Fernando Pereira é português e um dos vice-presidentes da Google. Trabalha na área da inteligência artificial há cerca de 40 anos. Numa passagem por Lisboa, em entrevista à Renascença, fez uma antevisão do que pode ser a evolução do setor no futuro próximo.
Não acredita em “robôs humanos” e defende que o caminho da interação com as máquinas deve passar por uma simplificação da comunicação.
Licenciado em Matemática pela Faculdade de Ciências de Lisboa, Fernando Pereira considera que o termo inteligência artificial “confunde as pessoas”, porque as leva a pensar “que vamos fazer a máquina que imita um ser humano”.
O vice-presidente da Google sonha com o dia em que será possível falar com uma máquina de forma tão simples como dizer-lhe “esquece o que retiveste” e os dados pessoais são apagados.
Trabalha em inteligência artificial ainda antes de alguém saber o que é inteligência artificial… Como é que surgiu este interesse?
Comecei a interessar-me em inteligência artificial quando estava no princípio da faculdade do Técnico, aqui em Lisboa (1975). Uns colegas mais velhos tinham-se interessado por inteligência artificial e começaram a mostrar-me uns livros e umas coisas e eu comecei a interessar-me, embora depois eu tivesse saído do Técnico e ido para a Faculdade de Ciências, onde me licenciei em Matemática, aquilo estava mesmo a interessar-me muito, principalmente a parte da linguagem natural: como é que uma máquina poderá conversar com um ser humano de uma maneira natural e compreender o significado das palavras e das frases.
Daí acabei por ir fazer o doutoramento, em Edimburgo, em inteligência artificial, e depois disso, na altura quando acabei o doutoramento as opções em Portugal não eram grande coisa… Aqui, no princípio da década de 80, ainda estava tudo em convulsão e ofereceram-me uma posição nos Estados Unidos e desde então, de uma maneira ou de outra, tenho sempre trabalhado nesta área.
Apesar de já terem passado muitos anos e da evolução verificada, a questão da linguagem natural continua a ser um dos principais desafios da inteligência artificial?
Sim. Os problemas já estavam articulados no fim dos anos 50/60, antes de eu começar a trabalhar na área. As soluções é que não existiam e ainda hoje não existem completamente. As técnicas mudaram muito, em parte porque os computadores tornaram-se muito mais poderosos e nós começamos a poder compreender como é que podemos utilizar os dados da conversa, da escrita e da voz como aprendizagem automática para criar modelos computacionais que aproximam aspetos importantes da voz e da fala e da estrutura e do significado da língua, mas ainda muito longe do ser humano. Uma criança de três anos tem uma capacidade linguística e intelectual muito além do que qualquer uma das nossas máquinas pode fazer hoje.
Isso significará que, por exemplo, a evolução de robôs como a robot Sophia estará a estagnar?
Eu acho que esses robôs são mais espetáculo do que realidade. A realidade é o que vejo, nos últimos 12 anos que eu tenho estado a trabalhar na Google, o nível a que, por exemplo, o nosso motor de busca consegue compreender o que o utilizador procura com uma certa precisão, aumentou muito significativamente. Esse progresso é um progresso que é prático e útil no contexto de um motor de busca ou de um assistente ou de uma tradução automática, mas não é necessariamente aquilo que faz o espetáculo de um robô que pretende ser o que não é.
Isso nunca vamos ter, um robô humano?
Nunca, não sei, mas no tempo da minha vida, não me parece. Duas notas sobre esse assunto: não penso que a tecnologia e ciência cheguem aí na próxima década e não penso que seja útil ou necessário. O termo inteligência artificial foi inventado por um grupo de académicos nos anos 50 e é um termo, de certa maneira, confuso, confunde as pessoas. As pessoas pensam que vamos fazer a máquina que imita um ser humano ou que pretende ser um ser humano. Eu acho muito mais interessante pensar “como é que a gente faz com que as máquinas comuniquem connosco, nos nossos termos”. Hoje em dia, quem pode comunicar, consegue controlar, manipular e organizar computadores são pessoas com a minha formação, que sabem programar. Mas um dia todos, até uma criança de três anos, devia poder falar com uma máquina que está na sua casa ou na sua escola e “dizer faz isto, não faças aquilo” ou perguntar “porque é que isto aconteceu” e ter respostas razoáveis. Isto é, fazer máquinas que contribuem para o nosso conhecimento e nosso bem-estar e que contribuem para a nossa sociedade. Isto será um avanço da inteligência artificial, mas não é tentar substituir o ser humano. É uma visão diferente da inteligência artificial.
E cenários que também muitas vezes se veem nos filmes, em que se consegue ligar o cérebro a uma máquina e aprender em 10 minutos, por exemplo, todas as técnicas de karaté… Isto é algo que algum dia pode vir a ser realidade?
Em parte, isso é espetáculo. A nossa inteligência, a nossa língua e muitos outros aspetos da nossa vida estão extremamente conectados ao resto da nossa existência corporal. Não sei se leu os livros de António Damásio, mas ele demonstra experimentalmente esse tipo de conexão. Criar uma máquina que não tem a mesma experiência física, mas que nos compreendesse a esse nível de profundo, não penso que seja algo que nós podemos esperar nos tempos mais próximos. Mesmo a questão de conectar qualquer coisa ao nosso cérebro, para além do problema de requerer cirurgia, é que as técnicas que existem nos laboratórios neurológicos estão muito longe desse cenário.
Isso não me preocupa nada, nem faz sentido focar nisso. Recentemente uns colegas acabaram um projeto em que usaram técnicas de inteligência artificial para descobrir todos os circuitos do sistema nervoso um animal. Sabe que animal é que eles conseguiram descobrir o sistema nervoso completo, todos os neurónios, todas as suas conexões? Uma mosca! É o estado em que estamos. E isto foi um sucesso absolutamente espantoso, demorou sete anos de trabalho e é uma coisa extraordinária pela qual eu tenho imensa admiração. Mas, estamos tão longe de ter alguma compreensão dos mecanismos que permitem, por exemplo, estarmos aqui a falar, que as preocupações que devemos ter quanto a inteligência artificial é a preocupação do uso prático das técnicas que existem hoje ou que existem daqui a cinco anos. Isso é que eu acho que a sociedade se deve preocupar, não é os robôs que vão conquistar o mundo, mas sim com a utilização das técnicas que nós já temos para fins que sejam socialmente negativos.
E no seu grupo de trabalho, qual é o projeto em que estão a trabalhar que será o próximo grande anúncio? Há algum segredo que possa revelar?
[Risos] Não sei se posso revelar algum segredo, não tanto porque esteja a querer esconder alguma coisa, mas porque estas coisas têm uma grande dinâmica e não sei o que é que estarão a fazer hoje que vai mudar completamente o produto que nós vamos ter daqui a dois anos. Essas coisas mudam muito rapidamente. Em geral, acho que o que nós vamos ver é, em domínios limitados, sistemas que vão ter capacidade de conversar com o utilizador de uma maneira muito mais efetiva. Por exemplo, estou a tentar selecionar um filme para ver com a minha esposa e eu não tenho maneira de dizer ao Netflix, por exemplo, “não quero filmes violentos”. Isto é uma coisa triste, temos máquinas que podem fazer tanto por nós, mas não nos ouvem, são completamente surdas. O que penso que nós vamos poder fazer nos próximos anos é torná-las um bocadinho menos surdas.
Mas isso não vai contribuir para que as máquinas saibam cada vez mais tudo sobre nós e que os nossos dados fiquem cada vez mais vulneráveis a que sejam usados de forma errada?
A resposta é a mesma. Temos de dar ao utilizador maior controlo explícito e efetivo da máquina, do que ela se lembra e do que ela se esquece, aquilo que ela faz para nos ajudar e aquilo que nós queremos que a máquina ignore. Se for às definições de conta do Google pode controlar muita coisa, mas não nos termos de interação naturais. Os termos de interação e de controlo são bons para as máquinas, mas maus para os humanos. Temos de humanizar o controle das máquinas pelos humanos.
Então, nós como utilizadores temos que nos habituar a mandar as máquinas esquecer a nossa pegada digital, é isso?
Eu gostava mais que fosse simplesmente uma questão de nós podemos dizer “esquece tudo o que eu te disse”. O que seria uma coisa extraordinária porque não há maneira nenhuma de se fazer isso com uma pessoa. Eu gostava de atingir um ponto em que isso torna-se tão natural e tão fácil para o utilizador que não se torna uma carga, é uma coisa simples. Gostava de chegar a um ponto em que o relacionamento entre nós e as máquinas em que as pessoas têm um sentido genuíno de controlo, de poder, de segurança.