Entrevistada em direto na manhã da Renascença, a diretora do secretariado português da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) não escondeu a emoção da visita do Papa ao Iraque, lembrando que, há meia dúzia de anos, a visita a Mossul, bastião do Estado Islâmico, seria “impensável”.
Só a presença do Papa é de um “simbolismo extraordinário”, em particular para os cristãos, que são hoje uma minoria ainda mais reduzida, mas com “uma fé muito viva, a que não podemos ficar indiferentes”, sublinhou.
Catarina Martins Bettencourt falou ainda do apoio que a AIS continua a dar no terreno, considerando que, a par da reconstrução, é urgente “restabelecer a confiança” no Iraque, e que aí os líderes religiosos têm um “papel fundamental”.
A AIS foi das vozes mais ativas na denúncia da perseguição aos cristãos e, no caso do Iraque, alertou para o risco de desaparecimento da presença cristã por causa da perseguição dos radicais islâmicos, depois de 2014. Nesta visita do Papa, hoje em particular, já houve momentos muito marcantes. O que destaca? O que a impressionou mais até agora?
Esta viagem tem sido impressionante, as expetativas estão a ser ultrapassadas no meu ponto de vista. A visita a Mossul era impensável! O Papa poder estar presente numa cidade que esteve ocupada durante três anos pelo autoproclamado Estado Islâmico, com a destruição de tantos símbolos religiosos das várias religiões, ter hoje a presença de um Papa é de um simbolismo extraordinário.
Estive a ver imagens do Papa em Qaraqosh, na Igreja da Imaculada Conceição, e é extraordinário sentir e ver no rosto destes cristãos esta emoção tão grande de terem o Papa junto deles. É, de facto, um sinal de esperança extraordinário que está a ser dado neste momento à comunidade cristã no Iraque, que tem sofrido tanto nos últimos anos, como sabemos. Ver como é possível, apesar de todas as dificuldades e de tudo o que tem acontecido, como continua uma comunidade viva e que aguardou tantos anos por este momento, para mim foi até emocionante ver as imagens do Papa a rezar o Angelus na igreja, com a comunidade cristã. É de facto muito, muito recompensador para aquelas pessoas que sofreram tanto nestes anos.
Em 2015, 2016, seria inimaginável ver o Papa na igreja da Imaculada Conceição, onde ele esteve esta manhã, que chegou a ser transformada num campo de tiro pelo Estado Islâmico. Esta ideia de recomeçar e reconstruir, que o Papa tem sublinhado nesta viagem, é importante para os cristãos no Iraque e desta região? Que há esperança e que é possível recomeçar?
Sem dúvida. Os cristãos nos Iraque têm-nos dado nos últimos anos um testemunho de resiliência, de esperança, de uma fé muito viva, a que não podemos ficar indiferentes. Apesar da diminuição drástica da presença cristã no Iraque, continua a haver cristãos que querem permanecer, porque as suas famílias sempre viveram ali, são ali as suas terras, o seu lugar. E esta ida do Papa, esta mensagem de que é possível reconstruir, de que é possível este respeito mútuo, o diálogo, a sã convivência, é o sinal de esperança de que esta comunidade necessitava há tantos anos.
Já em 2010, quando falava com o atual Patriarca caldeu ele dizia-me que queria muito que o Papa visitasse o Iraque. Esta visita já era aguardada há muitos anos, e hoje, 2021, depois de todo o sofrimento causado pela passagem do auto-proclamado Estado islâmico, que levou a violência a pontos que nunca vimos contra comunidades religiosas, esta ideia que hoje o Papa passa, de que é possível reconstruir e recomeçar é de facto extraordinária, é uma mensagem de paz muito importante para esta comunidade.
Efetivamente temos assistido ao longo dos anos à diminuição drástica da comunidade cristã, e podemos estar a assistir ao fim da presença de uma comunidade num país que foi o berço das civilizações, onde tudo começou.
E onde os cristãos estão desde o século I...
Exatamente, não começou agora, estão lá há muito tempo, e assistirmos a esta queda dramática dos números... em 2003 viviam no Iraque 1 milhão e meio de cristãos, e hoje serão cerca de 250 mil. É, de facto, uma diminuição drástica, pode ser o fim desta presença.
E a visita do Papa pode ajudar a consolidar essa presença dos que já regressaram entretanto e estão a estabelecer-se de novo?
Sem dúvida, esta mensagem de esperança do Papa, de que esta comunidade não está só, que é lembrada, suportada e apoiada por todos nós, é extremamente importante porque é preciso parar esta sangria que tem havido da comunidade cristã, mas para isso é preciso que estejam estabelecidas uma série de condições, como o respeito pela liberdade religiosa, voltar a ter as casas e os negócios, recuperar tudo aquilo que perderam nestes anos, é preciso que haja segurança e estabilidade no país para isso acontecer. Portanto, esta ida do Papa é fundamental para esta comunidade ter essa esperança num futuro que poderá ser mais risonho do que se imaginava há uns anos.
Ontem o primeiro-ministro iraquiano anunciou que o dia 6 de março vai passar a ser o Dia Nacional da Tolerância e Coexistência no Iraque, numa homenagem ao encontro que o Papa manteve com o aiatola al-Sistani. É um sinal de esperança também, e uma consequência já direta desta visita do Papa?
Sim, esta iniciativa do governo de declarar este dia e o encontro do Papa com o líder xiita são muito importantes. A mensagem que saiu do próprio encontro é muito importante, no sentido de mostrar que há lugar para a comunidade cristã.
Não nos podemos esquecer que a comunidade cristã tem sido muito importante no Iraque, é uma comunidade com estudos, com formação, era muito importante no setor da educação, da saúde, da justiça, é uma comunidade que traz uma mais valia muito grande ao país, por isso um líder com al-Sistani vir dizer que é preciso haver este respeito mútuo e o diálogo entre as religiões e com a comunidade cristã é, de facto, um sinal muito positivo, e saiu já este gesto concreto do governo, de instituir este Dia Nacional.
É muito importante haver este trabalho de reconciliação no Iraque, porque as feridas são muito grandes. Estes dois líderes juntarem-se e passarem esta mensagem é fundamental para que haja pacificação entre as várias comunidades no Iraque.
Temos visto sinais de esperança nesta viagem, mas quando se acompanha os testemunhos e as declarações de quem tem falado diante do Papa, também é possível perceber que ainda há muitas preocupações, e uma delas tem a ver com a recuperação da confiança. Não basta reconstruir as casas, as igrejas e recuperar os negócios - e já falaremos do que tem sido feito pela AIS -, mas a reconstrução da confiança, que as pessoas que emigraram ou que estão refugiadas noutras locais possam confiar o suficiente para ousar o regresso, isso vai levar mais tempo?
Sem dúvida. É preciso que os vários líderes das várias religiões se juntem, deem estes sinais positivos e trabalhem em conjunto com cada comunidade, porque estamos a falar de comunidades que foram espoliadas de tudo. No caso de Mossul, onde o Papa esteve hoje, foram vizinhos, amigos de longa data, que retiraram tudo às comunidades cristãs e a yazidis. Tudo isto deixa marcas que imaginamos muito profundas, e sarar estas feridas, restabelecer a confiança no vizinho, no amigo, que foi muitas vezes quem os traiu há sete anos, é preciso fazer um trabalho muito grande, e sem dúvida que os líderes religiosos terão um papel fundamental no restabelecimento desta confiança, que é tão necessária neste momento para a comunidade cristã recomeçar uma nova etapa.
Falou dos yazidis. No vôo de Roma até Bagdad uma jornalista espanhola entregou ao Papa documentação que lhe foi passada pela Fundação AIS, e o Papa manifestou-se muito impressionado com a lista de preços das escravas cristãs e yazidis que o Estado Islâmico vendia. Estamos a falar de feridas muito profundas e muito recentes...
Sim, sim, preços que as famílias e as várias comunidades tiveram que pagar. Alguns infelizmente não conseguiram recuperar essas jovens raptadas e usadas como escravas para serem vendidas, para conseguirem fundos para os seus fins, tudo isto deixa feridas que não conseguimos imaginar...
Este estabelecer de preços de vidas humanas, a que já não assistíamos há mais de um século, é um retrocesso civilizacional, ver pessoas que são vendidas… Não podemos atribuir um valor monetário a estas vidas, a estas jovens que sofreram na pele um calvário, e acredito que será muito difícil de ultrapassar. Vai ser difícil conseguir voltar a ter confiança nesta comunidade que lhes tirou tudo o que tinham na vida.
A invasão dos radicais islâmicos aconteceu em agosto de 2014 e a Catarina visitou a região pouco depois, em 2015, passando por Erbil, no Curdistão iraquiano. A AIS tem estado a apoiar os cristãos, desde essa altura, assegurando a sua sobrevivência. Que projetos é que estão no terreno?
Desde o dia 6 de agosto de 2014, a AIS foi ao terreno, um pequeno grupo deslocou-se ao Curdistão, e está a ajudar esta comunidade desde o primeiro momento. Estas pessoas saíram das suas casas sem nada, apenas com a roupa que tinham no corpo, porque a perceção que tinham na altura é que seria uma questão de dois ou três dias, antes de tudo regressar ao normal e que o Estado Islâmico seria expulso daquela região. Na realidade demorou três anos até à sua expulsão.
Quando estive no Iraque, a ajuda prestada pela AIS era, sem dúvida, para o básico, o essencial do dia a dia, desde a alimentação à medicação, o aluguer de casas, construção de contentores, de campos de refugiados, para estas comunidades.
O autoproclamado Estado Islâmico foi expulso em 2017 e, desde então, temos estado nesta tentativa de ajudar as comunidades a regressarem às suas aldeias, às suas vilas ancestrais, com a reconstrução de casas, de infraestruturas necessárias para que a comunidade esteja. Esse é o grande apoio da AIS, neste momento, mas continuamos também com a questão alimentar, a saúde, a educação.
Não nos podemos esquecer de que a comunidade cristã é também marginalizada, discriminada, no acesso ao mercado de trabalho. O cartão de cidadão no Iraque tem inscrita a religião, e numa entrevista de emprego os cristãos são discriminados. É uma comunidade que perdeu tudo, não tem trabalho, não há capacidade para reconstruir, não há capacidade para sobreviver. Neste momento, é preciso ajudá-los a recuperar os seus negócios, a sua esperança, que os jovens continuem a estudar.
Aliás, no contexto da viagem do Papa, a AIS lançou uma campanha de apoio à formação das novas gerações…
Para nós é uma prioridade apoiar as novas gerações, ajudar os jovens a ficar. É este sinal de esperança que é preciso dar à comunidade. Se conseguirmos dar essa oportunidade de estudo aos filhos, eles vão sentir-se mais tranquilos, como pais, estão a oferecer uma ferramenta para o futuro.
O lançamento deste apoio, com bolsas de estudo, para 150 jovens, num total de 1,5 milhões de euros, quer permitir que os estudantes possam ir para a Universidade Católica de Erbil, um projeto que nasceu com o arcebispo local, D. Bashar Warda. São sinais de que a comunidade precisa, ferramentas para que estes jovens possam, amanhã, trabalhar, estar inseridos no mercado laboral, e permanecer com as suas famílias no Iraque. É aqui que pode residir a esperança desta comunidade e nós, AIS, temos estado ao lado da Igreja a tentar ajudá-la a sobreviver, a conseguir manter-se e dar um testemunho de fé.
Qual o valor da ajuda que já deram?
Desde 2014 até agora, foram 48 milhões de euros, praticamente 49. É uma ajuda muito significativa, mas, infelizmente, é preciso que muito mais instituições ajudem, porque as necessidades são muitas. A comunidade cristã não tem capacidade, por si só, de reconstruir tudo o que foi destruído. São precisas muitas obras, infraestruturas – que vão desde o saneamento básico até à reconstrução de escolas, hospitais – e isso só se faz com a ajuda de instituições internacionais, o Governo também ainda não consegue. São valores astronómicos e é preciso a ajuda de todos para dar esperança a estas comunidades que estão privadas de tudo há tantos anos.
Os portugueses têm sido sensíveis a esta necessidade?
Sem dúvida. A Igreja da Imaculada Conceição, onde hoje esteve o Papa, foi reconstruída também com a ajuda dos benfeitores da AIS, que em Portugal têm sido de uma generosidade extrema para com esta comunidade. Sentiram muito estas necessidades, o sofrimento desta Igreja.
Nós temos dinamizado correntes de oração, campanhas de solidariedade, e tem sido uma resposta extraordinária. Um bocadinho do que o Papa está a dizer, de tudo o que vamos vendo, é também graças ao esforço dos benfeitores portugueses da AIS, que têm sido extraordinários neste apoio incondicional a esta comunidade tão sofrida.
Este sábado, em Ur, falou-se num sonho: o potencial que esta terra tem como destino de peregrinação religiosa. Estamos a falar de muitos locais bíblicos, por exemplo. A estabilização do Iraque pode fazer com que, no futuro, isto seja uma realidade?
Esperemos que sim. Nós temos de pensar o Iraque e toda a região como uma zona onde estão as nossas raízes, enquanto comunidade cristã. Haver paz, poder ter a possibilidade de visitar os locais onde tudo começou, é uma oportunidade histórica.
O Iraque é um país extremamente rico que está a viver uma situação económica gravíssima, por diversos fatores, desde a corrupção à ocupação de parte do território pelo Estado Islâmico. Espero, sinceramente, que este país possa finalmente viver em paz, porque é um país riquíssimo, com um dos subsolos mais ricos do mundo, e há possibilidade de todas as comunidades viverem com bem-estar. É preciso que haja entendimento entre as várias religiões, que haja paz, e se faça este caminho para que possa ser, também, um lugar de peregrinação. Seria, para nós, a possibilidade de visitar as nossas raízes, o princípio de tudo, algo extraordinário.