Leia na íntegra as razões de Marcelo para chumbar "barrigas de aluguer"
08-06-2016 - 00:44

Presidente da República devolveu diploma ao Parlamento para que possam ser integradas recomendações do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

O Presidente da República devolveu o diploma da gestação de substituição ou "barrigas de aluguer" à Assembleia da República, naquele que foi o primeiro veto de Marcelo Rebelo de Sousa.

Leia, na íntegra, a mensagem com as razões que levaram o chefe de Estado a vetar a legislação aprovada pela maioria dos deputados:


Presidente da República, com base nos pareceres no Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida, veta diploma sobre gestação de substituição

“Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia da República,

Dirijo-me a Vossa Excelência nos termos do nº 1 do Artigo 136º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República, relativa ao Decreto N.º 27/XIII, que regula o acesso à gestação de substituição, procedendo à terceira alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (procriação medicamente assistida).

O presente decreto foi aprovado, em votação final global, pelos deputados do Partido Socialista (com a exceção de dois), do Bloco de Esquerda (partido proponente), do Partido Ecologista Os Verdes, do Pessoas-Animais-Natureza e por vinte e quatro deputados do Partido Social Democrata. Votaram contra os deputados do Centro Democrático Social, do Partido Comunista Português e a maioria dos deputados do Partido Social Democrata, assim como dois deputados do Partido Socialista. Abstiveram-se três deputados do Partido Social-Democrata.

Foi, pois, uma deliberação que não correspondeu à divisão entre Grupos Parlamentares apoiantes do Governo e Grupos Parlamentares da Oposição, nem à clássica distinção entre direita e esquerda.

Por outro lado, um juízo sobre a matéria versada não pode nem deve ser formulado na estrita base de convicções ou posições pessoais do titular do órgão Presidente da República, mas atendendo, sobretudo, aos pareceres do Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida, cuja competência legal e de composição é inquestionável.

Ora, pelo Parecer 63/CNEV/2012, de 26 de março de 2012, sendo Presidente o Senhor Professor Doutor Miguel Oliveira e Silva e relator o Senhor Professor Doutor Jorge Reis Novais, o Conselho entendeu o seguinte:

«O Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida aceita, excepcionalmente, a gestação de substituição desde que a lei garanta a observância da totalidade das condições seguintes:

1. A gestante de substituição e o casal beneficiário estão cabalmente informados e esclarecidos, entre outros elementos igualmente necessários, sobre o significado e consequências da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal (por exemplo, epigenética), constando tal esclarecimento detalhado no consentimento informado escrito, assinado atempadamente.

2. O consentimento pode ser revogado pela gestante de substituição em qualquer momento até ao início do parto.

Neste caso a criança deve ser considerada para todos os efeitos sociais e jurídicos como filha de quem a deu à luz.

3. O contrato entre o casal beneficiário e a gestante de substituição deve incluir disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doença fetais e de eventual interrupção voluntária da gravidez.

4. A gestante de substituição e o casal beneficiário devem estar informados que a futura criança tem o pleno direito a conhecer as condições em que foi gerada.

5. A gestante de substituição não deve simultaneamente ser dadora de ovócitos na gestação em causa.

6. A gestante de substituição tem que ser saudável.

7. As motivações altruístas da gestante de substituição devem ser previamente avaliadas por equipa de saúde multidisciplinar, não envolvida no processo de PMA.

8. Quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na gestação (a nível fetal ou materno) são decididas exclusivamente pela gestante de substituição com o apoio de equipa multidisciplinar de saúde.

9. Cabe ao casal beneficiário, em conjunto com a gestante de substituição, decidir a forma de amamentação (devendo, em caso de conflito, prevalecer a opção do casal beneficiário).

10. É legalmente inaceitável a existência de uma relação de subordinação económica entre as partes envolvidas na gestação de substituição.

11. O contrato sobre a gestação de substituição (celebrado antes da gestação) não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição (tais como condicionamentos na alimentação, vestuário, profissão, vida sexual).

12. O embrião transferido para a gestante de substituição tem como progenitores gaméticos, pelo menos, um dos elementos do eventual casal beneficiário.

13. A lei sobre esta matéria e sua regulação complementar serão obrigatoriamente reavaliadas três anos após a respetiva entrada em vigor.»

Na altura, a deliberação foi tomada por maioria e a minoria tinha posição oposta à aceitação excepcional, mesmo com condições, da gestação de substituição.

Quatro anos depois, pelo Parecer 87/CNEV/2016,de 11 de Março de 2016, o mesmo Conselho, sendo Presidente o Senhor Professor Doutor João Lobo Antunes e relatores os Senhores Professores Doutores Rita Lobo Xavier, Jorge Soares e Lucília Nunes, deliberou reafirmar as exigências de 2012, em particular as seguintes:

«Considerando que a proposta de alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho inscrita no Projeto de Lei n.º 36/XIII (1ª) do Bloco de Esquerda, no que respeita ao regime da «gestação de substituição», visa essencialmente levantar a proibição vertida no artigo 8.º da mesma Lei,

1. O Conselho considera que não estão salvaguardados os direitos da criança a nascer e da mulher gestante, nem é feito o enquadramento adequado do contrato de gestação.

2. O Conselho entende ainda que o texto proposto não responde à maioria das objeções e condições que o Conselho, já no seu parecer 63/CNECV/2012, tinha considerado cumulativamente indispensáveis, de que se destacam:

- A informação ao casal beneficiário e à gestante de substituição sobre o significado e consequências da influência da gestante no desenvolvimento embrionário e fetal;

- Os termos da revogação do consentimento, e as suas consequências;

- A previsão de disposições contratuais para o caso da ocorrência de malformações ou doenças fetais e de eventual interrupção da gravidez;

- A decisão sobre quaisquer intercorrências de saúde ocorridas na gestação, quer a nível fetal, quer a nível materno;

- A não imposição de restrições de comportamentos à gestante de substituição.

3. Pelo que o Conselho não considera justificável, do ponto de vista ético, a alteração do regime jurídico da gestação de substituição nos termos propostos pela iniciativa legislativa.»

A deliberação não mereceu declaração de voto de vencido na matéria em causa.

Verifico que o decreto enviado para promulgação não acolhe as condições cumulativas formuladas pelo Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida, como claramente explicita a declaração de voto de vencido do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português.

As mencionadas condições foram enunciadas em duas deliberações com quatro anos de diferença, e com composições diversas do Conselho e traduziram sempre a perspectiva mais aberta a uma iniciativa legislativa neste domínio.

Por exemplo muito mais aberta do que a Resolução do Parlamento Europeu 2015/2229 (INI) de 17/12/2015, aprovada por 421 votos a favor, 86 contra e 116 abstenções, que condenou no seu parágrafo 115 a gestação de substituição e defendeu a sua proibição.

Assim sendo, entendo dever a Assembleia da República ter a oportunidade de ponderar, uma vez mais, se quer acolher as condições preconizadas pelo Conselho Nacional de Ética e para as Ciências da Vida, agora não consagradas ou mesmo afastadas.

Devolvo por conseguinte, sem promulgação, o Decreto N.º 27/XIII da Assembleia da República, que regula o acesso à gestação de substituição, procedendo à terceira alteração à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho (procriação medicamente assistida).