Caso Tancos volta a tribunal para reescrever decisão três anos depois
22-11-2024 - 06:00
 • Liliana Monteiro

Tribunal da Relação de Évora ordenou a repetição do acórdão limpo de prova recolhida com recurso a metadados. Acórdão do caso foi conhecido em 2022 e condenou 11 arguidos, três a prisão efetiva, entre eles o autor confesso do roubo. Já o ex-diretor e o ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar ficaram com pena suspensa.

Quase três anos depois do acórdão do caso de Tancos ter sido lido pelo Tribunal de Santarém, a sessão volta esta sexta-feira a ser reaberta para que o coletivo de juízes resolva em audiência as orientações dadas pelo Tribunal da Relação de Évora.

Em fevereiro do ano passado, os juízes desembargadores, em resposta a recursos de alguns arguidos, decidiram anular parte do acórdão do processo de Tancos (proferido em janeiro de 2022), aquela que tinha tido como base de prova metadados, isto é, comunicações e localizações apontadas a arguidos.

Ao coletivo de juízes caberá agora refazer a decisão final do caso, decidindo se terá, ou não, de analisar de novo prova recolhida no processo ou até mesmo repetir diligências.

“Pode manter tudo porque do ponto de vista técnico há raciocínios plausíveis. É considerar que este meio de prova não contamina a confissão. Os arguidos confessaram os factos e basta isso para que tudo se mantenha, mas se os arguidos soubessem que os metadados eram nulos não tinham confessado”, explica Melo Alves, advogado de defesa do autor confesso do furto do material do armamento de Tancos, deixando antever que, se assim for, o caso vai continuar a correr nos tribunais superiores com recursos a contestar isso mesmo.

"Metadados contaminaram toda a decisão"

João Paulino foi um dos três arguidos condenados a prisão efetiva, no seu caso oito anos. “O meu constituinte foi condenado por furto e tráfico de droga e estou convencido que se este meio de prova [metadados] não fosse válido era discutível se ele podia, ou não, ser condenado por furto”, diz Melo Alves.

"A questão que se coloca é que há arguidos que confessaram os factos, mas se soubessem que os metadados eram nulos não teriam confessado. Os metadados contaminaram toda a decisão final do tribunal.”

Foi em junho de 2017 que o Exército português comunicou o desaparecimento de armamento de paióis do campo militar de Tancos: diversas munições, explosivos, granadas de gás lacrimogéneo, etc... Tinham desaparecido durante a noite/madrugada, entre duas rondas. O exército admitia o desconforto pelo ocorrido, dizendo que tinha sido atingido "no orgulho e prestígio”.

Sensivelmente quatro meses depois, as munições eram recuperadas e o anuncio era feito pela Policia Judiciária Militar com alegado conhecimento de altas patentes da GNR. O material era localizado na região da Chamusca, no distrito de Santarém, mas mais tarde percebe-se que não estava tudo e a suspeita de encenação envolvendo a Polícia Judiciária Militar, e até do ministro da defesa Azeredo Lopes, leva a uma operação que constitui vários arguidos.

Após o desaparecimento das munições logo se abriram várias frentes de investigação: a da Polícia Judiciária Militar (PJM), o Ministério Público abre inquérito por suspeitas de associação criminosa, tráfico de armas internacional e terrorismo, também o Exército abre inquérito e na política é criada uma comissão parlamentar de inquérito.

O caso fez cair, em outubro e 2018, o ministro da Defesa da altura, Azeredo Lopes, que chegou a dizer que, no limite, “poderia não ter havido furto nenhum”, porque “não existe prova visual, nem testemunhal, nem confissão", levou à substituição de chefias das unidades de Tancos, à queda do Chefe de Estado Maior do Exército Rovisco Duarte.

Em setembro de 2018, a Polícia Judiciária deteve durante a “Operação Húbris” o diretor-geral da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira, três militares da GNR, assim como militares da PJM e um civil.

A acusação é conhecida em setembro de 2019, dois anos depois do desaparecimento do material, e aponta para crimes de terrorismo, associação criminosa, falsificação, tráfico influências e abuso de poder, entre outros, considera que oito arguidos estão diretamente relacionados com o furto, os restantes 14 são suspeitos da encenação.

Os arguidos pediram instrução para tentar evitar que o caso seguisse para julgamento, mas o juiz Carlos Alexandre decidiu mandar tudo para a barra do tribunal nos exatos termos da acusação feita pelo Ministério Público.

A decisão instrutória foi conhecida a 26 de junho de 2020 e, cinco meses depois, começava o julgamento que viria a durar dois anos, terminando em janeiro de 2022 com a condenação de 11 dos 32 arguidos.

Foram condenados a penas de prisão efetivas o autor confesso do furto, João Paulino, com a pena mais grave, e os dois homens que o ajudaram a retirar o material militar dos paióis de Tancos na noite de 28 de junho de 2017: João Pais e Hugo Santos. Os três foram condenados pelo crime de terrorismo, em coautoria material, e João Paulino e Hugo Santos também por tráfico e outras atividades ilícitas, tendo o cúmulo jurídico resultado numa pena de prisão efetiva de oito anos para João Paulino, de cinco anos para João Pais e de sete anos e seis meses para Hugo Santos.

O ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes foi absolvido dos crimes de denegação de justiça e prevaricação, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder e denegação de justiça.

O Tribunal condenou o ex-diretor e o ex-porta-voz da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira e Vasco Brazão, respetivamente, a penas suspensas. A mesma pena foi aplicada ao major Roberto Pinto da Costa, inspetor da PJM, e ao ex-sargento chefe do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé Lima Santos.

Os recursos junto do Tribunal da Relação de Évora não tardaram, os desembargadores consideraram que o uso de metadados, considerados inconstitucionais pelo Palácio Ratton, obriga à elaboração de novo acórdão. Os advogados consideram que há condenações injustas de quem confessou crimes, mas não o faria se soubesse que as provas eram inválidas.