Construído para 2.300 pessoas, o campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, alberga atualmente 19 mil. A situação tornou-se explosiva e muito perigosa, sobretudo para mulheres e crianças. Uma funcionária portuguesa que está na ilha há quase dois anos avança que há, pelo menos, 1.200 menores desacompanhados.
A dimensão da tragédia não deixa incólume quem lá chega pela primeira vez. Foi o que se passou com Raul Manarte, um voluntário que chegou no final de janeiro e no dia 4 de fevereiro publicou um post em que narrava alguns dos horrores a que já tinha assistido.
Conta como nesse espaço de tempo seis crianças foram esfaqueadas e que conversou com um afegão que viu os seus irmãos degolados; que um em cada quatro menores que atende manifestam desejos de morrer e quase todos têm cortes autoinfligidos.
“Todas as noites acabo com sangue nas mãos”, resume.
Um ex-voluntário contactado pela Renascença diz não ter dúvidas da autenticidade do relato. “Eu estive em Mória em 2017 e posso confirmar que era assim. As condições são absolutamente desumanas. A sobrelotação era de tal ordem que as pessoas não tinham outra opção senão ficar nas tendas.”
“Todas as noites existiam conflitos e fogos. Como os guardas não têm capacidade para resolver a situação, a solução era fechar as partes dos campos onde os conflitos se desenrolavam. Ficavam presos como numa jaula a arder. Havia de facto uma casa de banho para cada 500 pessoas mas as mulheres e crianças tinham medo de lá ir à noite por temerem ser violadas pelo que faziam atrás da tenda (ou seja na entrada da tenda seguinte). Como Mória é uma colina, quando chovia, todos os dejetos escorriam para a base do campo onde as pessoas ficavam atoladas até aos tornozelos em dejetos”, continua o médico João Maria Ameal, concluindo que “isto foi em 2017, desde então tenho ouvido dizer que está pior.”
Dramatismo ou verdade? A Renascença conversou com Fabiana Faria, uma jovem de 23 anos que está na ilha de Lesbos, onde se encontra o campo, há quase dois anos. Começou como voluntária e agora está contratada, a trabalhar com uma organização que presta apoio jurídico aos refugiados.
Começamos com um número aterrador. Só em Moria, por entre os 19 mil refugiados, há pelo menos 1.200 menores desacompanhados. Ingenuamente perguntamos se estes não deviam estar num campo à parte? “O que faria sentido era nem sequer estarem na Grécia neste momento e os países europeus estarem a ajudar. A maioria são rapazes de 13, 14, 15, 16 ou 17 anos que não têm sequer uma tenda no campo.”
“Obviamente há partes do campo que estão designadas para os menores desacompanhados, mas neste momento há tantos aqui que não há espaço nessas secções do campo. Os menores desacompanhados neste momento são dos que caiem mais, entre todos os sistemas, que há aqui em Lesbos. É um dos maiores dramas.”
“E claro que este número é uma estimativa por baixo porque estes são os que são identificados como menores, porque há muitos deles que depois de serem registados são considerados adultos, mas na realidade são menores. Então é preciso lutar para que sejam considerados com a idade que efetivamente têm. Ou seja, há bem mais do que 1.200 menores desacompanhados em Lesbos nesta altura”, conclui.
Moria é seguro. Durante o dia…
Talvez por estar há mais tempo, Fabiana é mais contida na descrição do dia-a-dia em Moria. Em relação aos esfaqueamentos e às violações, por exemplo, diz que “se são diárias, quotidianas, se é banal, isso não posso dizer. Não tenho acesso aos registos. Mas o que posso dizer é que num campo com 19 mil pessoas severamente traumatizadas, infelizmente há muitas dessas situações a acontecer, e sim, os campos não são seguros neste momento para as pessoas lá ficarem.”
“Moria é seguro durante o dia – eu ando sozinha e nunca tive qualquer problema – mas à noite é outra história. As mulheres não vão sequer à casa de banho, usam fraldas, porque só no tempo que leva saírem com os filhos para ir à casa de banho, o que por vezes implica caminhar 20 minutos no escuro, infelizmente há muitos homens que as tentam magoar. E às vezes conseguem fazê-lo.”
Ainda assim, assegura, não se recorda de ouvir falar de um único caso de violência contra os voluntários e funcionários do campo. Pelo menos não da parte dos refugiados.
“A violência recente que houve na ilha contra voluntários – e eu não testemunhei o assunto – foi com grupos de extrema-direita que vieram à ilha, e habitantes da ilha também, que estão a ficar muito frustrados com a situação e atacaram voluntários e refugiados. E a atuação policial é mais no sentido de escalar a situação e os protestos pacíficos dos requerentes e refugiados do que acalmar a situação”, diz Fabiana.
Nunca chegou tanta gente como hoje
O drama dos refugiados que tentam chegar à Europa não melhorou nos últimos anos, simplesmente desapareceu das capas dos jornais e perdeu alguma importância no radar jornalístico.
Perante a enchente de pessoas o processo para obtenção de asilo foi acelerado, mas não no melhor sentido, considera Fabiana.
“Nunca houve tanta gente em Lesbos. Quando eu cheguei cá em março de 2018 não havia talvez um terço das chegadas diárias que há, ainda hoje, apesar do mau tempo. A situação está bem pior porque as estruturas que existem são as mesmas que existiam quando o campo tinha 11 mil pessoas. Portanto as coisas estão efetivamente bastante piores.”
“A nova lei posta em prática em janeiro mudou as coisas, há mais gente a ser rejeitada, o sistema de asilo é completamente diferente para as pessoas que acabaram de chegar. Uma pessoa chegaria e teria meses, para as pessoas que começaram a chegar a partir de 1 de janeiro demora 10 dias. Portanto estamos a ver imensas rejeições em comparação a dezembro e de pessoas em situações muito vulneráveis. Vimos um caso de uma mãe solteira da Síria, com três filhos, todos menores, e foi rejeitada”, lamenta.
Todos fazem falta
Fabiana está a tempo inteiro mas não são poucos os portugueses que oferecem semanas ou meses para estar com os refugiados. Costumam ser médicos, enfermeiros, mas todos fazem falta, diz.
“Falta tudo, desde ajuda médica a ajuda jurídica, brincar com os miúdos, treinos de futebol, o que seja.”
“Se não têm tempo, podem auxiliar com apoio financeiro às organizações que estão aqui nos campos e eu diria, mais que tudo, mandar emails aos líderes nacionais e europeus e assegurar que estamos a fazer chegar a mensagem de que isto é um tratamento desumano, de pessoas que estão a fugir de guerras e torturas e desespero para chegar cá e serem recebidas num campo como Mória, numa tenda”, critica.
“Está um frio de morrer hoje. Estão quatro graus, está a chover torrencialmente, está toda a gente molhada e não faz sentido nenhum. Devíamos estar a erguer estátuas às pessoas que chegaram cá e em vez disso estamos a pô-las em campos que pioram e traumatizam ainda mais as do que tudo o que as pessoas já passaram para chegar do Afeganistão, Irão, Congo e Angola”, conclui.