Se alguém ainda tivesse dúvidas sobre a forma como decorreram a cimeira da NATO, em Bruxelas, e a cimeira do G-7, na Sicília, o comentário da chanceler Angela Merkel no dia seguinte em Munique tê-las-ia dissipado certamente. Não apenas pelo teor das suas palavras, mas sobretudo por virem de quem vêm.
Desde que chegou ao poder, concorde-se ou não com as suas políticas e decisões, há algo que ninguém lhe pode imputar de boa fé: declarações emotivas, extemporâneas ou incendiárias. Nestes 12 anos como chanceler alemã, Merkel encarnou na perfeição a imagem da líder ponderada, cautelosa, racional, fria, que só toma decisões depois de muito reflectir sobre os assuntos.
Esta forma de ser, aliás, tem-lhe valido inúmeras críticas no seu país, onde é acusada por muitos de empurrar os problemas com a barriga e só decidir em última instância. Mas tardias ou não, as suas decisões quase sempre foram no sentido de apaziguar tensões, conciliar interesses, procurar soluções o mais consensuais possível, evitar dramas excessivos e conflitos desnecessários.
É por isso que ouvir Merkel dizer, 24 horas após a passagem de Donald Trump pela Europa, que o Velho Continente “tem de agarrar as rédeas do seu próprio destino”, que “temos de ser nós a lutar pelo nosso futuro como europeus”, que “os tempos em que os países podiam contar uns com os outros, em certa medida, terminaram” não pode deixar de soar como um alerta muito ruidoso vindo de quem vem. Que até poderia ser entendido como uma declaração abstracta de princípios não se desse o caso de a chanceler ter acrescentado que foi isso que “percebeu nos últimos dias”.
Europeus a pensar na sua defesa
Os últimos dias foram, naturalmente, as duas cimeiras - a da NATO e a do G-7 - em que o convívio com Donald Trump foi mais longo e aprofundado do que as escassas horas em que Merkel esteve na Casa Branca há cerca de dois meses. Um convívio que, pelos vistos, foi suficiente para Merkel se convencer que a relação transatlântica com o actual Presidente americano está condenada a mudar e que os europeus têm de reflectir seriamente sobre a sua defesa.
Que seja Merkel a tirar tal conclusão - ou a revelá-la em público - antes de outros dirigentes europeus é sintomático do clima em que decorreram as cimeiras e da impressão que Trump deixou nos seus parceiros.
Os actos públicos foram, já o sabemos, lamentáveis, com Trump a admoestar os europeus com a questão das contribuições financeiras para a NATO - e a Alemanha, em particular, com o superavit comercial -, ou a evitar comprometer-se formalmente com o artigo 5º da Carta da Aliança, ou com o Acordo de Paris sobre o clima, ou com o comércio livre e os direitos dos imigrantes, ou a ser grosseiro com outros líderes para ter mais visibilidade, ou…
A questão das contribuições financeiras foi particularmente chocante, porquanto é um assunto em vias de solução graças a um acordo obtido em 2014 entre todos os países-membros. Mas também porque foi o único tema que Trump destacou no seu discurso de abertura da cimeira de Bruxelas, num tom de reprimenda impróprio entre aliados.
E foi tanto mais chocante quanto o Presidente americano chegava da Arábia Saudita onde tinha dito que não iria dar “lições” aos dirigentes locais sobre direitos humanos.
Eis os critérios e as prioridades de Trump em todo o seu esplendor: aos sauditas que espezinham os direitos humanos como poucos outros países no mundo, mas que lhe compraram 110 mil milhões de dólares de armamento, Trump não tem lições a dar; aos europeus com quem é suposto partilhar valores, mas que não pagam aquilo que ele entende como necessário para a NATO, Trump sente-se legitimado para dar lições.
Mas se estes actos públicos foram lamentáveis, eles não foram suficientes para que todos os dirigentes europeus tirassem as mesmas conclusões sobre Trump. O novo Presidente francês, Emmanuel Macron, mostrou-se mais flexível na apreciação do seu homólogo americano, salientando que ele ouvia os seus interlocutores e que parecia interessado em escutar pontos de vista diversos.
Uma apreciação que corrobora outras feitas nos EUA, segundo as quais o processo de decisão de Trump consiste essencialmente em ir ouvindo quem o rodeia sobre determinado assunto até decidir pela opinião daquele que mais o impressionou. E aquele que mais o impressionou pode muito bem ter sido o que proferiu a frase de mais belo efeito aos seus ouvidos. Foi assim que escolheu alguns membros do seu gabinete, por exemplo.
Esta característica faz dele uma personalidade bastante volúvel e parece ter sido isso que Macron quis salientar na sua observação. Como quem diz que é possível influenciar o Presidente americano, uma vez que ele é por natureza uma pessoa influenciável, já que não tem ideologia, nem pensamento autónomo, nem experiência política. A tese tem feito caminho na América (e no estrangeiro) e muitos republicanos que hoje apoiam Trump fazem-no na presunção, na esperança, de que é possível evitar as piores decisões se se for eficaz a persuadi-lo das melhores soluções.
Esta é também a posição da União Europeia, cuja responsável para a Política Externa, Federica Mogherini, se tem esforçado por manter um diálogo o mais estreito possível com representantes da administração Trump no sentido de os sensibilizar para a importância das relações transatlânticas em todas as suas vertentes. Isso mesmo revelou, aliás, esta terça-feira, o embaixador da UE junto das Nações Unidas, em entrevista à Renascença.
João Vale de Almeida, o português que desempenha actualmente estas funções, entende que “não estamos no fim do caminho em termos de posições desta administração americana, que ainda há evolução possível” e por isso defende como “conveniente que continuemos a falar com os americanos”.
É certo que as declarações de Merkel em Munique, no domingo, não excluem a continuação do diálogo com Washington, nem tão-pouco a amizade, que de resto fez questão de referir como algo que é necessário manter.
Mas não deixa de ser sintomático que tenha sido justamente a dirigente europeia mais ponderada, mais prudente, mais experiente, a primeira a perder a esperança numa evolução positiva da administração americana e a proclamar a necessidade de os europeus repensarem a sua defesa no contexto da NATO.
Porque é isso que significa a declaração de Merkel. Sem rodeios, a chanceler veio dizer que chegou a hora de os europeus lutarem pelo seu futuro, pelo seu destino, e que foi isso que ela percebeu nos dois dias em que conviveu com Trump.
Não é, naturalmente, o fim da NATO, a ruptura da aliança transatlântica, mas é a intuição, a percepção, de que com Trump na Casa Branca as tensões e as rivalidades na aliança vão sobrepor-se sempre à cooperação aberta e franca.
O Presidente americano olhará sempre para os países aliados como rivais que querem disputar-lhe influência no mundo e sacar-lhe dinheiro dos cofres. Trump vê a NATO mais como uma herança incómoda que tem de aturar do que como uma aliança determinante para os EUA e para o Ocidente. Mais como um conjunto de países militarmente fracos ou irrelevantes que se acobertam à sombra (e à custa) do gigante americano do que como uma aliança de gente que partilha valores como a liberdade e a democracia.
Trump não tem ideologia, mas tem algumas ideias fixas e uma delas é o unilateralismo. Como tal, olhará sempre para os outros países como potenciais rivais, sejam eles ocidentais ou não, grandes ou pequenos, respeitadores dos valores liberais ou não. O único momento em que suspende esta convicção é quando faz bons negócios - nesse momento todos são “amigos”.
Foi isso que Merkel percebeu nas duas cimeiras que teve com Trump. Percebeu que, enquanto Trump ocupar a Casa Branca, os europeus têm de lidar com Washington como um rival e agir como um bloco unido com interesses distintos dos EUA.
Não é tarefa fácil, mas é tarefa indispensável. Que tenha sido a chanceler alemã a apontar o caminho não deve surpreender ninguém.