Tal como toda a pessoa que ocupa um lugar cimeiro na cena nacional ou internacional, o Papa beneficia de um círculo de conhecedores que tem ajudado a construir a sua imagem. Diga-se em benefício do próprio que o Papa Francisco é aquela «persona», mais do que «personagem», que teve a sua imagem pintada nos muros do Vaticano - firmemente ancorado na emblemática pasta preta - como um super-herói, um desenho potente e divertidíssimo que o próprio pediu para não levarmos a sério. E há ainda aquela (primeira) capa monumental na «Rolling Stone»: «Pope Francis. The Times They Are A-Changin’», a qual não envelheceu. A esta sucederam-se outras, na «Time», na «National Geographic», e em muitíssimos títulos à volta do globo, de um modo quase permanente. Hoje, e graças à Laudato si’, é também um nome citado continuadamente nas reuniões internacionais de cientistas, sobretudo das áreas das ciências naturais, o que é um inédito papal. Mas, ainda assim, o Papa também tem recebido ajuda, não na construção da sua imagem - que isso, ele faz sozinho, produzindo imagens de inegável poder de impacto e convocatória - mas na sua desconstrução: a sabedoria da coisa está precisamente aqui.
Assim, tendo uma imagem gráfica tão impressionante e capaz de renovação permanente, e uma vez que sempre fala (e escreve) de «coração na mão», Francisco não precisou - como o Papa João Paulo II ou o Papa Bento XVI - que o traduzissem, mas sim que colocassem à prova a substância e a pertinência do seu discurso, tão amado quanto vilipendiado. Como não se desviou, jamais, um milímetro, daquilo que o próprio se propôs oferecer ao mundo, é um trabalho «in motion». Aqui ficam, pois, os homens que se dedicaram a essa tarefa.
Colocaria em primeiro lugar a Antonio Spadaro, SJ, o director da crescentemente reconhecida La Civilità Cattolica, que acaba de ganhar uma edição em português, sediada no Brasil. Spadaro foi o primeiro a seguir meticulosamente todos os passos do novo Papa, e a mostrar, para além das oportunidades dos melhores vaticanistas, as conversas e os encontros a que só os jesuítas pelo mundo têm acesso.
Spadaro teve a possibilidade de contar com a rede de confrades no mundo, de trazer novas impressões desde a Argentina e de fazer a primeira entrevista de impacto, em setembro de 2013, a qual correu mundo, se tornou um objeto de culto e de estudo, e mostrou quem era aquele homem vindo de longe. Esta entrevista marcou o estilo de comunicação do Papa e Spadaro voltaria a empreender mais algumas e a favorecer a relação do Papa com figuras relevantes da cultura italiana, sobretudo dos meios intelectuais não católicos, nos quais os jesuítas costumam sentir-se à vontade. Com o tempo, acabaria por publicar um grosso volume de textos do Cardeal Bergoglio, («Nei tuoi occhi è la mia parola»), acompanhada por mais uma entrevista – profunda e estimulante – e alguns comentários pertinentes e, mais recentemente, prepara o final deste pontificado, inspirando-se nos primeiros trabalhos científicos produzidos sobre a abordagem do Papa Francisco à problemática do mundo de hoje, e coligindo temas específicos deste magistério, como sejam as relações internacionais e a diplomacia («L’Atlante di Francesco»).
Ainda assim, o Papa deu inúmeras entrevistas, mas a minha favorita é a liderada por Dominique Wolton, talvez pela substância que o próprio confere às perguntas e às reflexões, acabando por mostrar que o pensamento do Papa tem mais densidade e mais performance do que a maioria dos seus detratores esperariam.
O segundo «tradutor» de Francisco é Austen Ivereigh, que tem dedicado uma parte relevante dos últimos anos a documentar e a relatar a extraordinária vida de Francisco, na qual se encontra um fio condutor, firme e forte, e uma coerência de perspetivas e de pensamento desde cedo clarificados e postos em prática. Ivereigh redigiu as mais substanciais biografias do Papa Francisco, a primeira, «O Grande Reformador. Francisco e a Construção de um Papa Radical», foi publicada em 2014, um texto minucioso e elegantemente escrito, de uma objetividade cheia de bonomia. Ivereigh beneficiou de um amplo trabalho anterior, «Catolicismo e a Política na Argentina, 1860-1960», o que lhe permitiu um conhecimento profundo da situação e da cultura política e religiosa do país natal do Papa, o que também lhe deve ter conferido o acesso que teve ao próprio Papa, para discussão e aprofundamento da sua investigação. Mais recentemente, publicou o segundo volume – mais crítico, no sentido literário, uma vez que procura interpretar os acontecimentos e não apenas relatá-los com precisão – «O Pastor Ferido», de 2019. Tem também escrito pequenos artigos, estimulantes, em revistas anglófonas mais alternativas, como seja a «Real Review», e que abrem àquilo que perdurará deste pontificado como significativo para todas as pessoas.
Mas, tal como me aconteceu com as biografias de Weigel e de Lecomte dedicadas ao Papa João Paulo II, que me parecem menos interessantes do que o pequeno livro de Slawomir Oder, também se me afigura como um texto relevante, para conhecer o Papa Bergoglio, o trabalho de Elisabetta Piqué, «Francisco. Vida e revolução» (2014. A vaticanista argentina, que o conhece de há muito, e que contou com os depoimentos de colaboradores próximos do Cardeal de Buenas Aires, como seja o P. Miguel Yañez S.J., e a própria família Bergoglio, ilumina com clareza a vida do Papa durante os tempos mais escuros das ditaduras argentinas.
Finalmente, o terceiro homem do Papa é Juan Carlos Scannone, um influente teólogo e professor jesuíta, uma referência na escola argentina de Teologia do Povo, sem a qual não é possível compreender a teologia e a teoria política subjacentes ao discurso e à ação do Papa. Professor do jovem Bergoglio, estudou em Munich e explica com grande enfase todo o processo intelectual que levaria Jorge Mario Bergoglio de Romano Guardini à redação do Documento de Aparecida – que é o precursor de Evangelii Gaudium (e, afinal, todas as grandes mensagens, a começar por Querida Amazónia) –, a sua opção preferencial pelos pobres e a recusa do marxismo como instrumento de análise para o ver e o atuar. Em 2017 publicou um texto essencial para quem quer entender o atual Papa, «La Teología del Pueblo». Com Scannone e a sua compreensão do mundo a partir das Américas, entendemos melhor porque distintos teólogos europeus, entre os quais os que conheciam o P. Bergoglio e o Cardeal, se enganaram face ao rumo e ao significado do seu pontificado.
Finalmente, uma palavra para os “homens do Papa” em Portugal, o primeiro dos quais é uma mulher: há que destacar a vaticanista experientíssima e altamente competente que é Aura Miguel e o modo lento, mas seguro, como foi descobrindo, e relatando, o mundo de Francisco. E, claro, o grande insider, Tolentino de Mendonça, um insider absoluto pois a sua excelsa poesia trouxe, a um Papa tão cheio de vida e de esperanças, um pouco mais de sede, de arrojo, um desafiante entrever do «sempre novo», sempre viçoso, sempre perscrutador de futuro, que é o Cristo presente no mundo de hoje, e no qual o bem – frágil, diáfano, inesperado, pequeno, rudimentar, iletrado mas puro – recebe a missão de conter o destrutivo e oleado movimento do mal. Bem-vindo, Santo Padre!