando era pequenina, o meu irmão fazia piadas e dizia que os meus pais fingiam que eram surdos e que eram extraterrestres. Eu costumava acreditar nisso! Pensava que os meus pais eram mesmo extraterrestres, por várias razões. A forma como comunicávamos em casa, o tipo de língua muito própria que usava com a minha mãe…tínhamos uma espécie de léxico familiar! E, portanto, em vez de me sentir estrangeira em casa, acho que sempre me senti uma tradutora.
Curiosamente, além de escritora, também se tornou uma tradutora.
Sim! Nunca tinha pensado nisso até há uns anos. Uma vez um escritor perguntou-me isso. De repente apercebi-me que talvez me tenha tornado em tradutora porque a minha mãe sempre me pediu isso! Vivia constantemente a fazer pontes entre o mundo exterior e o interior. Nasci e cresci nos Estados Unidos e vivi em Itália. Sempre escrevi em italiano. Dizem que os meus livros soam mais ao estilo americano. Talvez por eu ser bilingue!
Como era a sua comunicação com a sua mãe?
Não é uma língua gestual e não é propriamente italiano. É como um código que nós inventamos para nos entendermos. Levei algum tempo a perceber que ter crescido nesta família com uma língua tão peculiar, moldou o meu estilo e a minha forma.
Também fala da emigração da sua avó, e compara isso com os dias de hoje, porquê?
Sempre achei que a minha avó tinha emigrado para os Estados Unidos por pobreza, porque não tinha alternativa. Sempre pensei que não havia desejo na emigração dela, era tudo por necessidade. Quando pensei em mim, ao mudar-me para Londres há 10 anos, pensei que era o oposto disso. Eu era formada, falava a língua, tinha várias hipóteses. Movia-me por amor e desejo. Mas não era bem verdade! Estava em Itália, e havia poucas possibilidades de trabalho. Por isso acho que também havia em mim uma necessidade.
Isso mudou a sua visão sobre a emigração?
Aprendi que toda a emigração tem um pouco destas duas coisas.
Somos muito conservadores ao pensar que pessoas que vaiem de países em guerra, que emigram por questões climáticas, da Síria para África, chegam aqui só por desespero. Isso é desumanizar os migrantes!
É um bom exercício pensarmos que a necessidade e o desejo têm diferentes combinações. Considero que não devemos deixar a pressão política ou as catástrofes ditarem a forma como vemos a liberdade de movimentação das pessoas.
Como é que tem vivido estes tempos de pandemia?
É interessante. Eu deixei o Reino Unido quando a pandemia começou. Depois vivi o primeiro pico e o confinamento em Nova Iorque. Agora vivo em Itália. Quando todos deviam ficar em casa, devido a várias circunstâncias eu andava às voltas! No meio disto tudo pensava que Itália era um país que se preocupava com a saúde pública e que a América era um desastre completo, mas a verdade é que há nos Estados Unidos muitas forças que começaram a debater-se pela saúde publica.
Sinto que a sociedade americana, que está muito sombria agora, vive esta tensão sobre valores que nós europeus já consideramos como consolidados. Acho que a pandemia está a alterar todas as ideias que temos sobre a sociedade em certos países. Está a trazer à superfície outras questões.
Está agora em Lisboa, consegue perceber diferenças entre o que se passa em Itália e em Portugal no que toca à gestão da pandemia?
Esta viagem a Portugal foi interessante, porque me estou a aperceber o quanto a questão do vírus depende da informação. A situação é preocupante em Itália. Preocupa-me estar rodeada por uma abordagem à pandemia que é pouco baseada em factos, e mais em sensações. A informação engana quando se baseia nesse tipo de abordagem! Aqui vejo que há outras formas de levar isto a sério.
Acho que aqui em Portugal, o que tem de ser feito é feito, sem andarem a contar histórias e a criar medo. Isto é o oposto do que acontece em Itália, onde os números são muito mais elevados e onde há um caos na forma como a informação é prestada.
Foi um risco viajar?
Fui aconselhada a não viajar. Dentro das nossas fronteiras pensamos constantemente que o perigo está lá fora. Mas o que vejo é que o perigo está dentro! Percebo que precisamos de regras, mas é possível movimentarmo-nos seguindo as regras. Em Itália estão a estigmatizar qualquer experiência que nos tire do nosso lugar de conforto e por vezes é lá que ficamos doentes.
Conseguiu escrever durante estes meses de pandemia?
No início não, toda a minha vida foi "raptada" por aquilo que estava a viver. É improvável que isto possa gerar uma experiência literária. Tem de se ser ou muito cínico ou ter muito talento, para pegar numa experiencia tão complexa como a pandemia e traduzi-la em algo que seja legível. Mas a certa altura comecei a achar interessante as novas palavras que entraram na nossa linguagem. Depois disto tudo vai ser engraçado perceber o significado que palavras como ‘confinamento’ passaram a ter.