O direito à habitação é uma das grandes preocupações dos jovens, que em Portugal não conseguem autonomizar-se e saem cada vez mais tarde de casa dos pais (em média aos 33,6 anos, segundo o Euroestat, muito acima da média comunitária que está nos 26,5 anos). Mas, a crise é transversal a toda a sociedade, e agravou-se para todos, ainda mais para quem já vivia antes em dificuldades.
Teresa Mamede, de 28 anos, é jurista e ativista da ‘Habita!’, associação pelo direito à habitação e à cidade, que foi uma das promotoras da manifestação de 1 de abril, em Lisboa. Diz que “o direito à habitação tem sido dos mais maltratados, política e socialmente”, mas “não individualizaria nos jovens”.
Para a ‘Habita!’, que começou por se dedicar aos imigrantes, os problemas de habitação são gerais e coletivos e “têm de ter uma resposta coletiva”. A associação funciona através de “assembleias de resistência, duas vezes por mês”, em que qualquer pessoa pode expôr o seu problema, e partilhar possíveis soluções. A luta é de todos, diz, porque “sem casa não há mais nada. É muito mais difícil resolver o que quer que seja se não se tiver uma casa”.
Pacote Mais Habitação “não é realista”
Para Teresa Mamede “as propostas do governo não tocam nos fundamentos da crise da habitação e não resolvem o problema no imediato, que é a falta de casas disponíveis no mercado de arrendamento, os preços que já não conseguimos pagar e não pára a especulação imobiliária. O Estado está completamente refém do imobiliário”, sublinha, lamentando que a maior parte das medidas anunciadas impliquem apenas a garantia de que “os proprietários, os senhorios e os fundos de investimento não vão ter nenhuma perda no seu lucro”.
Daniel Lobo concorda. O arquiteto, de 40 anos, está a fazer o doutoramento em urbanismo e integra a Comissão Justiça, Paz e Ecologia da CIRP, a Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal. Tem trabalhado junto da população desfavorecida do bairro da Torre, em Loures, que foi alvo de realojamento ao longo dos últimos seis anos. Lamenta que em termos de políticas públicas nunca se tenha um olhar de futuro, e acha que o pacote aprovado pelo governo “não é realista” e revela que “há dificuldade em ler o que está a acontecer no terreno. Vemos o Banco Alimentar sem capacidade de resposta, e todos os outros problemas que já existiam nestes bairros continuam e agravaram-se”.
“A pressa que temos em gastar em pouco tempo este pacote imenso de dinheiro que temos, do PRR, é algo absurdo… em vez de ser usado para pensarmos mais a longo prazo, com modelos que criem uma melhor democracia, e uma melhor qualidade na construção, reduzindo custos, não… vamos fazer os mesmos erros, com as desigualdades a aumentarem”, refere.
Admite que os bairros sociais “estão muito mal pensados”, mas há “modelos de intervenção que não segregam, que já são conhecidos desde os anos 50 e que funcionam, têm sido aplicados um pouco por toda a Europa e América Latina. São modelos que promovem uma melhor habitação, uma melhor integração das pessoas e as envolvem na produção, não da habitação, mas do habitat. É uma diferença abismal, e todas estas lições de décadas já podiam ter sido apreendidas”, sublinha.
A habitação é “um direito humano”
Em novembro de 2022 a Comissão Justiça, Paz e Ecologia da CIRP divulgou a ‘Carta da Habitação’, que considera que ter casa é um “direito humano” e alerta para as condições indignas em que muitos portugueses vivem.
A questão da sobrelotação, que começou por ser denunciada a propósito do acolhimento de trabalhadores imigrantes em Odemira, é cada vez mais uma realidade nas grandes cidades. “É a única forma de as pessoas conseguirem pagar uma renda”, refere Teresa Mamede, que alerta para o crescimento de anúncios online de “beliches a arrendar por 250, 350 euros” cada um, em quartos com várias camas. “É uma estratégia promovida pelos senhorios. Já não é só uma coisa que as pessoas fazem por necessidade extrema, por não terem outras opções, mas é uma forma dos senhorios conseguirem ganhar o máximo dinheiro possível. É esta lógica em que vivemos”.
Na manifestação de 1 de abril, em Lisboa, a ‘Habita!’, e as outras associações envolvidas no protesto, divulgaram o manifesto ‘Casa para viver’, que lembra que as rendas subiram 40% nos últimos cinco anos, aumentaram as penhoras, os despejos e demolições, e agravaram-se as condições de saúde física e mental de muitas pessoas, que têm de escolher entre pagar a renda ou pôr comida na mesa.
Semanalmente chegam à ‘Habita!’ “casos de pessoas em desespero”, porque foram alvo de despejo ou de “demolições em bairros de autoconstrução, pessoas que são vítimas de bullying por parte dos senhorios, e que de repente ficam sem água ou sem luz. Pessoas que estão a viver em casas perfeitamente insalubres e que por isso estão a ter graves problemas de saúde. Pessoas que têm que partilhar casa e muitas vezes sem contrato”, exemplifica Teresa.
Com as rendas inacessíveis à bolsa da maioria dos portugueses, será que o Estado devia impor tetos máximos? “Para nós faz todo o sentido, mas não podemos implementar medidas de controle de rendas que impliquem a manutenção dos preços que existem atualmente, porque estão completamente desfasados da capacidade económica da maior parte das pessoas. As rendas devem ser controladas, e a única forma de o fazer é indexando o valor das rendas ao valor real do trabalho. As rendas têm de estar diretamente ligadas aos salários reais, e nunca devem implicar uma taxa de esforço superior a 20%".
"Meio milhão de pessoas a viver em pobreza habitacional”
Constança Dias, de 27 anos, é designer de formação. Começou por ser voluntária do ‘Just a Change’ em 2016, nas obras, mas em 2019 passou a trabalhar da comunicação deste projeto reabilita casas e ajuda a reconstruir vidas. Diz que ainda há muita pobreza habitacional no país. “Estima-se que haja cerca de meio milhão de pessoas” a viver sem condições.
“Não são só problemas estruturais, paredes em risco de cair, telhados que deixam passar água, não haver eletricidade ou ligação aos esgotos. Também é a falta de conforto, a falta de dignidade na habitação, e acho que esta parte está-se a tornar muito mais extensa do que o meio milhão de pessoas de que falamos”.
Constança concorda que a casa “é o ponto de partida” para todas as outras vertentes da vida. “Uma pessoa que viva sem casa de banho muito dificilmente vai conseguir manter-se apresentável para poder ir procurar ou manter o emprego”. Nos bairros sociais, em particular, os problemas “são cumulativos”, porque “foram desde sempre muito mal construídos. As casas são frias, com imensos problemas de humidade e salubridade, que causam depois uma série de outros problemas de saúde”.
Desde que foi criado, há 12 anos, o ‘Just a Change’ já permitiu recuperar centenas de casas. “Cerca de 350, mas este ano vamos chegar às 450. Nos primeiros cinco anos éramos só um grupo de amigos, era quem estava disponível e passava a palavra. Por isso nos primeiros cinco anos fizemos 25 casas, e de repente, só este ano vamos fazer 100, estamos em crescimento”.
“Estamos aqui nesta missão de garantir que as pessoas têm um espaço que possam chamar casa e que não seja só quatro paredes e um teto”, afirma.
O projeto tem sede em Lisboa e Porto, mas atuam em Portugal inteiro, durante todo o ano. Como os voluntários são maioritariamente universitários, funcionam de acordo com o calendário letivo, e no verão descentralizam e fazem um programa mais intensivo, com apoio das câmaras municipais ou juntas de freguesia, mas também têm “protocolos com empresas privadas, com associações e financiamento da União Europeia. Não temos só uma linha de financiamento”.
E como é que sabem das casas que precisam de intervenção? “Qualquer pessoa pode sinalizar uma casa sua, ou um caso que conheça, através do nosso site. Temos uma plataforma para se sinalizar esses casos. Mas, a grande maioria das casas, na verdade, chegam-nos através dos departamentos da assistência social das localidades”.
Constança concorda que ter casa “é o ponto de partida” para todas as outras vertentes da vida. “Uma pessoa que viva sem casa de banho muito dificilmente vai conseguir manter-se apresentável para poder ir procurar ou manter o emprego”.
“As mulheres estão na frente desta luta”
Para Daniel Lobo, a questão da sobrelotação das casas, e não só, revela que “estamos num novo retrocesso em termos sociais”. Como arquiteto garante que é possível humanizar mais as cidades e encontrar “outros modelos de produção de habitat, que se libertem do duopólio Estado-mercado, contribuam para uma cidadania mais consciente, ativa e responsável, e apontem já caminhos para uma gestão mais participativa e democrática do processo de urbanização”.
“A ideia de que quem não é especialista não tem capacidade, e que só o Estado ou aqueles interesses do costume podem fazer e decidir, isso não é verdade!”, afirma, lembrando o envolvimento das pessoas nos bairros sociais onde tem trabalhado. “É uma experiência que já vivi, e posso dizer que funciona, é incrível”.
“Eu sou cristão, católico. E há uma perspetiva mais espiritual do que acontece quando um coletivo se junta e começa a debater um tema para tentar encontrar uma solução. Parece que de repente há algo que nos une, e a solução é construída com os vários contributos que as pessoas vão dando em assembleia. Para mim foi uma grande lição de humildade”.
A luta coletiva é também uma posta da ‘Habita!’, e Teresa lembra que “a maior parte das pessoas que estão nas assembleias são mulheres. São elas que estão na linha de frente desta luta, sem dúvida alguma, e recusam ser vistas como vítimas de uma crise. Elas são as protagonistas de uma luta”. Uma luta que envolve também a nova geração, como se viu na manifestação de abril. “Estimamos que eram cerca de 30.000 pessoas e muitos eram jovens”.
No ‘Just a Change’ a grande força mobilizadora e de trabalho são, também, os jovens. E Constança Dias acredita que quem é voluntário hoje fará a diferença amanhã, porque é impactante contactar com a realidade da pobreza habitacional. “Há aqui claramente também uma vertente de educação. Os voluntários são jovens adultos que estão a entrar no mercado de trabalho, a definir os seus futuros e as suas áreas de trabalho e são pessoas que muito provavelmente vão ajudar no futuro”.
Perguntas ao Papa
Como em todos os episódios do ‘Somar Ideias’, e tendo a JMJ 2023 como pano de fundo, os participantes foram convidados a partilhar o que diriam ao Papa Francisco, se tivessem oportunidade.
Constança Dias quereria saber como é que o Papa gostaria de ser lembrado. “O que é que ele gostava que dissessem? Que ‘foi o Papa que’?... tenho curiosidade”.
Teresa Mamede iria propôr uma reflexão. “Recordando que em 2014, num encontro mundial de movimentos populares, o Papa disse ‘nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos’, propor-lhe-ia uma reflexão sobre a forma como eventos como a JMJ se incompatibilizam com esta mensagem”, dado que em sua opinião “este tipo de mega eventos tem um impacto muito nefasto nas cidades, porque intensifica o turismo e faz aumentar os preços das casas”.
Como católico, Daniel Lobo diz-se “muito grato por tudo o que o Papa tem feito e dito”, mas infelizmente, diz, entre as suas orientações e a prática “há uma longa distância. Então, seria mais essa reflexão: que nos ajudasse a perceber como é que podemos pôr em prática as suas orientações, o mais depressa e o melhor possível”.