Este sábado há mais uma hipótese de o Parlamento britânico finalmente começar a desatar o nó do Brexit: depois do acordo apresentado por Theresa May ter sido rejeitado por três vezes, o novo primeiro-ministro Boris Johnson apresenta um texto fresquinho, fechado em Bruxelas esta quinta-feira. No meio de tantas dúvidas uma coisa parece certa: nada ficará como dantes depois desta votação. Se já perdeu o fio à meada, este é o artigo de que precisava para se tornar um especialista instantâneo no Brexit.
Qual é o programa do dia na Câmara dos Comuns?
Em primeiro lugar, diga-se que o Parlamento já não reunia a um sábado desde que a Argentina invadiu o território britânico das Ilhas Malvinas, em 1982. Os deputados vão reunir-se a partir das 9h30. Boris Johnson vai fazer uma declaração inicial e depois responder a perguntas dos deputados - espera-se que isto demore algumas horas. Depois será o debate principal e a votação não é esperada antes das 14h30. Se John Bercow, o Presidente da Câmara dos Comuns, aceitar emendas ao acordo, elas serão votadas antecipadamente.
Afinal, que mudanças foram implementadas no novo acordo do Brexit face ao anterior?
A grande mudança tem a ver com o chamado “backstop”, traduzido como “mecanismo de salvaguarda” para a Irlanda do Norte. Esta solução pretendia evitar um restabelecimento da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, que será a única fronteira terrestre entre território britânico e da União Europeia (UE). É bom lembrar que o terrorismo na região só terminou há pouco mais de 20 anos, com a pacificação entre nacionalistas católicos e republicanos (que pretendem a união das Irlandas) e unionistas protestantes (defensores da pertença ao Reino Unido), permitida pelo Acordo de Sexta-feira Santa, assinado em 1998.
Também houve alterações na declaração política sobre as futuras relações bilaterais, mas o grande ponto de divisão e que impediu até agora o acordo de passar no Parlamento inglês tem a ver com a Irlanda do Norte.
Que solução alternativa foi encontrada?
Sem entrar em grandes detalhes, foi acordado uma solução permanente, sem o cariz do mecanismo de salvaguarda, que se aplica apenas à Irlanda do Norte e deixa o Reino Unido livre para negociar acordos comerciais com quem entender. A Irlanda do Norte fica sujeita a certas regras do mercado único, incluindo taxas de IVA para mercadorias, mas continua no território aduaneiro do Reino Unido. A maior parte dos controlos fronteiriços serão apenas de cariz sanitários e fitossanitário, cabendo os mesmos às autoridades britânicas.
Há outra diferença que pode parecer cosmética mas que tem uma importância simbólica: a fronteira deixa de ficar na ilha da Irlanda e passa a estar no mar, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda.
De quantos votos precisa Boris Johnson para o acordo passar?
320 votos é o número mágico. A Câmara dos Comuns tem 650 deputados, mas são descontados os sete eleitos pelo Sinn Féin (os nacionalistas irlandeses não ocupam os seus lugares), o presidente e os seus três vices, que não costumam votar.
Há 259 deputados Conservadores que parecem há muito dispostos a votar favoravelmente qualquer acordo que o primeiro-ministro apresente. Por isso, ele tem de reunir o apoio de mais 61 e é a partir daqui que as contas se tornam tão complicadas que cada órgão de comunicação social tem as suas próprias apostas. Alguns desdobram-se em múltiplas hipóteses e quase seria preciso chegar ao fim da internet para as apresentar todas.
Onde pode Boris Johnson recolher os votos que lhe faltam?
Há um grupo que é um “território de caça” prioritário: a ala eurocética do próprio Partido Conservador, um grupo de 28 deputados que se autointitulam de “espartanos”. Dois deles, Priti Patel e Theresa Villiers, estão agora no Governo, pelo que o seu voto será garantido. Quando Johnson chegou ao poder, os “espartanos” garantiram que se oporiam a qualquer acordo, por mais minimalista que fosse. No entanto, parecem estar agora mais inclinados para reconhecer as virtudes de um acordo, sob pena de a próprio saída do Reino Unido do bloco europeu ser posta em causa.
Johnson também não poderá deixar de engolir o orgulho e tentar seduzir os rebeldes conservadores, um grupo de 21 deputados que o próprio expulsou do partido por tentarem bloquear uma saída sem acordo. Um deles, Sam Gyimah, mudou de bancada e juntou-se aos Liberais Democratas. Há três deputados – Dominic Grieve, Guto Bebb e Justine Greening – que querem um segundo referendo, pelo que devem votar contra. A previsão na comunicação social britânica é a de que a maioria deste grupo poderá apoiar o novo acordo.
Os 10 deputados do Partido Unionista Democrático norte-irlandês (DUP), que votaram sempre contra o acordo de May, serão essenciais para o resultado da votação, até porque poderão convencer a grande maioria dos rebeldes a apoiá-lo. Porém, a líder Arlene Foster já reforçou esta sexta-feira que irão votar contra e isso tornar muito complicado um final feliz para Boris Johnson.
Há 19 deputados Trabalhistas que poderão sentir-se tentados a votar a favor deste novo acordo, estima o “The Guardian”, se tiverem garantias de proteção dos direitos dos trabalhadores, preocupações ambientais e relações futuras estáveis com a UE. A "Bloomberg" estima que este grupo pode chegar aos 31, mas todos eles serão também alvo de forte pressão do próprio partido, que considera que o chumbo será decisivo para fazer cair Johnson e chegar ao poder em futuras eleições.
Há um quinto grupo que inclui deputados independentes – quatro deles votaram pelo acordo de Theresa May em março – e dois casos especiais: o liberal-democrata Norman Lamb, que tem votado contra a orientação do seu partido, e o deputado conservador Jo Johnson, irmão de Boris, que votou sempre contra o acordo apresentado pela anterior primeira-ministra e que chegou a fazer campanha por um novo referendo. Pelo menos, é provável que atenda a chamada se o irmão lhe ligar para o persuadir.
O que acontece se o acordo for aprovado?
Será um passo enorme, mas a batalha ainda não estará ganha. Nesse caso, o Governo deverá apresentar a lei nesse sentido no Parlamento, já na segunda-feira, mas pode haver emendas aprovadas que imponham novos obstáculos.
Como assim?
Os deputados a favor da permanência do Reino Unido na UE podem propor uma emenda que imponha um referendo de confirmação para que o acordo passe a ser lei.
Mas não há emendas também previstas para este sábado?
Sim, se John Bercow, o Presidente da Câmara dos Comuns, as aceitar, como escrevemos acima. Duas são propostas do SNP (Partido Nacional da Escócia), feroz opositor do Brexit: uma propõe travar todo o processo, enquanto uma segunda, do líder Ian Blackford, rejeita o acordo conseguido e pede um adiamento até pelo menos 31 de janeiro de 2020, para que se realizem novas eleições. Por fim, um antigo deputado conservador, agora independente, Oliver Letwin, apoiado por Trabalhistas e Liberais Democratas, propõe uma emenda que obriga Boris Johnson a pedir uma extensão do processo, mesmo que o acordo que ele traz seja aprovado. Isso destina-se a permitir o tempo necessário para que seja aprovada toda a legislação necessária – o receio é de Letwin é o de que o acordo, mesmo que aprovado, seja implementado de forma lenta, originando uma saída sem acordo automática a 31 de outubro. Em última instância, permite na mesma ao Reino Unido sair da UE a 31 de outubro, se tudo for célere.
E se o acordo não for aprovado?
A chamada proposta de lei Benn obriga o primeiro-ministro a pedir novo adiamento do Brexit à União Europeia. No entanto, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, já deu a entender que o pedido pode ser rejeitado, o que obrigaria o Reino Unido a uma saída desordenada ou a cancelar a ativação do artigo 50 do Tratado de Lisboa – ou seja, a desistir do Brexit.