Capelão num dos maiores hospitais do país, o de Santa Maria, em Lisboa, o padre Fernando Sampaio coordena, a nível nacional, este serviço da Igreja. Sabe, pela experiência de anos a acompanhar doentes - muitos deles em situação terminal -, que o apoio espiritual é fundamental nos processos de recuperação e cura. É por isso que lamenta que, no atual contexto, não tenha sido possível ajudar mais de perto os doentes com Covid.
Em entrevista à Renascença, Fernando Sampaio conta como os capelães se adaptaram às novas circunstâncias, recorrendo, por exemplo, a vídeo chamadas. E diz, ainda, que os deputados que insistem em legalizar a eutanásia "não aprenderam nada com a pandemia, porque “uma sociedade que marginaliza os mais frágeis é uma sociedade que deixa de ser humana”.
A atual pandemia prejudicou muito a assistência espiritual aos doentes?
De uma maneira geral, os doentes nunca estiveram privados dela, porque, tendo direito à assistência espiritual religiosa, podiam tê-la, solicitando-a. Portanto, as coisas variaram de acordo com os diferentes hospitais.
Estamos a falar sobretudo dos doentes não Covid que estavam internados?
Das duas coisas. Cada hospital teve a sua atitude face à assistência espiritual e religiosa e até houve capelães - porque alguns deles também eram de risco – que foram para casa, de acordo com a administração, e ficaram de chamada em casa, tal e qual como o teletrabalho. Houve outros que ficaram no seu posto, ficando também de chamada, inicialmente. A solução em cada hospital foi diferente de acordo com a administração e também com os capelães.
Houve assistência feita à distância, através de telefonemas?
Sim, foi possível fazer a assistência através de vídeo chamadas, em alguns hospitais. Os capelães que ficaram de serviço no próprio hospital, inicialmente, também ficaram a aguardar serem chamados, porque foi necessário clarificar as coisas, para que não se fosse visitar doentes e se andasse a levar a infeção para outros sítios.
A partir de determinada altura, houve capelães que começaram a fazer a assistência espiritual religiosa a doentes não Covid, porque aí já havia separação, já havia corredores próprios e, combinado com o pessoal serviço, fazendo as diligências necessárias, sobretudo ao nível da proteção, foi possível começar a fazer a assistência espiritual religiosa a esses doentes.
Neste momento, a assistência está normalizada?
Creio que sim, que está normalizada, que todos os capelães regressaram já ao hospital, aqueles que estavam em casa.
Neste contexto de pandemia, a assistência religiosa e espiritual foi ainda mais importante, tendo em conta que nem sequer havia visitas aos doentes?
A assistência espiritual e religiosa naturalmente que é importante, e a quem a demos a reação foi sempre muito boa, de gosto em receber a assistência, de ansiedade em tê-la também. Mas houve uma diminuição dessa assistência, em primeiro lugar porque, ao nível dos diferentes hospitais, os doentes não Covid também diminuíram muito. Os doentes foram para casa, não havia consultas, operações só de urgência... Portanto, houve uma diminuição grande da assistência espiritual. Aqueles que a pediram ficaram muito felizes em poder recebê-la, o que para nós foi significativo.
Alguns doentes tinham dificuldade de comunicação e foi importante o contributo das famílias e das comunidades paroquiais, no sentido de pedirem a visita aos seus doentes, inclusivamente para os doentes Covid. Isso foi importante.
O que é que o marcou mais neste período?
É difícil particularizar. Mas posso dizer que o que me chamou mais a atenção nesta fase foi nós, como capelães, estarmos muito restringidos e não podermos acompanhar os doentes com Covid…
Era possível ter sido diferente?
Eu creio que é possível fazer as coisas de forma diferente, com os cuidados devidos. Porque em Espanha e em Itália foi diferente, houve muito mais assistência aos doentes com Covid. Por cá, creio que se centrou muito a assistência aos doentes nos aspetos físicos, no corpo. E é importante centrar-se no corpo, naturalmente, porque sem a saúde física não vivemos, mas os doentes foram muito esquecidos no sentido do acompanhamento emocional e espiritual, sabendo nós que o acompanhamento espiritual em situações de ansiedade e de angústia, como acontece por exemplo em situações terminais, é extraordinariamente importante e dá alivio aos próprios doentes.
Creio que era possível fazer mais, mas eu também olho para este tempo como um tempo de aprendizagem. Nós não sabíamos, não tínhamos paradigmas, por isso este tempo deve ajudar-nos a aprender para fazermos melhor e se calhar diferente, tendo em atenção os próprios doentes e a totalidade da pessoa do doente, não apenas uma parte.
Para as equipas médicas, também se chegou à conclusão de que era importante o capelão, o assistente espiritual estar mais próximo?
Seria uma questão importante a sabe, mas, não lho posso dizer, não sei.
Neste momento, por exemplo, em Santa Maria, onde é capelão, já está a ser dada esta assistência a todos os doentes, Covid e não Covid?
Em relação aos doentes Covid, vamos quando somos chamados, mas são muito raras as chamadas. Houve aqui alguns problemas e a ideia de que os doentes não podem ter visitas generalizou-se para tudo o mais. Mas, quando vemos reportagens a partir de Itália e de Espanha, sobre a atuação dos capelães, fica-se surpreendido. Lá houve mais essa assistência, o que quer dizer que é possível.
Noutro plano, como é que encara a intenção dos deputados insistirem em legalizar a eutanásia nesta altura?
Penso que não aprenderam nada com este tempo da pandemia. Este tempo deu-nos a conhecer em primeiro lugar o quanto somos frágeis e o quanto necessitamos uns dos outros para enfrentar esta fragilidade. Face ao individualismo esta pandemia trouxe- ao de cima a importância da comunidade, da interajuda entre todos, e sobretudo trouxe ao de cima outro aspecto que me parece interessante, que é a importância da vida de todas as pessoas, não apenas de algumas, mas de todas. Todas as pessoas são preciosas, e toda a sociedade se mobilizou para defender a vida, a vida física.
Outra coisa interessante é que todos nós abdicámos de direitos fundamentais como a liberdade - de que tanto se fala na eutanásia -, em função da defesa da vida. E isto é curioso.
Creio que a pandemia nos trouxe uma forte lição, antes de mais de solidariedade e comunhão entre todos e da importância da vida, da nossa fragilidade e da nossa dimensão mortal, e do respeito por todas as vidas em todas as circunstâncias. Não há vidas menores e não há vidas maiores, não há vidas descartáveis e outras que não são descartáveis. O utilitarismo foi posto de parte nestas circunstâncias, as vidas não são úteis porque dão mais dinheiro. As vidas são preciosas porque são vidas humanas, e esta é uma interpelação tão forte, tão forte, que dá-me a impressão que não se percebeu nada, e que os partidos não refletiram nada sobre esta questão, que é uma questão extraordinariamente importante.
A Associação de Juristas Católicos considerou esta semana, em comunicado, que os deputados insistirem em legalizar a eutanásia é “ainda mais censurável” no atual contexto. Partilha dessa opinião?
Partilho. Os deputados estão arredados de todas as lições que podem sair desta pandemia. Uma sociedade que marginaliza os mais frágeis - e a eutanásia acaba por marginalizar, a seu tempo, todos os mais frágeis, não dando suporte social àqueles que necessitam, como acontece na Holanda e na Bélgica, etc - é uma sociedade que deixa de ser humana.
A legalização não será votada até final desta sessão legislativa, será retomada na próxima. Acredita que possa haver algum retrocesso neste processo por parte dos deputados, na sua intenção de voto?
Se, sobretudo alguns partidos, se deixassem iluminar um pouco por aquilo que, de facto, é a cultura humana, a filosofia humana e a verdadeira antropologia, se calhar, podiam mudar de atitude. Mas não confio muito nisso.