António Maia Gonçalves, especialista em medicina interna e cuidados intensivos, com um doutoramento em bioética, considera que a lei da morte medicamente assistida, que deverá ser regulamentada nas próximas semanas, representa “um retrocesso civilizacional enorme”.
Em entrevista à Renascença, o especialista, que há mais de 25 anos acompanha doentes em estado grave, contesta que os objetores de consciência estejam impedidos de fazer parte da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida.
De acordo com a lei já promulgada, mas ainda não regulamentada, este grupo de trabalho irá avaliar o relatório final elaborado pelo médico orientador e incluirá dois juristas e um especialista em bioética, excluindo todos os que são contra a eutanásia. “É um profundo desrespeito pelos médicos”, diz António Maia Gonçalves, que atualmente trabalha na Casa de Saúde da Boavista, no Porto.
Com a promulgação do diploma da morte medicamente assistida, há questões que, do seu ponto de vista, são um entrave à prática da medicina?
Do ponto de vista médico, não faz sentido. A medicina mudou de paradigma. Antigamente havia uma autoridade quase inquestionável por parte o médico. Hoje não. O que centra a medicina é a relação entre o médico e o doente e a sua autonomia. Não faz sentido atualmente que qualquer doente seja sujeito a um tratamento com o qual não concorda.
O médico tem o dever explicar as opções terapêuticas e este fará as suas escolhas. Nós, médicos, estamos lá para o apoiar nas decisões, dentro da razoabilidade clínica, claro. Nesse contexto, há também uma inversão da pirâmide demográfica.
Temos um país cada vez mais envelhecido.
Exato. Uma pessoa com mais idade, não sofre só dos pulmões ou só dos rins ou da diabetes. Sofre de tudo. Numa doença crónica, vamos conversando com o doente sobre os cenários futuros, as opções terapêuticas e a sua vontade. Inclusivamente há o testamento vital, uma declaração antecipada de vontade exatamente para se respeitar a vontade do doente.
Neste contexto, em que a medicina caminhou no respeito pela autonomia e pela vontade do doente, se o doente recusar tratamento, respeitamos a sua vontade. Obviamente que custa muito saber que há uma patologia que conseguimos curar ou que [podemos] prolongar muito a vida ao doente e ele entende que não. Se recusar tratamento, o que é que nós fazemos? Um plano ativo de conforto.
Esta lei do suicídio assistido faria todo o sentido de bandeira nos anos 80 e 90, mas em 2023 é descabida. É uma bandeira meramente política que não acresce nada à liberdade das pessoas, que já está consagrada na prática clínica. Tive um doente que é político ativo e que fez parte de um bloco que votou a favor do suicídio assistido. O que ele me disse foi: "doutor, nunca desista de mim. Mesmo que eu desespere, confio que não vai desistir de mim, e, portanto, esta lei não me preocupa". No fundo para mim, esta história do suicídio assistido é uma maneira de a sociedade desistir de apoiar as pessoas. Isto é um retrocesso civilizacional enorme.
Considera que a prática da medicina fica condicionada?
Sim. Se não cobrirmos o país com cuidados paliativos, o que é que acontece? No desespero, e se não houver o tal amigo que não desiste de nós, haverá pessoas que cometem suicídio assistido. Não gostaríamos nunca de ter alguém próximo, que se sinta abandonado, que enverede por uma situação de desespero sem ajuda – queremos garantir essa ajuda.
Julga que tenho algum pudor em, por aumentar o suporte analgésico, abreviar o período de morte? Não tenho nenhum. A minha intenção é garantir o conforto. Totalmente diferente é dizer às pessoas: “vai ali a um sítio, dão-lhe uns comprimidos, toma e morre”. Isto é uma negação de humanidade que, como médico, tenho enorme incapacidade em aceitar.
Como médico, devo garantir que nunca desisto de ninguém. Temos de cuidar sempre. O objetivo da medicina é esse mesmo, cuidar sempre. A vida humana é aquilo que de mais sagrado existe. Estamos numa sociedade em que a juventude é cada vez mais digital. Tem falhas de competências sociais. Temos aí um futuro da inteligência artificial. No fundo, estamos a desumanizar a sociedade.
Temos uma vida muito atarefada e, muitas vezes, não temos a presença que deveríamos ter junto dos nossos
Com esta lei, passa a olhar-se para a vida de outra forma? Que mudança civilizacional está em causa?
Estamos numa mudança civilizacional enorme. Toda a História evoluiu no sentido do maior respeito pela vida humana. Há valores de respeito pela vida humana que se forem alterados não temos norte. A morte faz parte da vida, mas não há ninguém que, tendo todo o conforto do mundo, queira abreviar esse período de fim de vida. Permitir o suicídio assistido é uma forma de desistir das pessoas.
Que porta é que se abre com esta lei?
Hoje temos uma vida muito atarefada e, muitas vezes, não temos a presença que deveríamos ter junto dos nossos. Quando um avô ou um pai se sente muito limitado pela idade avançada e percebe que os filhos não têm muito tempo para estar com ele, se calhar o truque não é legalizar o suicídio assistido. É garantir que as pessoas têm mais condições para estar mais tempo em família.
Muitas vezes, os doentes dizem-me que são um fardo para os filhos e não querem fazer tratamento. É a negação total dos afetos. Acho que [esta lei] é uma porta aberta a que as pessoas mais vulneráveis sigam este caminho. É claramente uma derrota. Vi uma entrevista a uns médicos belgas em que diziam: “suicídio assistido não apreciamos muito, a eutanásia é muito mais eficaz”. A maneira de banalizar a morte é um risco enorme.
Considera que o direito à objeção de consciência dos profissionais de saúde está garantido?
Há uma coisa na lei que me faz alguma confusão. Um objetor de consciência não pode ser nomeado para avaliar clinicamente uma situação. [A lei] parte do princípio de que qualquer médico que tenha objeção de consciência contra a eutanásia, quando for avaliar clinicamente um processo, vai ser parcial. Isso é um profundo desrespeito pelos médicos.
Qualquer médico devia estar apto a avaliar clinicamente os doentes. Sou profundamente contra este tipo de procedimentos, mas se me derem um processo clínico, eu vejo. Limito-me objetivamente a verificar se as condições são cumpridas ou não.
O facto de a lei dizer que os médicos objetores de consciência são excluídos da avaliação clínica dessas situações, parece-me absurdo. Faz-me pensar, se não há aqui uma vontade de que as coisas sejam mais simples, de que não haja nenhuma obstaculização clínica à sua implementação.
A ideia de que uma pessoa desiste e nós concordamos com essa desistência é de uma profunda pobreza.
A próxima fase agora é a regulamentação da lei. Atendendo também à sua posição, o que é que espera que o legislador tenha em conta?
Que todas as condições clínicas que estejam previstas na lei sejam verificadas. O problema é que as variabilidades na decisão médica são tantas que duvido que o decreto-lei tenha, de facto, uma objetividade que permita avaliar as situações com rigor. A medicina não é vaga. Não é objetiva como a engenharia, mas tenta com várias variáveis objetivar ao máximo as situações clínicas. Se o regulador for vago e impreciso, isso é uma porta aberta a que as coisas se passem sem rigor nenhum, ainda com mais displicência do que se prevê.
Atendendo às dificuldades que o SNS atravessa, considera exequível que uma lei destas possa de facto ser implementada?
Isto quase parece uma ajuda à sobrelotação hospitalar. Se não podemos tratar as pessoas, vamos ajudá-las a morrer. [Esta lei] é uma bandeira política – vai haver mecanismos para ter um sucesso enorme em termos de implementação. Tenho a certeza. Quando se estabelecem prioridades em saúde, consegue-se implementá-las. Não tenho dúvida nenhuma. Que traga benefícios objetivos para as pessoas, para os doentes e para nós, médicos, é que tenho a certeza que não. Eu vou continuar preocupado em cuidar as pessoas, e seguramente alegar a objeção de consciência. Num contexto de sobrelotação hospitalar, de ausência de cuidados paliativos, isto é um caminho fácil.
Estamos a caminhar para uma desumanização?
A diversidade da humanidade é uma coisa fabulosa e, de facto, perder um valor fundamental que é a inviolabilidade da vida humana é um retrocesso enorme, enorme. Clinicamente é extremamente doloroso. Se tiver algum doente que me diga isso, é seguramente um atestado da minha incompetência, porque não fui capaz de prestar os cuidados para se sentisse confortável, mesmo em fim de vida.
Nos cuidados intensivos morrem doentes todos os dias. Respeito a morte e para mim não é uma derrota. Há limites e temos esse bom senso, mas não quero médicos que não estejam 100% motivados pela vida. Se não pudermos curar, pelo menos temos de cuidar sempre. Esta é uma mensagem fundamental. A ideia de que uma pessoa desiste e nós concordamos com essa desistência é de uma profunda pobreza.