Nunca um Papa e um Patriarca de Moscovo se encontraram, até porque o Patriarcado foi fundado apenas algumas décadas antes do grande cisma entre a Igreja Católica e a Ortodoxa.
Saiba porque é que este encontro é marcante e porque razão se realiza num dos últimos países comunistas do mundo, num artigo que também lhe explica os obstáculos que ainda existem à união entre o Cristianismo católico e ortodoxo.
Quem é o Patriarca Kirill e porque é que é importante?
Nascido Vladimir Mikhailovich Gundyayev, entrou para a vida monástica em 1969, na Igreja Ortodoxa Russa, ainda em pleno regime comunista, assumindo então o nome Kirill, ou Cirilo.
Foi subindo na hierarquia eclesiástica e a 1 de Fevereiro de 2009 foi eleito Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia, sucedendo a Alexis II. Curiosamente, no dia em que morreu Alexis, Kirill, então responsável pelo departamento de assuntos externos do Patriarcado de Moscovo, estava a caminho do Porto para se encontrar com a comunidade ortodoxa e tinha audiência marcada com D. Manuel Clemente, mas regressou imediatamente à Rússia.
A Comunhão Ortodoxa é a segunda maior do mundo cristão, a seguir à Católica. As igrejas ortodoxas estão em comunhão umas com as outras mas regem-se pelo princípio da autocefalia, com cada patriarca a usufruir de plena autoridade sobre a sua igreja. Não existe, no mundo ortodoxo, uma figura de autoridade central, como é o Papa na Igreja Católica.
Entre todos os patriarcas há um, de Constantinopla, que tem uma primazia de honra e é considerado o “primeiro entre iguais”. Dessa perspectiva não se pode dizer que Kirill seja o mais importante dos patriarcas ortodoxos. Contudo, em termos de influência e poder real, é sabido que o Patriarcado de Moscovo, com cerca de 200 milhões de fiéis e o apoio claro da Rússia, uma superpotência com ambições globais, o que faz do Patriarca de Moscovo uma figura absolutamente incontornável no mundo ortodoxo. Este facto tem sido fonte de tensão entre Moscovo e Constantinopla, com os russos a pretenderem assumir um papel de primazia em relação às outras igrejas que Constantinopla não quer ceder.
É de realçar que embora nunca o tenha feito na qualidade de Patriarca, Kirill encontrou-se várias vezes com João Paulo II e Bento XVI quando era responsável pelo departamento de relações externas do Patriarcado de Moscovo e, quando foi eleito Patriarca era visto como o mais ecuménico dos candidatos.
O que separa católicos e ortodoxos?
A separação entre católicos e ortodoxos data de 1054, quando o então Papa e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente.
Em causa estavam algumas diferenças teológicas, mas também muitas de natureza política. Naquele tempo o Império Romano já tinha acabado a Ocidente, mas mantinha-se no Oriente, com capital em Constantinopla ou Bizâncio, hoje Istanbul, o que gerou ressentimento por parte dos bizantinos em relação a Roma, que na ordem histórica das Igrejas gozava de primazia.
A diferença de culto e de liturgia não é uma questão, tanto que há igrejas católicas de rito oriental e, em menor número, igrejas ortodoxas de rito ocidental, mas ao longo dos quase mil anos de separação consolidaram-se duas visões de eclesiologia, ou organização da Igreja, muito diferentes. Entre católicos centralizou-se o poder e a autoridade em Roma, na pessoa do Papa, enquanto entre os ortodoxos se consolidou a ideia de autocefalia e autonomia de cada igreja, sendo que as igrejas tendem a ser étnicas e nacionais e, também por isso, mais facilmente interligadas com o poder secular.
Os ortodoxos não aceitam uma reunificação com Roma com o modelo papal actual, mas Roma já se dispôs a discutir o papel do Papa, com João Paulo II e Francisco a dizerem que não se pode esperar que os ortodoxos tenham de aceitar uma autoridade papal diferente daquela que existia no século XI, quando se deu a separação. Há ainda diferenças de opinião sobre os contornos dessa mesma autoridade na altura, e isso tem sido um dos temas de discussão entre as comissões doutrinais de católicos e ortodoxos.
A complicar a situação está o próprio estado das relações entre as igrejas ortodoxas. O princípio da autocefalia dificulta muito a concertação de posições e ninguém pode falar em nome de todos. Este ano, pela primeira vez em séculos, haverá um histórico encontro de patriarcas, que se vai realizar na ilha de Creta, e que poderá contribuir para resolver este problema. O encontro entre Francisco e Kirill poderá ajudar a marcar a agenda dessa reunião.
Quais os pontos de discórdia entre Moscovo e Roma?
Para além daquilo que divide ortodoxos e católicos, a situação entre Roma e Moscovo é agravada por outros factores particulares. O principal destes é a existência de igrejas católicas de rito oriental em territórios que Moscovo considera serem território seu, nomeadamente na Ucrânia.
Ao longo dos séculos houve casos de grupos de fiéis ortodoxos que pediram para serem reunificados com Roma, formando assim igrejas autónomas, com a sua própria liturgia, ritos e tradições, exteriormente idênticas aos ortodoxos, mas reconhecendo a autoridade do Papa.
Os ortodoxos sempre conviveram mal com esta situação, mas ela agravou-se durante o período comunista, que afectou a maioria dos países de maioria ortodoxa na Europa. Os comunistas perseguiram todos os cristãos mas, aproveitando a tradição de ligação entre as igrejas e o poder secular, procuraram controlar as igrejas nacionais, interferindo na escolha dos patriarcas e bispos. Tal não era possível com as igrejas católicas, que apesar de um elevado grau de autonomia, dependiam no final de contas do Papa e foram, por isso, extintas pelos governos e os seus hierarcas e fiéis perseguidos com particular ferocidade.
No caso da Ucrânia a Igreja Católica foi forçosamente “reunida” à ortodoxa, e todos os locais de culto que não foram destruídos foram integrados no património do Patriarcado de Moscovo. O ressentimento já existente entre ortodoxos e católicos facilitou a vida ao regime.
Mas a Igreja católica sobreviveu na clandestinidade e, nos anos 90, foi novamente legalizada. Algumas das suas igrejas foram-lhe devolvidas e a hierarquia estabelecida. Actualmente tem cerca de cinco milhões de fiéis, sobretudo nas áreas da Ucrânia tendencialmente mais opostas à influência russa.
No entanto, a Igreja Ortodoxa Russa nunca aceitou o ressurgimento da Igreja Greco-Católica da Ucrânia e considera que as suas actividades são “proselitismo” católico em território historicamente ligado a Moscovo.
Até ao momento Moscovo sempre recusou permitir uma visita do Papa à Rússia, argumentando que primeiro é necessário resolver questões como esta que, porém, não têm grande resolução à vista, uma vez que é a própria existência da Igreja Ucraniana que ofende a sensibilidade de Moscovo.
Porquê em Cuba?
A localização do encontro está a ser apresentada quase como se fosse o aproveitar de uma coincidência. Kirill está em Cuba em viagem pastoral e o Papa estará a caminho do México, também para uma visita de vários dias.
Nestes assuntos, contudo, não há espaço para grandes coincidências. Cuba é longe da Europa, onde estão situados os problemas mais graves que separam as duas igrejas, e deve ter-se em consideração que não obstante o regime comunista ter caído na Rússia e não em Cuba, Moscovo e Havana continuam a ter excelentes relações e os russos consideram que em Cuba estão a “jogar em casa”. Ao mesmo tempo o Papa Francisco já visitou Cuba e recebeu também a visita de Raul Castro, com quem tem boas relações. Roma ajudou a negociar o fim do embargo americano à economia cubana e por isso também Francisco, que tem ainda a vantagem de ser latino-americano, se sentirá “em casa” em Havana.
Mesmo os cubanos só têm a ganhar com o encontro, que lhes permite consolidar a imagem de um país que se tem liberalizado no que diz respeito à prática religiosa.
Porquê agora?
Por tudo o que foi escrito até agora o anúncio do encontro que se vai realizar em Cuba na sexta-feira foi particularmente surpreendente. As principais questões que separam as duas igrejas não estão resolvidas.
Os detalhes não são públicos, e é possível que Moscovo tenha simplesmente decidido que estava na altura de “quebrar o gelo” com Roma. Não obstante a existência de uma dose de boa vontade, há especialistas que apontam a existência de motivos menos nobres da parte de Kirill, recordando que também o conselho de primazes ortodoxos, marcado para Junho, vai ser em Creta por imposição de Moscovo.
“Novamente, a mensagem subliminar do Patriarca russo para os restantes primazes no mundo ortodoxo é clara: Os conselhos e os papas é que têm de vir ter com Kirill, sob as suas condições e não as dos Papas ou dos conselhos. Creta em vez de Constantinopla e Cuba em vez do México são símbolos de um jogo de poder em que a motivação principal não o conselho ou a unidade católica-ortodoxa, mas sim a rivalidade entre Moscovo e Constantinopla”, escreve o especialista Paul L. Gavrilyuk.
Do que vão falar?
Este encontro será de carácter privado, sendo que no final tanto o Papa como Kirill farão discursos públicos. A agenda oficial prevê que o tema da conversa seja essencialmente sobre a perseguição aos cristãos no Médio Oriente, um tema que preocupa ambas as igrejas, que têm lá fiéis, embora as abordagens tenham sido bastante diferentes, com Francisco a pedir o fim da guerra e Kirill a apoiar a intervenção russa.
Os assuntos mais melindrosos que separam as igrejas não estão na agenda e até é possível que fiquem de fora da conversa e que os dois hierarcas se concentrem apenas naquilo que têm em comum, mas mais importante que isso é mesmo o encontro em si que abre um precedente e poderá facilitar contactos no futuro onde se possam abordar temas doutrinalmente mais complexos.
Todos os olhares estarão, por isso, nos discursos finais em que os dois darão a sua própria versão do que se passou em Havana.